Como nossos pais, 2017, de Laíz Bodanzky, é
o filme da hora.
É a estória de Rosa (Maria Ribeiro) e seus conflitos familiares. Um marido, Dado (Paulo Vilhena), negligente à rotina estafante da esposa e a mãe, Clarisse (Clarice Abujamra, como sempre, impecável). Rosa, frustrada com suas atividades profissionais múltiplas, escreve uma peça de teatro e procura pessoas do meio para sua montagem. O tema da peça tem a ver com a estória de Rosa: inicia com o fim da peça Casa de bonecas de Ibsen, 1879, depois que a personagem Nora rompe com o marido e sai de casa. O que Nora fará depois do rompimento?
O filme deixa no ar o final do casamento Rosa / Dado.
A cena final da peça (em três atos) de Ibsen é antológica. A reprodução desta cena está no final deste post. Também uma entrevista da Maria Ribeiro à Carta Capital.
Brasil em Cena COMO NOSSOS PAIS - Entrevista com Maria Ribeiro
Maria Ribeiro está em praticamente todas as cenas de Como nossos pais, quarto longa metragem dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, que estreia nesta semana no Brasil. O filme conta a história de Rosa, mulher de 38 anos que se desdobra para ser profissional, mãe e esposa, lidando com conflitos familiares, desejos e frustrações pessoais.
Poucos dias antes da estreia nacional, Maria recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado por esta atuação. “É impressionante o número de mulheres que vem me dizer o quanto se identificaram com Rosa, e eu acho que ela é mesmo um símbolo da mulher do século 21”, diz Maria nesta entrevista exclusiva ao Cinema em Cena.
Cinema em Cena: Como nossos pais é um autêntico estudo de personagem no qual Rosa, que você interpreta, está praticamente em todas as cenas, e sempre em conflitos. Como foi o processo de composição dessa personagem?
Maria Ribeiro: A Rosa é uma personagem muito maravilhosa. Quando eu recebi o roteiro, a personagem já era muito rica, e eu sempre quis falar dessas questões. É um tema que me é muito caro, eu tenho prazer nesse cinema de comportamento: Domingos de Oliveira, Woody Allen, a própria Lais, um cinema meio dentro de casa, que tem momentos supostamente não tão grandiosos, mas que são grandiosos para quem está vivendo. Rosa é muito próxima de mim, das minhas amigas, ela traz temas que a gente está o tempo inteiro falando: como é que a gente vai dar conta de tudo, como é que você vai evoluir a sua relação com a sua mãe quando ela envelhecer. E, também, como não repetir com os seus filhos o que você recebeu dos seus pais e não concorda. Então, foi realmente um mergulho absoluto. Conversei com todas as pessoas que eu pude, as que tinham relações mais de conflito com a mãe. O tempo inteiro, eu sabia que ter esse personagem era como ter uma joia na mão e que, se eu não atrapalhasse, seria legal!
Cinema em Cena: Os diálogos nesse filme transmitem muita naturalidade. Houve algum tipo de criação coletiva nos ensaios, ou já durante o set, que tenha sido incorporado ao roteiro ou ele já era exatamente o que a gente vê na tela?
Maria Ribeiro: Nunca é, né? A gente sempre coloca na nossa boca, dá uma adaptada. Mas o roteiro já era muito bom. Há uma cena, na praia, na qual Rosa e Pedro (Felipe Rocha) estão falando sobre hábitos machistas, e eu achei que ela poderia citar um exemplo, como o de que o homem sempre quer dirigir, quando está com uma mulher. Aquilo brotou na hora, fazia sentido e incorporamos. Mas o diálogo já era certeiro, tinha uma construção de naturalidade muito grande, que está evidente na tela.
Cinema em Cena: Você acha que a Rosa, é a mulher do século 21, por excelência? Ela define esse comportamento da mulher?
Maria Ribeiro: Eu acho que sim, porque é impressionante o número de mulheres que vêm falar comigo e diz: “a Rosa, sou eu, sou eu!” Estou até querendo criar a hashtag #somostodosRosa, porque realmente é impressionante a identificação das mulheres com essa personagem (risos).
Cinema em Cena: Por outro lado, você acha que os homens vão ter algum tipo de reserva com essa história, não querendo se identificar com o Dado, marido da Rosa, vivido pelo Paulo Vilhena, justamente por ele ser mais passivo?
