sábado, 20 de maio de 2017

A coroa de orquídeas


 Quando a mulher entrou em agonia, ele caiu em crise. Atirou-se em

cima da cama, aos soluços. Foi agarrado, arrastado. Debatia-se nos braços

dos parentes e vizinhos; esperneava. E houve um momento em que, no

seu desvario de quase viúvo, cravou os dentes numa das mãos próximas.

A vítima uivou:

— Ui!

Então, na sala, cercado e contido, chorou alto, chorou forte. Seu

gemido grosso atravessava o espaço e era ouvido no fim da rua.

Enquanto isso, o amigo mordido, na cozinha, exibia a mão: "Tirou um

naco de carne!". Alguém perguntou baixo, com admiração: "Mas os

dentes dele não são postiços?". Eram. E, em torno, houve um espanto

profundo. Ninguém compreendia que um indivíduo que usava na boca

uma chapa dupla pudesse morder com tanta ferocidade e resultado. E,

súbito, veio espavorido lá de dentro um irmão da moribunda. Pousou a

mão no ombro do Juventino. Pigarreia e soluça:

— Morreu.

Várias pessoas espichavam o pescoço para ver as reações. Primeiro,

Juventino levantou-se, esbugalhando os olhos. Depois que assimilou o

fato, desprendeu-se de vários braços, num repelão. Dava socos no próprio

peito e estrebuchava:

— Me dêem um revólver! Quero meter uma bala na cabeça!

DOR AUTÊNTICA


Essa dor agressiva e autêntica arrepiava. E havia, disseminado no

ar, o medo de que o infeliz ferrasse os dentes em alguma mão ainda

intacta. Durou o paroxismo de dez a quinze minutos. Por fim, a própria

exaustão física serviu de sedativo. Gemia baixo. Mas, quando o sogro o

convocou para ver a esposa, recuou como diante de uma blasfêmia. Num

tremor de maleita, rilhando os dentes, soluçou:

— Não vou! Não quero!

Era a sua antiga e irredutível pusilanimidade diante da morte.

Desde criança tinha medo de qualquer defunto, fosse conhecido ou

desconhecido, parente próximo ou remoto. A idéia de ver a mulher morta

o arrepiava. Defendia-se: "Não!". E corrigiu: "Agora, não!". Com o

coração disparado, não pôde evitar a seguinte e quase irreverente

reflexão: "Por que não pintam os cadáveres?". Perguntaram:

— O enterro vai sair daqui?

Virou-se:

— Claro!

Um dos vizinhos, o mesmo que fora mordido na mão, vacila e

sugere:

— Não será mais negócio capelinha?

— Por quê?

E o outro, alvar:

— É mais prático. Mais cômodo.

Então, o viúvo exaltou-se. Enfiou o dedo na cara do vizinho:

— Considero um desaforo essa mania de capelinha! É uma falta de

respeito! Ora veja!

SAUDADE


Um vizinho e um cunhado partiram, de táxi, para tratar do

atestado de óbito e do enterro. Então, andando de um lado para o outro,

numa excitação de possesso, Juventino surpreendeu e confundiu os

presentes com uma série de confidências, legítimas umas, extravagantes

outras. Na sua euforia retrospectiva, deblaterava:

— Nunca houve marido tão feliz como eu! Duvido!

Elogiou a mulher de alto a baixo, chamou-a de "anjo dos anjos",

"flor das flores". E, súbito, diante dos vizinhos atônitos e maravilhados,

baixa a voz:

— Era tão séria que namorou um ano comigo, noivou dois e só

topou beijo na boca depois do casamento! Quer dizer, mulher batata!

Havia um aspecto de sua vida conjugai que ainda o envaidecia: o

recato da mulher. Sempre conservaria, perante o marido, um mínimo de

cerimônia. Cutucou o vizinho e segredou: "Teve pudor de mim até o

último momento!". Pausa, arqueja e conclui:

— Nunca tomou injeção que não fosse no braço!

Parecia evidente que esse pudor frenético o deleitava, ainda agora.

Numa brusca cólera, desafiou os circunstantes:

— Isso é que era mulher no duro, cem por cento! O resto é conversa

fiada!

CÂMARA-ARDENTE


As providências de ordem prática estavam sendo tomadas. Uma

hora depois ou pouco mais, apareceram os funcionários da empresa

funerária. Armara-se a câmara-ardente na sala de visitas. Em dado

momento, o viúvo teve de levantar-se para atender o telefone. Era o

cunhado. Estava na casa de flores e desejava fazer uma consulta até certo

ponto delicada. Perguntou:

— Tua coroa pode ser de orquídeas?

Admirou-se no telefone:

— Pode. Por que não?

Pigarreia o cunhado:

— Mas é puxado!

— Quanto?

O outro disse uma quantia. Juventino esbravejou:

— Ladrões!

Vacila. Lembra-se de que a doença da mulher já lhe custara uma

fortuna; contraíra dívidas, tinha na farmácia uma conta estratosférica.

Acabou optando por outra solução:

— Vamos fazer o seguinte; orquídea é uma flor besta, sofisticada.

