quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O rabo da cachorra

Osorianas - parte 1            

No dia 25 de agosto de 1854 Francisco Barreto e Simão Antônio Marques assinaram a escritura de doação de terras para o patrimônio de Divino Espírito Santo. Barreto doou 62 alqueires e Simão 20 alqueires. A cidade de Barretos apareceu a partir daí. Na verdade nesta data eles não tinham a posse destas terras. A posse da Fazenda Fortaleza, dos Barreto, foi registrada nos assentos do capelão Justino Ferreira Rocha, em Jaboticabal no dias10 de abril e 29 de maio de 1856. A fazenda Monte Alegre, dos Marques, foi registrada junto ao mesmo capelão em 10 de abril de 1856. Nestes registros, em Jaboticabal, esteve presente José Francisco Barreto, filho de Francisco Barreto e genro de Simão Antônio Marques. José Francisco, na época, era casado com Mariana Cândida de Jesus (Mariana Librina).

Devido a esta posse até hoje, em Barretos, existe o “terreno foreiro ao Patrimônio do Divino Espírito Santo” com imposto em transações imobiliárias. O Divino fica com 2,5% do valor do imóvel.

Barretos (1854) é uma jovem cidade do século 19 assim como Jaboticabal (1828), Araraquara (1817), Frutal (1887), Batatais (1839), Bebedouro (1884), Campinas (1842), Ribeirão Preto (1856) e São José do Rio Preto (1852). Jovem se comparada a Jundiaí (1665), São Paulo (1554), Vitória do Espírito Santo (1551), Salvador (1549) e Rio de Janeiro (1565).

Conta Osório Rocha (no livro obrigatório Barretos de outrora, 1954) que Barretos em 1860 era um lugarejo amodorrado na pasmaceira e enervando-se na rotina. Nem a gente mais abastada tinha conforto, cultura, higiene e emoções artísticas. Para a maioria o cabo de enxada, da foice, do machado, sol a sol, ou lidas com o gado; alimentação ruim; mulheres fazendo sabão, azeite para as candeias, polvilho, laticínios rudimentares, torrando farinha, fiando, lavando roupas. O monjolo era a única máquina economizadora de trabalho. Nas povoações, os diz-que-diz-que, a politicagem rasteira, as conversas na botica e dos sórdidos botequins de cachaça, gazoza e cocada.

Mas nas décadas de 1860 e 70 ocorreram mudanças no amodorrado interior do Estado de São Paulo. A construção da ferrovia ligando Jundiaí a Campinas foi iniciada em 15 de março de 1861. Em agosto de 1875 inicia-se a construção da ferrovia (Companhia Mogiana) ligando Amparo, Jaguari e Mogi Mirim. O trem de ferro chegou a Barretos em 1909. E junto todos os benefícios e malefícios do capitalismo.
A geada de junho de 1870 devastou a região do Vale do Rio Grande. Nas palavras de Osório, quelque chose malheur est bom.  E assim vieram os rebanhos de gado e o café em alta pós-geada.
A rotina barretense na década de 1860 era de abertura de mais vendas e lojas além de muitas negociações de terras. Casamentos e batizados aconteciam aos montes. Mas tinha um problema: os padres vinham de fora da cidade. Vinham de Araraquara, Jaboticabal e Frutal.

Aí que vem a estória da cachorra do padre Sassi.

Segundo Osório Rocha em 16 de abril de 1874 ratifica-se a escolha do padroeiro da capela do Divino Espírito Santo. A paróquia foi canonicamente instituída em 2 de julho de 1887. O 1º casamento religioso foi de Manoel Francisco dos Santos e Maria Rosa de Jesus em 11 de julho e o 1º óbito foi de José Joaquim dos Passos em 15 de julho de 1887. Nesta época a capelinha em que estes ofícios se realizavam ficava próxima do local em que está, hoje, a Matriz. Ali na rua 18 entre as avenidas 19 e 21 no local em ficava a antiga Associação Rural do Vale do Rio Grande.
Mas só em 1º de setembro o padre Felipe Ribeiro da Fonseca Rangel, de Araraquara, lavrou o termo de abertura do respectivo livro, entregando-o ao padre Henrique Sassi . Os barretenses achavam esquisito o nome do padre. Sobre o nascimento do filho, o professor Ferreirinha anotou em seu diário, com a devida vênia, “foi baptisado pelo Padre Sacy”.