Maria Ribeiro: Eu acho que não, porque o Paulo defende muito bem o personagem dele. O Dado não é um cara do mal, é alguém que tem uma postura de “eu tô tentando”. Ele tem um passivo, uma questão cultural que, afinal, não é culpa dele. Até agora, a experiência que eu tenho tido, tanto na Europa, quanto no Brasil, como durante o Festival de Gramado, é dos homens gostarem muito do filme e agradecerem. Um filme desses, com essa história, contada de uma maneira tão verdadeira, não é para machucar, a gente só quer equilibrar um pouco mais para tirar um pouco o peso de cima das mulheres.
Cinema em cena: É uma percepção correta entender que, como a personagem Nora, da peça de Ibsen, citada no filme, Rosa também tem um final aberto?
Maria Ribeiro: Eu acho que sim, e eu gosto de um cinema que faz perguntas, mais do que dá respostas. O espectador pode pensar o que quiser, e eu acho isso incrível. Eu acho que é generoso e conta com a inteligência do espectador, para não ficar aquela coisa mastigada.
CENA
XV, 3º ato, Casa das bonecas, Henrik Ibsen.
Tradução:
Karl Erik Schollhammer e Aderbal Freire-Filho
(Torvald
dá umas voltas perto da porta.) Ah, como nossa casa é bonita, quente...
Aqui você está abrigada. E eu vou cuidar de você como uma pomba que eu salvei
das garras do falcão. Vou acalmar seu pobre coração palpitante. Pouco a pouco
vai passar, Nora, acredite em mim. Amanhã você vai ver tudo isso com outros
olhos. Logo tudo vai ser como antes. Não vou mais precisar repetir que eu lhe
perdoei. Você mesma vai sentir. Como você pode pensar que me passe pela cabeça
rejeitar você ou mesmo lhe censurar? Ah, você não conhece os verdadeiros
sentimentos de um homem, Nora. Nada é tão doce e prazeiroso para o homem quanto
saber que lá dentro dele perdoou sua esposa...e que perdoou de todo coração,
sinceramente. Porque ai ela se torna sua propriedade duplamente. É como se ele
a trouxesse ao mundo de novo, e alguma maneira ela passa a ser tanto sua mulher
como sua filha. Assim será você de agora em diante para mim, minha criaturinha
indefesa e perdida. Não tenha medo de nada, Nora. Seja apenas franca comigo e
eu serei sua vontade e sua consciência... O que é isso? Não vai dormir? Você
trocou de roupa?
NORA- (Vestida em sua
roupa normal.) É, Torvald, troquei de roupa.
HELMER – Mas, Nora, querida...
NORA- (Olhando
seu relógio.)
Não é tão tarde. Sente aqui, Torvald. Nós dois precisamos muito conversar. (Ela se
senta de um lado da mesa.)
HELMER – Nora, o que é isso?
Essa expressão dura?
NORA – Sente-se, vai demorar.
Tenho muitas coisas a lhe dizer.
HELMER – (Senta-se
à mesa diante dela.) Você me assusta, Nora. Eu não lhe entendo.
NORA – É isso mesmo. Você não me
entende. E eu também nunca lhe entendi, até hoje à noite. Não, não me
interrompa, apenas escute o que vou dizer. Isso é um acerto de contas Torvald.
HELMER – O que você quer dizer
com isso?
NORA- (Após um breve
silêncio.)
Estamos sentados frente a frente. Isso não chama sua atenção?
HELMER – Por que chamaria?
HELMER – Estamos casados há oito
anos. Não se dá conta que é a primeira vez que nós dois, você e eu, marido e
mulher, conversamos seriamente?
HELMER – Seriamente...O que quer
dizer?
NORA- Em todos esses oito
anos... sim, até mais...desde o nosso primeiro encontro, nunca trocamos uma
palavra séria sobre coisas sérias.
HELMER – Você acha que eu
deveria envolver você nas minhas
preocupações, e ainda mais sabendo
que você não podia fazer nada?
NORA – Eu não falo das suas
preocupações. O que eu digo é que nunca
falamos a sério, procurando
chegar juntos ao fundo das coisas.
HELMER – Mas, Nora, meu amor,
que importância isso teria pra você?
NORA- É essa a questão. Você
nunca me entendeu. Fui tratada tiranicamente Torvald. Primeiro por papai, e
depois por você.
HELMER – Por nós dois...? Os
dois que lhe amaram mais do que ninguém no mundo?
