terça-feira, 16 de outubro de 2018

A guerrilha do recalque

Uma arma na mão, uma Bíblia na cabeça é o ideal da tropa de choque de Bolsonaro

A ascensão de Jair Bolsonaro é atribuída, prioritariamente, ao sentimento antipetista de boa parte de seus eleitores. Diz respeito aos erros, descaminhos e à corrupção de um partido que, impermeável à crítica, vaga numa cegueira narcisista. A análise da onda bolsonarista deveria, no entanto, voltar o foco um pouco mais para motivações profundas de um grupo que se sente acuado pelo avanço fundamental das pautas emancipatórias que o Brasil tem abraçado.

Podem nem ser a maioria dos eleitores do capitão, composta também por uma massa difusa que, mesmo não concordando com ele, ou até não o suportando, vê a chance de romper com “tudo o que está aí”. Mas representam seu núcleo forte. Acham que é preciso endurecer sem qualquer ternura. Entupidos de medos e recalques, encontraram um líder para chamar de seu e agem sem limites contra “os ativismos” que este prometeu extinguir. Esquecem que são, eles mesmos, ativistas radicais numa democracia que lhes dá voz, mas exige limites.

O mal não é estranho a ninguém. Como diria Hannah Arendt, é banal. Todo ser humano tem seus demônios. É passível de sentir-se incomodado com quem ameaça seu espaço. Cria bodes expiatórios e chega a desejar a morte do vizinho. Grande parte, no entanto, após uma confissão interna, alcança uma visão crítica dos próprios arroubos. Evita externar sentimentos circunstantes perigosos, e faz prevalecer a moderação, sob o peso da lei ou da consciência.

O que anima os bolsonaristas de raiz é a completa ausência desse filtro. Cerceados em suas pulsões justiceiras, querem dar um basta na evolução dos costumes. Acham que têm o monopólio do bem. Uma arma na mão, uma Bíblia na cabeça é o ideal de sua nouvelle-vague. É uma vertente variada, que vem de diferentes estratos. Por exemplo, os que, ao se deparar com o cotista que beliscou uma vaga na universidade, enchem-se de revolta persecutória.

Passam por cima de qualquer contexto histórico. Dizem, como uma influenciadora digital recentemente postou, que história, sociologia e filosofia são drogas “piores que a maconha”. Gritam, sem pudor, que “índio é a raça mais desgraçada que existe”. Trancam-se em casa com protetores de ouvidos quando a parada gay invade sua praia. As pernas tremem diante do empoderamento feminino. “Essa altivez vai acabar”, ameaçam, ao ver a menina que vem e que passa.

Enxergam, nas artes, caprichos degenerados de “bêbados vagabundos mamadores das tetas do governo”. Têm horror à atividade intelectual. Querem ver a Amazônia transformada num “puta estacionamento” (do refrão satírico da Casseta Popular). Acham que uma guerra civil daria uma equilibrada nos excessos. Veneram grupos de extermínio e milícias. Não entendem o que o pessoal vê de especial nessa tal democracia. “Ser escravo” da Constituição, para eles, é constrangimento. E, justiça social, sinônimo de comunismo.

A não ser que, se eleito, baixe em Jair Bolsonaro um caboclo deixa-disso, é essa guerrilha que sustentará a sua pauta e lhe dará aleluias. Se isso ocorrer, é bom que Deus ou os ativistas da tolerância sejam capazes de, pacificamente, resistir ao novo dictat.

Arnaldo Bloch, 16/10/2018

https://oglobo.globo.com/cultura/a-guerrilha-do-recalque-23158353#ixzz5U5Wsnkqh 

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Vidas Secas

O filme

Entrevista com Luiz Carlos Barreto

"Era preciso sentir o calor olhando para a fotografia do filme"

Guilherme Sobota, O Globo, 25 Agosto 2018

Cena de ‘Vidas Secas’ (1963). Fabiano (Átila Iório) e o soldado amarelo (Orlando Macedo), Foto: LC Barreto Produções/IMS).


