“É preciso muito cinismo para um casal chegar às bodas de prata”
A partir de hoje, a primeira segunda-feira do resto de seus tempos, Harry e Meghan desafiam o sambinha carioca de que a vida de casado é boa, mas a de solteiro é melhor. Que Deus salve a rainha e ampare o casal nesta divergência. Como é próprio de quem ama, eles não têm tempo de ler jornais.
Não sabem do outro casamento que está na página ao lado de suas núpcias gloriosas, a triste história do juiz brasileiro que depois dos primeiros anos de vida em comum deu um down-grade afetivo na mulher. Trocou os abraços e beijinhos sem ter fim por um festival de cascudos, todos gravados por ela e agora exibidos numa lavagem de roupa pública que Nelson Rodrigues assinaria embaixo: “É preciso muito cinismo para um casal chegar às bodas de prata”. São coisas do amor plebeu. Os príncipes preferem desconhecer qualquer prova sobre a impossibilidade da paixão eterna que lhes vai na alma e saúdam a multidão descrente com um pouco de poesia numa hora dessas.
Harry promete nas entrelinhas do acordo nupcial que, para o resto dos tempos, tomará à noite a iniciativa de abraçar sua agora esposa em conchinha de índole marital. Na delicadeza desse abraço, sussurrará “eu te amo” tantas vezes que ela confundirá com a contagem romântica de carneirinhos, e a partir daí ele resfolegará apenas o exigido pela respiração bem educada. Fará com isso um movimento de pulsação afetiva tão suave que o corpo de Meghan entenderá como o balanço do berço da infância — e ela chegará, linda e pacificada, aos braços do Morfeu monárquico.
É um casamento sem carnê de IPTU, sem infiltração no teto da sala e sem reunião de condomínio sexta-feira à noite. Mesmo assim, é dureza. Harry e Meghan, abençoados pela diversidade racial moderna, resolveram apostar na felicidade antiga. Contra todas as evidências ao redor, querem desmentir o pensador Millôr Fernandes, aquele que disse “o pior tipo de casamento é o que dá certo”.
No Brasil, o número de divórcios já é maior do que o de casamentos. Diretamente da catedral de Windsor, Harry e Meghan desdenham apaixonados diante do pasmo da plebe rude.
São moços, ricos moços, não querem saber se é verdade que amar é uma coisa e casar, já que a Copa do Mundo está aí, talvez seja avançar demais os laterais. Tentarão instalar entre as quatro paredes do palácio a utopia da felicidade conjugal. O pai de Harry só acreditava na felicidade extraconjugal. Traía a mulher na frente do mundo inteiro e, tão imbuído estava desse descontrole sentimental, que se queria um OB para viver sempre entre sua amante. O pai de Meghan também não resistiu, todo dia fazendo tudo igual, e saiu de casa quando a menina tinha seis anos. Mesmo assim o príncipe e sua agora duquesa insistiram em desafiar as obviedades do drama casório. No meio de uma noite qualquer de junho, a bica do banheiro vai começar a pingar. Eles sabem que casar, já que a Lava-Jato está aí, é produzir provas contra eles mesmos. Ainda assim, ao som de “Stand by me”, disseram sim.
O mundo conspira contra esse tipo de acasalamento radical, e o rancor silencioso com que a Melania Trump retira a mão para longe de qualquer afago público do marido só confirma que em alguns casos a faixa de Gaza fica entre o quarto e a sala. O capacete deve ser de uso obrigatório na convivência entre as partes, principalmente ao café da manhã, quando o mau humor poderá ser invocado mais adiante, nos tribunais, para atenuar penas de crimes passionais. A propósito, quem vai acordar primeiro para fazer o café? Quem deixou a pasta de dente aberta? Onde está o controle remoto?
Os príncipes saúdam a multidão do alto de suas nobrezas joviais e não se impressionam com o fato de a Grã-Bretanha estar em pleno Brexit, divorciando-se depois de décadas de um casamento infeliz com a comunidade europeia. Todo mundo quer ficar solto. Já disseram que o casamento é um souvenir do amor, uma xícara de louça barata que logo quebra. Disseram também que o casamento é o máximo da solidão, com o mínimo de privacidade. Harry e Meghan não estão nem aí. Ela promete não ser “a patroa”. Ele não ficará no canto, enrustido, com cara de marido.
Parecem decididos a cumprir para o resto da vida as juras básicas da coexistência pacífica de um casal, incluindo-se nesse pressuposto a vontade fundamental de jamais baixar a média internacional estipulada pelo Grande Tribunal do Amor (Viena, 1949) e fazer sexo pelo menos três vezes por semana.
Que assim seja. Que ao primeiro embate para se regular os hábitos cotidianos, diante da inevitável questão sobre em que direção deslizará o papel higiênico — homens preferem puxado para cima —, Harry e Meghan digam um “who cares!?” em uníssono. Não cairão nas armadilhas do casamento. Cairão na gargalhada. Perceberão que a vida não é muito mais do que isso — Deus salve o humor inglês — e que está na hora de seguir o sábio hábito da rainha-mãe. Meu bem, que tal preparar um martíni?
Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 21/05/2018
https://oglobo.globo.com/cultura/deus-salve-casamento-22700527