NORA – (Ela nega
com a cabeça.) Vocês nunca me amaram, apenas achavam divertido namorar
comigo.
HELMER – Nora, o que você está
dizendo?
NORA- A pura verdade, Torvald.
Quando eu estava na casa de papai, ele me dizia todas as suas opiniões e então
essas eram as minhas opiniões. E se tivesse outras eu escondia, porque ele não
ia gostar. Ele me chamava de sua criança boneca e brincava comigo, como eu
brincava com as minhas bonecas. Depois vim morar na sua casa...
HELMER – Que palavras você usa
para falar do nosso casamento!
NORA – (Imperturbável.) Quero dizer
que passei das mãos do papai para as suas. Você arrumou tudo segundo seu gosto
e eu passei a ter o mesmo gosto que o seu, ou fingi que tinha, não sei bem...
Acho que era um pouco as duas coisas, ora uma, ora outra. Quando eu olho agora,
me parece que vivi aqui como vive um pobre...que, de seu, mal tem a roupa do
corpo. Eu vivi das gracinhas que fazia para você, Torvald. Era o que você
queria. Você e papai cometeram um grande pecado contra mim. É de vocês a culpa
de que eu nunca tenha sido alguém.
HELMER – Nora, como você é injusta
e ingrata! Não foi feliz aqui?
NORA - Não, nunca fui. Eu achava
que era, mas nunca fui.
HELMER – Não foi? Não foi feliz?
Nunca?
NORA – Não, eu era alegre, só
isso. E você sempre foi muito gentil comigo. Mas nosso...lar nunca foi mais do
que um quarto de brinquedos. Aqui fui sua esposa boneca, assim como era a
criança boneca na casa do papai. E nossos filhos também foram minhas bonecas.
Eu achava divertido quando você brincava comigo, assim como eles achavam
divertido quando eu brincava com eles. Esse é o nosso casamento, Torvald.
HELMER – Não deixa de ter alguma
verdade no que você diz, apesar dos exageros. Mas daqui por diante tudo vai
mudar. Acabou-se o tempo da brincadeira, agora vem o tempo da educação.
NORA- Educação de quem? A minha
ou das crianças?
HELMER – Tanto a sua quanto a
das crianças, Nora, querida.
NORA – Ah, Torvald, você não é o
homem indicado para me ensinar a ser uma esposa verdadeira.
HELMER – E é você quem diz isso?
NORA- E eu, como ia educar meus
filhos sem estar preparada?
HELMER – Nora!
NORA- Você não me disse isso
ainda há pouco? Que não se atrevia a me confiar essa tarefa?
HELMER – Disse isso num momento
de exaltação, não leve à sério.
NORA- Mas você tinha toda a
razão. Eu não sou capaz dessa tarefa. Há umaoutra tarefa que precisa ser
cumprida antes. Tenho que educar a mim mesma. E você não é o homem indicado
para me ajudar. Tenho que fazer isso sozinha. E por isso... eu vou lhe deixar.
HELMER – (Levanta-se
num salto.)
O que foi que você disse?
NORA – Preciso estar só para
poder me conhecer e conhecer tudo que me rodeia. Por isso não posso mais
continuar com você.
HELMER – Nora! Nora!
NORA – Quero sair daqui agora.
Posso passar esta noite na casa de Cristina.
HELMER – Você está louca! Não
vou deixar, eu lhe proíbo.
NORA – De agora em diante você
não pode me proibir nada. Levo o que é meu. Não quero nada seu, nem agora, nem
depois.
HELMER – Que loucura é essa?
NORA- Amanhã viajo para minha
casa... Quero dizer, para o lugar de onde vim. Lá será mais fácil para mim
achar algum trabalho.
HELMER – Cega! Cega e
inexperiente.
NORA – Quero ganhar experiência,
Torvald.
HELMER – Abandonando seu lar,
seu marido e seus filhos. Não pensa no que as pessoas vão dizer?
NORA – Não quero me importar com
isso. Só quero saber do que é
importante para mim.
HELMER – Ah, é revoltante. Como
pode trair seus deveres mais sagrados?
NORA – Quais são os meus deveres
mais sagrados?
HELMER – E sou eu quem precisa
lhe dizer? Não serão os seus deveres para com o seu marido e seus filhos?
NORA- Eu tenho outros deveres tão
sagrados como esse.