RIO — Quando a reportagem encontra Luiz Carlos Barreto na sede da sua lendária produtora, na Rua Visconde de Caravelas, no bairro do Humaitá, ele pergunta: Qual é a data do Vidas Secas? “Pô, mas eu sou mais velho que o livro!”, ri o produtor. Com 90 anos recém-completados, o homem que escreveu boa parte da história do cinema brasileiro nas últimos cinco décadas segue com sua memória irreparável e sua conhecida capacidade de contar histórias.
Ao revolucionar a estética da produção nacional, incorporando a fotografia de Vidas Secas(1963) à dramaturgia do filme, Barreto estabeleceu a pedra fundamental de sua carreira. Nesta entrevista, ele conta histórias sobre a produção, fala de como encontrou seus caminhos na fotografia, e da imensa repercussão que o filme alcançou dentro e fora do Brasil:

Palmeira dos Índios foi escolhida por causa de Graciliano, certo?

Foram dois motivos: no entorno da cidade tinha todo o sertão que a gente precisava, e também por ser a terra do Graciliano. Ali tinha uma presença, parentes, o irmão Clóvis, o Valdemar (Lima), um cidadão de Palmeira, crítico e ensaísta especialista em Graciliano. Palmeira impregnava a presença dele. Por outro lado, o Arnon de Mello, pai do Fernando Collor (ex-presidente da República, atual senador), era senador por Alagoas e um grande entusiasta do escritor e do filme. Ele nos facilitou muitos contatos e articulações lá.

O senhor voltou alguma vez para lá?

Nunca mais voltei. Era um centro político muito violento. Quando o sol se punha, as pessoas pulavam os muros para ir à casa dos vizinhos e não ficar expostas na rua aos pistoleiros. Na época, tínhamos dois jipes do governo para produção e transporte de equipes. Uma noite surgiu um emissário “do governo” com dois cavalheiros, pedindo o jipe emprestado. Eles disseram que tinham uma coisa para fazer, um negócio misterioso. Emprestamos e no outro dia eles devolveram. No dia seguinte, 48 horas depois, nós vimos as manchetes dos jornais locais anunciando um crime bárbaro na região de Palmeira dos Índios, em que quatro pessoas foram assassinadas e jogadas dentro de cisternas, com os olhos furados, um negócio de louco. O jornal era de oposição e acusava os criminosos de terem usado um transporte oficial do governo… os nossos jipes! A gente não sabia. Eles devem ter bolado aquilo como álibi. Isso nunca foi esclarecido.

Como foi chegar lá, se relacionar com as pessoas, escalar figurantes e atores?

Nós usamos muitas pessoas de lá para a figuração e papéis pequenos. Existiam grupos teatrais lá, alguns fazem coadjuvantes no filme. O principal foi a descoberta do Jofre Soares (que depois atuaria em mais de cem filmes, incluindo ‘Terra em Transe’ e ‘Memórias do Cárcere’). Ele era a glória da cidade. Era um sargento aposentado da Marinha que tinha voltado a morar lá e fundou um grupo teatral. O Nelson precisava de alguém para fazer o coronel. Viajamos quilômetros num dia de folga, chegamos às barrancas do São Francisco onde ele estava com o circo e o conhecemos. Foi paixão à primeira vista. Era um marinheiro, o cara de porto em porto, com vivência. O Nelson chamou ele, deixou o texto. Ele veio e ficou o resto do filme, porque passou também a ser um assessor para usos e costumes, inclusive para problemas de linguagem e de diálogo. Isso ajudou muito, porque o estilo do Graciliano dá pouca informação no livro.

E qual era o cenário sertanejo?

Tinha um caminhão-pipa que levava água para cisterna do set. A partir das 10 horas não dava para beber porque a água ficava quente. A Baleia procurava as sombras, a gente gastava muito filme. Filmávamos entre 5h30 e 10h30, para evitar o sol, sobretudo por conta da Baleia. Ela foi adquirida numa feira pelo equivalente a R$ 5. O Nelson a chamava de Grace Kelly, porque ela era muito elegante. Cadê a Grace Kelly?!, aí o assistente ia lá e pegava. Um dia, um maquinista de produção, o Domingos, um mulato, no meio da filmagem, teve um surto e saiu correndo por dentro da Caatinga. Daqui a pouco ele voltou, todo lanhado, sangrando dos mandacarus. O Domingos era chegado à umbanda. O homem não quer que filme, o homem quer que reze uma missa para ele, ele dizia. Mas quem era o homem? O Graciliano, ateu, pedindo para rezar uma missa? Por descargo de consciência, concordamos em fazer a missa, para limpar a barra, porque a gente não conseguia filmar o dia inteiro mesmo. Pedimos autorização para os parentes, eles concordaram, e no dia o padre fez a missa antes da filmagem. A população nunca soube dessa missa para o Graciliano.