Padre Henrique Sassi foi vigário em Barretos de 1878 a 1880. Ele era muito amigo dos animais. Quando voltou para a Itália levou consigo muitos papagaios que já falavam algumas palavras em italiano. Tinha uma cachorra perdigueira de grande estimação. Quando a cachorra morreu o vigário teve o desatino de enterra-la no cemitério da avenida 21 (na verdade este cemitério localizava-se entre as avenidas 17 e 23 e entre as ruas 22 e 26).
Diz-se que o sacristão (e coveiro), de nome Marques, um dia no cemitério ouviu de cabelo em pé, uma voz vinda do túmulo da cachorra:
- Vocês me sepultaram em lugar sagrado. Agora, por castigo, Barretos vai afundar!
Marques saiu do cemitério aterrorizado. E não ficou por aí. Com o tempo o rabo da cachorra transformado em arvore cada vez mais grossa cresceu para os lados da igrejinha. Quando chegasse a tocar nos alicerces do templo, aí sim seria a desgraça.
Generalizou-se o pânico na cidade. Sem distinção de classe, o espanto estava entre lavadeiras, caipiras e gente abastada.
- Sá Mariana diz que o rabo da cachorra já tem três metros e está desta grossura!
- Valha-me Nossa Senhora das Dores! É castigo! Cruz credo, Ave Maria!


                                Edson Pereira Cardoso, novembro de 2012.


NB:
Nas palavras de Osório “naquele tempo, a semente das mais absurdas crendices e supertições achava terreno propício para germinar e propagava-se depressa na bisbilhotice das ruas do arraial. A população compunha-se em sua quase totalidade de analfabetos ou semialfabetizados nas escolas locais”.
É certo que em 1890 o analfabetismo atingia a cifra de 67,2% (Fernando de Azevedo). No interior do Brasil este índice, provavelmente, seria maior. Mas será que crendices tem relação direta com o analfabetismo? O DNA brasileiro é uma mistura de brancos, negros e índios. E junto toda a sua cultura. Somos a soma de mulatos (branco com negro), mamelucos (índio com branco) e cafuzos (índio com negro). Até hoje, sem distinção de classe, temos benzedeiras, mandingas, cartomantes, numerologia, amuletos e devotos (ateus) de São Jorge.
Enquanto existir cavalo São Jorge não anda a pé.

Para ilustrar transcrevo uma popular lenda indígena parente do causo da cachorra do padre Sassi.

A lenda da Mandioca
Em épocas remotas, a filha de um poderoso tuxaua apareceu grávida. Quis ele punir o autor da desonra de sua filha e para isto empregou rogos, ameaças e castigos. Tudo foi em vão a filha dizia que nunca se ligara a homem algum. O chefe tinha deliberado mata-la quando lhe apareceu em sonho um homem branco que disse para não mata-la, pois ela era inocente. Passado o tempo da gestação, deu ela a luz a uma menina lindíssima e branca, causando isto tanta surpresa que todas as tribos vizinhas vinham  vê-la.  Deram-lhe o nome de Maní e ela andou e falou precocemente.  Passando um ano morreu a menina sem ter adoecido nem dado mostras de dor.  Enterraram-na própria casa , segundo o costume do povo, descobriram  a casa e regaram a  sepultura.  Algum tempo depois brotou da cova uma planta desconhecida e por isso não a arrancaram. Cresceu, floresceu e deu frutos.  Os pássaros que comeram os frutos se embriagaram e este fenômeno estranho, aumentou-lhes superstição pela planta. A terra fendeu-se afinal; cavaram-na e julgaram reconhecer no fruto que encontraram  o  corpo  de  Mani. Comeram-no e assim aprenderam  a  usa-lo. O fruto  recebeu  o nome de Mani-oka que significa casa de Mani. Que é a nossa Mandioca de hoje.
              
http://www.velhobruxo.tns.ufsc.br/Lenda002.html  em 15/11/2012