Arranja uma coroa mais em conta.

Do outro lado da linha, veio a pergunta: "Qual é a dedicatória?".

Hesita novamente. Decide-se:

— Põe assim: "À Ismênia, saudade eterna do teu Juventino".

ÀS COROAS

Do telefone, veio para a sala. Até então, fiel à própria covardia, não

fora espiar o rosto da mulher no caixão. E o pior é que seu medo estava

mesclado de curiosidade. Costumava dizer, numa frase rebuscadíssima,

que o verdadeiro rosto da mulher aparece só no amor ou na morte. Mas o

diabo era o seu preconceito contra a morte. Acendendo um cigarro,

pensava: "Os defuntos são muito feios!". Por outro lado, ocorria-lhe que,

com ou sem pusilanimidade, teria de beijar a esposa antes de sair o

enterro. Na sua meditação de viúvo, cogitou de uma solução que lhe

parecia praticável, qual seja: a de beijar sem ver, isto é, beijar fechando os

olhos.

Mais uns quarenta minutos e começam a chegar as coroas. Uma das

primeiras foi a sua. Correu, sôfrego; leu a legenda fúnebre, em letras

douradas. As orquídeas tinham sido substituídas pelas dálias. E

Juventino, recuando dois passos, considerava o efeito. Não pôde furtar-se

a um sentimento de satisfação. Disse de si para si: "Bacana!". À medida

que iam chegando mais flores, ele se convencia de que a sua coroa não

fazia feio no meio das outras. Pelo contrário. Se não fosse a melhor, podia

figurar entre as melhores.

SURPRESA

Às onze horas, a casa estava apinhada. Tinha vindo gente até de

Vigário Geral. O inconsolável viúvo era abraçado por uma série de

parentes, inclusive alguns que ele julgava mortos e enterrados. Às onze e

meia, Juventino passa por uma nova crise. E uma coisa o atribulava de

maneira particular e dolorosíssima: a doença da mulher. Aos soluços,

interpelava os presentes:

— Como é possível morrer de pneumonia? Se fosse câncer, vá lá.

Mas pneumonia! — Virou-se para um vizinho; estrebucha: — Sabe que eu

estou desconfiado que penicilina é um conto-do-vigário?

Neste momento, todos os olhos se voltaram para a direção da

porta. Acabava de entrar uma coroa. Era, porém, uma coisa realmente

insólita e gigantesca. Dir-se-ia uma coroa de chefe de Estado, de rainha

ou, no mínimo, de ministro. Toda feita de orquídeas, ofuscou

automaticamente as demais. Atônito, Juventino balbuciou: "Parei!".

Trôpego, a boca torcida e já distraído da própria dor, veio rompendo os

grupos, no seu espanto e na sua curiosidade. E, com a mão trêmula,

desenrolou a fita. Soletrou, a meia voz, para si mesmo: "À inesquecível

Ismênia, com todo o amor, de Otávio".

Antes de mais nada, aquele "inesquecível" foi nele uma espécie de

punhalada material. Ocorria-lhe uma reminiscência cinematográfica:

Rebecca, a mulher inesquecível. Virou-se para os presentes, que pareciam

também impressionadíssimos. Perguntava de um para outro:

— Otávio? Quem é Otávio? Vocês conhecem algum Otávio?

Não, ninguém conhecia. Mas ele corria, um por um, todos os

parentes: "Mas como é possível? Que negócio é esse?".

DRAMA

A obsessão passou a dominá-lo: voltou para perto da coroa e leu,

releu a legenda. Apertava a cabeça entre as mãos: "Todo amor por quê?".

Concentrou-se. Procurava descobrir, no fundo da memória, alguém que

tivesse este nome, E uma coisa o enfurecia: aquela coroa espetacular, tão

mais bonita e até mais cara que as outras. Fazia seus cálculos, em voz alta:

— O cara que mandou isto gastou os tubos. E por quê, meu Deus,

por quê?

Houve um momento em que o próprio Juventino se julgou também

um milionário, mas da loucura. Meteu-se num canto; já não falava mais

com ninguém, feroz e incomunicável. Quase ao amanhecer, alguém veio

oferecer um cafezinho. Saltou: "Vai-te para o diabo que te carregue!".

Passam-se os minutos, as horas. Todos os que chegam pasmam

para a fabulosa coroa. Finalmente, na hora de fechar o caixão, a própria

sogra, soluçando, vem chamar o genro: "Você não vai beijar fulana?".

Ergueu-se. Antes, foi ao escritório apanhar não sei o quê. Atravessou por

entre os parentes e vizinhos. Estava diante do caixão. E, súbito, mete a

mão no bolso e... Só viram quando ergueu um punhal e o afundou na

defunta, aos berros de:

— Cínica! Cínica!

A lâmina penetrou por entre as duas costelas. E a morta parecia rir


Nelson Rodrigues, O melhor do romance, contos e crônicas, Folha de São Paulo, 1993
Edição especial publicada com a autorização da família de Nelson Rodrigues e da Companhia das Letras