HELMER – Não, não tem. Que
deveres?
NORA – Os deveres para comigo
mesma.
HELMER – Você é, em primeiro
lugar, esposa e mãe.
NORA – Já não acredito nisso. Em
primeiro lugar eu sou um ser humano, assim como você... Ou pelo menos vou fazer
um esforço para ser. Sei que a maioria lhe dará razão, Torvald. E sei que essas
coisas estão escritas nos livros. Mas eu não posso mais me satisfazer com o que
a maioria diz e com o que está escrito nos livros. Eu preciso pensar por mim
mesma sobre as coisas e tentar compreendê-las.
HELMER – Você não pode descobrir
quem é no seu próprio lar? Você já não tem um guia infalível nessas questões?
Você não tem a religião?
NORA – Ah, Torvald, eu já nem
sei bem o que é a religião.
HELMER – Como não sabe?
NORA – Só sei aquilo que o
pastor Hansen me ensinou quando me preparei para a crisma. Ele dizia que a
religião “é isso”, a religião “é aquilo”. Quando estiver longe de tudo e
estiver só, quero pensar sobre esse assunto também. Quero saber se o que o
Pastor Hansen disse é verdade ou, pelo menos se é verdade para mim.
HELMER – Ah, é inacreditável,
uma mulher tão jovem como você... Mas se a religião não serve para lhe
orientar, deixe-me pelo menos sacudir sua consciência... Pelo menos algum senso
moral você tem? Ou não? Diga, também não tem?
NORA – Talvez seja melhor nem
responder, Torvald. Nem saberia. Estou totalmente confusa com essas coisas. Só
sei que tenho uma opinião sobre isso completamente diferente da sua. Também
fiquei sabendo agora que as leis são diferentes do que eu pensava. E que essas
leis sejam justas, não entra na minha cabeça de jeito nenhum. Uma mulher não
tem o direito de poupar seu velho pai morrendo, nem de salvar a
vida do seu marido? Não posso acreditar.
HELMER – Parece uma criança
falando. Você não entende a sociedade em que vive.
NORA – Não, eu não entendo. Mas
agora quero procurar entender. Preciso saber quem tem razão: a sociedade ou eu.
HELMER – Você está doente, Nora.
Você está com febre. Eu acho que você está quase perdendo o juízo.
NORA – Nunca me senti tão lúcida
e segura como esta noite.
HELMER – E lúcida e segura você
abandona seu marido e seus filhos?
NORA – É o que vou fazer.
HELMER – Então só há uma
explicação.
NORA – Qual?
HELMER – Você não me ama mais.
NORA – Sim, é exatamente isso.
HELMER – Nora! Como você pode
dizer isso?
NORA – Ah, eu lamento muito,
Torvald, porque você sempre foi muito bom para mim. Mas eu não posso fazer nada
contra isso. Eu não o amo mais.
HELMER – (Esforçando-se
para manter-se calmo.) Isso também é uma convicção lúcida e segura?
NORA- Sim, totalmente lúcida e
segura. Por isso não quero mais continuar aqui.
HELMER – E você pode me explicar
como eu perdi seu amor?
NORA- Posso. Foi esta noite,
quando o prodígio não aconteceu. Aí eu vi que você não era o homem que eu
imaginava.
HELMER – Explique melhor, não
estou entendendo.
NORA- Oito anos eu esperei, com
tanta paciência! Porque eu sabia que um prodígio não aparece assim no dia a
dia. E de repente o prodígio ia acontecer. Enquanto a carta de Krogstad estava
lá fora... Nunca pensei, nem um só momento, que
você pudesse ceder às condições
desse homem. Tinha certeza absoluta que você ia dizer a ele: “vá, espalhe esse
caso para todo mundo”. E quando isso acontecesse...
HELMER – O que? Queria que eu
tivesse condenado minha própria esposa à vergonha e à desonra...
NORA- ...quando isso acontecesse
eu tinha certeza absoluta que você
HELMER – Nora!
NORA- Você vai me dizer que eu
nunca aceitaria que fizesse um sacrifício assim. Não, é claro. Mas de que
valeriam as minhas palavras diante das suas? No meio do meu pavor, foi esse o
prodígio que eu esperei tanto que acontecesse. E para evitar isso foi que eu
quis acabar com a minha vida.
HELMER – Nora, por você eu seria
capaz de trabalhar dia e noite com alegria. De agüentar dor e miséria por sua
causa. Mas não há ninguém que sacrifique sua honra por aquele que ama.