Depois que o senhor conheceu o Glauber Rocha na Bahia, como aconteceu o convite para fotografar o Vidas Secas?

Depois de me convencer a fazer o roteiro de O Assalto Ao Trem Pagador (1962) com o Roberto Farias, Glauber me disse: O Nelson (Pereira dos Santos) está fazendo o Vidas Secas, você tem de fotografar. Eu dizia: Glauber, você não é o diretor do filme (risos). Ele queria acabar com a alienação na fotografia de cinema, parar de copiar Hollywood e o Gabriel Figueroa (cineasta mexicano). O Nelson concordou e me deu o roteiro. Falei: Só vou fotografar se for sem nenhuma luz artificial, sem nenhum filtro, nenhum artifício. Tem de ser um filme com ar de documentário. Maravilha, ele disse, embarcando na loucura do Glauber. O cameraman, o José Rosa, tinha uma experiência grande de cinema. Ele era sobrinho do mítico Edgar Brasil, que fez a fotografia do Limite, o filme que todo mundo fala mas nunca ninguém viu.

Como foi então passar a fazer fotografia para o filme, sem experiência?

Por segurança, no início, a gente fazia dois takes da mesma cena, um com a minha proposta e outro com os meios tradicionais, segundo o manual da Kodak, sobretudo nas cenas noturnas. A Tri-X era uma película para pouca luz, e a Plus-X era um filme menos sensível.

Qual foi sua abordagem para criar a fotografia do filme?

A fotografia para o Vidas Secas tinha de fazer parte da dramaturgia do filme. Ou seja, ela deveria espelhar a dramaticidade do clima, do calor exorbitante, era preciso sentir esse calor olhando para a fotografia. Quando anos depois houve uma retrospectiva do Nelson em San Francisco (EUA), o próprio (Francis Ford) Coppola ficou muito interessado em saber como tinha sido. Ele queria saber os detalhes, mas não havia detalhes: era luz e câmera, sem filtro. Nós não usamos filtro para diminuir contraste, etc. O contraste estava lá. A gente fotografou o filme pela sombra, a luz vinha do que jeito que viesse. No mundo setentrional, eles fotografam pela luz, porque tem pouca luz. No Brasil, tem muita luz e muito contraste. Então tem de fotografar pela sombra, em vez de iluminar a sombra. Eles colocava batedores, refletores na sombra. Isso pasteuriza, tira o clima. Fizemos todo o Vidas Secas baseado na sombra.

Quando o filme foi lançado, vocês já perceberam que havia algo diferente acontecendo?

O filme ficou pronto em 1963. Em 1964, ele estava indo para Cannes, em maio. Em março, antes do golpe, nós tínhamos feito algumas projeções para sentir a receptividade. Fizemos uma sessão com o grupo de intelectuais, Helio Pellegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Autran Dourado e uma série de escritores e gente de artes plásticas. Já existia um clima reacionário no ar. Sendo Graciliano um escritor comunista, e o filme tratando de um problema social, chamamos também o João Pinheiro Neto, espécie de ministro da reforma agrária, porque o filme tinha muito a ver com isso. Para ver que tipo de apoio ele poderia dar ao filme. A receptividade foi excepcional, todo mundo saiu dali e escreveu artigos apoiando. E fomos selecionados para o concurso em Cannes.
Mas aconteceu o golpe e ficou aquele vai ou não vai. Eram três filmes indo para Cannes, Vidas Secas, Deus e Diabo na Terra do Sol, e Ganga Zumba. Houve uma cabine de coronéis do Exército para decidir se os filmes podiam ir. Quando terminou a sessão, um dos coronéis exaltado se levantou e falou: Eu, por mim, mandaria queimar os dois filmes em praça pública, é uma propaganda comunista vagabunda. Outro, mais liberal, chamado Coronel Velho, um intelectual da turma do Geisel, a ala mais liberal, na cabine mesmo disse: Que história é essa? Parece que estamos na Alemanha de Hitler. O outro coronel botou a viola dentro e saiu. Tanto que os filmes foram para o festival.

Como a repercussão em Cannes se relacionou com o golpe de Estado no Brasil?

Foi um choque na crítica, no meio jornalístico, e houve muitas entrevistas. Quando voltamos, Nelson, eu e Glauber, havia um relatório da embaixada brasileira na França com todas as entrevistas que nós demos, denunciando que estávamos fazendo “contrapropaganda” na Europa, aproveitando o festival, denunciando o governo brasileiro como ditadura. Isso era maio de 1964. Não tinha um mês. Eu tinha um conhecido do Exército, na época capitão, que nos deu uma cobertura. Na Bahia, quando o filme estreou no Cinema Tamoio, no centro de Salvador, uma patrulha do Exército sumiu com a cópia e tirou de cartaz. Na época, apelei para o Juracy Magalhães, ministro da ditadura, que eu conheci quando era governador da Bahia. Isso comprova que estamos numa ditadura, eu disse. Aí ele mandou uma ordem para o filme voltar a cartaz. Aqui no Rio não houve muito problema.

Em Cannes, episódio da Baleia sendo transportada para lá ficou célebre. O que aconteceu?

Uma colunista francesa acusou o filme de ser selvagem, porque ela dizia que os grandes momentos eram as mortes dos animais. O papagaio não morreu. Na verdade, o Nelson falou para a Maria (Ribeiro) matar. Quando ela pegou o papagaio, ela tentou, mas ficou falando: Não posso, não consigo. O Nelson dizia para matar, mas ela jogou o papagaio de lado e ele se salvou. Ninguém ia matar a Baleia. Fizemos um efeito especial subdesenvolvido. Pegamos uma linha branca de costura, amarramos a perna no rabo para ela fingir que tinha levado o tiro. Tinha a maquiagem, água de chocolate, não sei o quê. Ela tinha de fechar os olhos… Nós escolhemos uma locação, um carro de boi, e o sol nascendo… para ela olhar para o sol. O sol batia e ela foi fechando os olhos por causa da luminosidade. O Nelson botou toda a equipe para fora, e só ficou eu, ele e o José Rosa – e a câmera. Ninguém falava nada. Na hora que ela começasse a fechar os olhos, o Nelson catucava o Zé Rosa e ele ligava a câmara. O sol nasceu, ela fechou os olhos e deu a sensação nítida de morte.
Para provar que não éramos selvagens, bateu o sentimento brasileiro, inventaram de mandar a cachorra para lá. A Lucy (Barreto, sócia e esposa) mandou fazer um suéter para ela. Quando Baleia chegou, estava toda a imprensa esperando… ela desceu pela escada do avião, como se fosse uma estrela. Chegou no pátio do aeroporto, arriou ali e fez um xixi enorme. Tudo isso filmado pelas redes de televisão. Na França, cachorro é sagrado, então a gente virou VIP em Cannes, todo mundo conhecia a cachorra do filme. As pessoas ficavam impressionadas com a beleza, a gente dizia que era virrá-latá, vira-lata em francês (risos).

O livro de Graciliano

Experiência do leitor de hoje beneficia ‘Vidas Secas’ por evidenciar sua modernidade formal

Luiz Zanin Oricchio, O Globo, 25/08/2018

Maria Ribeiro, então funcionária de um laboratório que trabalhava com a produtora, 
acabou protagonizando como Sinhá Vitória , Foto: LC Barreto Produções