NORA- Centenas de milhares de
mulheres fizeram isso.
HELMER – Ah, você pensa e fala
como uma criança insensata.
NORA- Talvez. Mas você não pensa
nem fala como o homem a quem eu possa me unir. Uma vez passado o seu susto...
não daquilo que ameaçava a mim, mas daquilo que ameaçava você mesmo, e quando
todo o perigo tinha passado, era como se nada daquilo tivesse acontecido. Eu
era sua cotovia, exatamente como antes, sua boneca, que você de agora em diante
ia carregar com cuidado duplo nos seus braços, já que era tão frágil e
delicada. (Ela
se levanta.)
Torvald... naquele momento me dei conta de que vivi durante oito anos com um
homem estranho e que tive três filhos...ah, não aguento pensar nisso. Tenho
vontade de me rasgar em muitos pedaços.
HELMER – (Com voz
grave.)
Estou vendo, estou vendo. Abriu-se um abismo entre nós dois. Nora, não seria
possível cruzá-lo?
NORA- Como eu sou agora não
posso ser sua mulher.
HELMER – Eu tenho força para ser
outro.
NORA- Talvez... se lhe tirarem a
boneca.
HELMER – Me separar de você...
Não, não, Nora. Não posso aceitar essa ideia.
NORA- (Entra à
direita.)
Por isso mesmo tem que acontecer. (Ela volta com seu casaco e
chapéu e uma pequena valise que põe na cadeira da mesa.)
HELMER – Nora, Nora, agora não.
Espere até amanhã.
NORA- (Vestindo
o casaco.)
Não posso passar a noite na casa de um estranho.
HELMER – Mas não poderíamos
viver aqui como irmãos?
NORA- (Segurando
o chapéu.)
Você sabe que não ia durar muito tempo. (Se envolve no xale.) Adeus,
Torvald. Não quero envolver as crianças. Sei que estão em
melhores mãos do que as minhas. Assim como sou agora, não posso ser uma boa mãe
para elas.
HELMER – Mas algum dia, Nora,
algum dia...
NORA- Como posso saber? Eu nem
sei o que vai ser de mim.
HELMER – Mas você é minha
mulher, assim como é agora e assim como será.
NORA- Escute, Torvald. Quando
uma mulher abandona a casa do seu marido, como estou fazendo, o marido é
liberado de todas as suas obrigações para com ela. É o que diz a lei, pelo que
eu sei. Eu, pelo menos, libero você de qualquer obrigação. Não se sinta preso,
que eu também não me sentirei. Deve haver liberdade total de parte a parte.
Olhe, aqui está o meu anel. Me dê o seu.
HELMER – Isso também?
NORA- Também.
HELMER – Está aqui.
NORA- Então... agora acabou
tudo. Deixo aqui as chaves. As criadas sabem tudo da casa melhor do que eu.
Amanhã, depois da minha partida, Cristina virá juntar todas as coisas que eu
trouxe de casa. Queria que me mandassem.
HELMER – Acabou tudo! Nora, você
nunca mais vai pensar em mim?
NORA- Vou pensar em você muitas
vezes, nas crianças, nesta casa.
HELMER – Posso lhe escrever,
Nora?
NORA- Não, nunca. Eu lhe proíbo.
HELMER – Ah, mas posso lhe
mandar alguma coisa...
NORA- Nada, nada.
HELMER – Ajudar você, se for
preciso.
NORA- Não, já disse. Não aceito
nada de estranhos.
HELMER – Nora, nunca vou ser
mais do que um estranho para você?
NORA- (Pegando
a mala.)
Ah, Torvald, só se um prodígio...
HELMER – Que prodígio?
NORA- Que você e eu nos
transformássemos tanto que... ah, Torvald, eu não acredito mais em prodígios.
HELMER – Mas eu quero acreditar.
Diga, nos transformássemos tanto que...o que?
NORA- Tanto que a nossa vida,
juntos, pudesse ser...um verdadeiro casamento. Adeus. (Sai pela antessala.)
HELMER – (Afunda numa
cadeira ao lado da porta, pondo as mãos sobre o rosto.) Nora! Nora! (Olha
para a frente e levanta-se.) Nada. Ela não está mais aqui. (Uma
esperança aparece nele.) Um prodígio? (Escuta-se a porta fechar.)
FIM