Vidas Secas, se sabe, começou de maneira avulsa, com um conto intitulado Baleia. Depois vieram outros quadros ou contos, somando o total de 13 capítulos, finalmente publicados sob forma de romance em 1938, e logo chamado de “desmontável” por Rubem Braga.
De fato, foi a forma que na primeira hora mais chamou a atenção dos críticos. Uma tendência mais tradicionalista, como a de Álvaro Lins, via na relativa autonomia dos capítulos um sinal de desarticulação do todo. Outros, como Lúcia Miguel Pereira, se indagam sobre a natureza da obra: “Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza”. Antonio Candido preferia enxergar a estrutura em “rosácea” do romance, e via nela mais mérito que defeito.
Para uma visão abrangente da polêmica literária em torno da estrutura em Vidas Secas, leia em Uma História do Romance de 30, de Luís Bueno (Edusp/Unicamp, 2006), os capítulos dedicados a esta obra de Graciliano Ramos.
A experiência do leitor de hoje – mais acostumado à narrativa não-linear típica do mundo digital – beneficia Vidas Secas e vê logo sua modernidade formal. Lemos a história da família de retirantes em suas idas e vindas, sem tropeços com os saltos temporais ou mudanças de foco narrativo. E admiramos a estrutura cambiante, porém circular, que chamou a atenção de um crítico tão agudo como Antonio Cândido.
No primeiro capítulo – Mudança –, temos os personagens se deslocando penosamente pelo sertão esturricado. São seis viventes, ao todo – um casal, seus dois filhos pequenos, uma cachorra, um papagaio.
Os capítulos seguintes são nomeados como Fabiano, Cadeia, Sinhá Vitória, O Menino mais Novo, o Menino mais Velho, Inverno, Festa, Baleia, Contas, O Soldado Amarelo, O Mundo Coberto de Penas, Fuga. Podem mesmo ser lidos de forma isolada e independente. Talvez mesmo a leitura aleatória se sustente. Mas, claro, a “montagem” final de Graciliano propõe a forma linear como a mais consistente.
Há muitos aspectos a serem destacados nesta obra-prima e a crítica já se ocupou longamente de cada um deles. Por exemplo, como os personagens, apesar de interagirem, comportam-se como entidades autônomas, que falam para si mesmas, nesse simulacro do monólogo interior que é o discurso indireto livre. Parece uma narrativa em terceira pessoa, mas na qual a voz é concedida ao personagem. Mesmo que esse personagem seja um animal – a cadela Baleia.
Fabiano é o homem, Sinhá Vitória, a mulher. Os meninos não têm nomes. A Baleia tem. O papagaio também é anônimo, e será o primeiro a ser sacrificado em nome da sobrevivência da família. “Também nem falava”, justifica-se Sinhá Vitória. E como iria aprender a falar num meio em que o mutismo era a regra?
Já se disse também que a natureza – a áspera e nada idílica natureza da Caatinga – é personagem de Vidas Secas. E ela está sempre lá, a determinar, a limitar ou expandir a ação das pessoas. O sertanejo não discute com ela – aceita-a. Logo no capítulo 1, vemos através do monólogo interior de Fabiano que “A seca aparecia-lhe com um fato necessário...”
Outro tema recorrente para Fabiano é o da sua, digamos assim, condição existencial. Era um homem? Ou um bicho? Numa imagem bonita, considera que “Ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê, mas era”. A bolandeira é o mecanismo, movido a tração animal ou humana e usado nos antigos engenhos de açúcar. A roda refaz seu caminho, em torno do seu eixo, infinitamente, sem sair do lugar. Assim seria Fabiano, alguém que nunca sai do lugar, por mais esforço que faça?
Ele também sabe que não é um homem diante do patrão autoritário. Ou do policial, “o soldado amarelo” arbitrário e parcial, que personifica o Estado, com o qual não se discute. “Pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros”, reflete. Sinhá Vitória tinha apenas ideia fixa, possuir um dia uma cama confortável, como a que vira na casa de Seu Tomás, um antigo patrão, o dono da bolandeira. Fabiano não respondia à mulher, mas achava que tal desejo, um leito macio para esticar os ossos após um dia de duro trabalho, era luxo impensável e inatingível para eles.
O romance “desmontável” de Graciliano Ramos nos coloca na intimidade dessa família miserável, à beira da extinção física, à mercê de uma natureza inclemente e de homens cruéis. Experimentamos sua dor, sua revolta, seu conformismo, sua consciência e alienação, sua esperança que aparece timidamente, como um toco de vela na escuridão. Talvez não haja ficção tão real e tão pungente sobre os efeitos da miséria e da extrema desigualdade social. E nos emociona demais porque o ponto de vista é o da interioridade dos personagens e não um olhar distanciado e “imparcial”. Mas é na contenção e economia de recursos que a obra de Graciliano nos toca de maneira ainda mais profunda, porque jamais apela para o melodrama ou as soluções emotivas fáceis. Se hoje Vidas Secas nos parece tão atual, também assim o pareceu nos anos 1960 quando os diretores do Cinema Novo buscavam temas urgentes e nacionais para suas obras críticas. O romance de Graciliano Ramos era ambição antiga de Nelson Pereira dos Santos, o precursor do movimento e um dos seus esteios mais sólidos.
Nelson, após uma frustrada tentativa anterior, começou a realizar Vidas Secas em 1962. Escolheu para o papel de Fabiano um ator profissional, Átila Iório, e, para o de Sinhá Vitória, uma amadora, Maria Ribeiro, funcionária do Laboratório Líder, onde os cinemanovistas revelavam os negativos dos seus filmes. Também encontrou Jofre Soares, que, no papel do dono da fazenda, faz sua primeira participação como ator. Primeira de uma carreira vitoriosa no cinema e na TV. A cachorra Baleia foi comprada em uma feira da região. Depois das filmagens, voltou com a equipe para o Rio de Janeiro e se tornou mascote de Fábio Barreto, filho de Luiz Carlos Barreto.
Barreto foi o fotógrafo de Vidas Secas e um dos principais responsáveis para que o filme tenha marcado época. Até então fotógrafo de revistas e jornais (foi profissional de O Cruzeiro), Luiz Carlos Barreto foi convidado a estrear como diretor de fotografia em Vidas Secas. Propôs uma fotografia sem filtros, chapada, que trouxesse para a tela a luminosidade e o calor sufocantes do sertão. Foi uma ideia ousada. Havia quem sustentasse que os laboratórios não conseguiriam revelar os negativos obtidos naquelas condições. Por sorte conseguiram. Curiosamente, foi o caráter “desmontável” do romance que permitiu a Nelson “remontá-lo” com toda facilidade em linguagem cinematográfica. Mudou a ordem dos capítulos e fundiu alguns deles para ganhar dramaticidade. Por exemplo, o sacrifício da cachorra Baleia foi levado para perto do final da história, de modo que o desfecho ganhou uma tonalidade emocional extra.
Aliás, a “morte” da Baleia teve repercussão quando o filme foi ao Festival de Cannes em 1964. Nelson, pessoa muito bem humorada, gostava de lembrar o caso em entrevistas. A morte de Baleia parece tão realista que uma condessa italiana, ligada à Sociedade Protetora dos Animais, denunciou que a cadela havia sido baleada de verdade para propósitos cinematográficos. Disse, para quem quisesse ouvir, que gente que matava um animal daquela maneira merecia mesmo morrer de fome.
Em vão a equipe negou que a cadela tivesse morrido nas filmagens. Mandaram então buscar o animal no Rio e Baleia, pelas asas da Air France, chegou a Cannes e desfilou em triunfo na Croisette. Nem por isso a Condessa deu o braço a torcer: “Mataram aquela e trouxeram esta para cá: cachorro vira-lata é tudo igual mesmo”.
Anedotas à parte, Vidas Secas comoveu o público e impressionou a crítica. Adaptação radical de uma obra-prima da literatura, capta sua essência. Mobiliza recursos de linguagem cinematográfica para lograr essa transposição bem-sucedida. Mantém o laconismo dos personagens, explora o contraste e a força da fotografia para imergir o espectador naquele labirinto solar em que a família de Fabiano e Sinhá Vitória se encontra presa. Limita a trilha sonora ao ruído triste das rodas de um carro de bois. Tal como o livro, é obra definitiva sobre a iniquidade social.





Referências

https://www.estadao.com.br/infograficos/brasil,cinema-era-preciso-sentir-o-calor-olhando-para-a-fotografia-do-filme-conta-barreto,911961  11/10/2018

A entrevista de Luiz Carlos Barreto

https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=i7NhYGhlOoY 

O filme Vidas Secas

https://www.youtube.com/watch?v=m5fsDcFOdwQ