terça-feira, 2 de março de 2021

Vozes da Covid-19

Profissionais de saúde e familiares de pacientes revelam exaustão, desencontros, falta de leitos e aumento das mortes

Pandemia cresce novamente a reboque da precariedade de hospitais e do relaxamento de medidas de isolamento social

Cintia Cruz e Constança Tatsch, O Globo, 02/03/2021

RIO — Ana Carolina deparou-se com a emergência do hospital lotada quando tentou internar o marido. Maria Luiza aguarda a alta de seu marido, que completa 83 anos na próxima sexta-feira. Alexandre diz que alguns pacientes têm dificuldade para aguardar um lugar na fila de leitos de UTI. Cristiene, que trabalha em uma enfermaria, não abraça seus filhos há oito meses, com medo de transmitir a doença. E Nathalia viu seus colegas, médicos, morrerem durante a pandemia. A Covid-19 aterrissou no país há quase 1 ano. A curva de casos e óbitos ensaiava uma queda no final de 2020, mas no ano novo as UTIs encheram novamente, e o número de óbitos não para de crescer.

 

A enfermeira Cristiene Faria: 'Acho que nós, profissionais de saúde, sentimos cansaço lá no início. Agora é exaustão e sobrevivência' Foto: Maria Isabel Oliveira

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A nova onda da Covid-19 veio embalada pelo relaxamento de medidas de isolamento social, especialmente no Natal, réveillon e carnaval, além da precariedade do sistema de saúde, que ainda não havia se recuperado dos contágios registrados no ano passado. O ano de 2021 mostra que o coronavírus, que agora também aparece com variantes, não tem data para sair de nosso convívio.

Ana Carolina Araújo: "A sensação é de estarmos entregues"
Jornalista, moradora de Salvador, reivindica financiamento do governo federal para a área da saúde
Constança Tatsch

Na quarta à noite, meu marido começou a ter sintomas de Covid: febre, dores no corpo, cansaço, dor de garganta, coriza, dor de cabeça e muita tosse. Ele tem 42 anos e obesidade leve. Ficamos medindo a saturação de oxigênio para ver a necessidade de hospitalização. Na madrugada de sexta pra sábado, começou a baixar e no sábado deu 89/90. A orientação era pra ir pro hospital se baixasse de 93, então fomos para o Hospital da Bahia. O medo era hipóxia silenciosa.

Ana Carolina: sensação de que colapso do sistema de saúde 'é calculado' Foto: Arquivo pessoal

Chegando lá, ele nem foi admitido. Disseram que a emergência Covid estava fechada havia 5 dias por falta de vagas. E que não adiantava a gente ir para o Santa Izabel, que é o outro hospital grande que atende nosso plano, pois também estava fechada. A recepcionista fez algumas perguntas sobre febre, e tal, e disse pra ele esperar em casa. Quando voltamos pra casa, de alguma forma, a saturação dele melhorou. Ele brincou que o corpo entendeu que era a única solução. Fizemos uma teleconsulta no sábado à noite e o médico disse que se baixasse de 93 era pra voltar pra emergência e insistir no atendimento, que era obrigação deles.

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Para mim, esse colapso é não só absolutamente previsível, mas até calculado. Com o nosso pacto federativo, a gente precisa de dinheiro federal pra saúde, mas a gente nem tem um governo....  A sensação é de estarmos entregues. Ontem meu marido estava péssimo, chorou a tarde toda. Não basta estar doente, ainda tem esse medo de morrer sem socorro. Estamos dando sorte que ele tem melhorado, mas sorte não é um recurso que a gente deveria precisar nessa hora.

Alexandre Zavascki: "Chegamos ao colapso"
Infectologista, infectologista que atua na enfermaria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, revela que há mais jovens internados em estado grave
Constança Tatsch

Hoje, para entrar no hospital, os critérios são restritos: só entra quem está com quadro muito grave porque a gente não está conseguindo dar o atendimento, os cuidados, nem mesmo para os casos muito graves. Está além da nossa capacidade física, de espaço, de equipamentos e, principalmente, não há leitos. O que estamos vivendo nos hospitais é a angústia de ver o paciente precisar de UTI e não ter vaga. Ele fica aguardando que desocupe ou que alguém venha a óbito. A fila é grande.

                                                           Alexandre: pacientes jovens estão entre os casos mais graves Foto: Arquivo pessoal

Temos pacientes em ventilação mecânica que estão fora da UTI. É uma medida de desespero, dar o cuidado crítico fora do ambiente adequado, mas se não fizesse isso o paciente morreria. Desde o início a gente diz que, se precisar de UTI, tem que entrar na fila. Muitos entendem, outros têm dificuldade de aceitar.
Sem dúvida nenhuma os pacientes são mais jovens e chegam com quadros muito graves já no começo da doença. Nos acostumamos a ver a piora no 14º dia da doença, agora tem paciente que chega com 5, 7 dias, de 20 ou 30 anos, já graves. O volume de pessoas chegando é impressionante. Realmente chegamos a um ponto que nunca tínhamos visto, chegamos ao colapso. Agora o que estamos tentando fazer é salvar o maior número possível de vidas. 

Nathalia Correa de Araújo: "É difícil manter o equilíbrio emocional"
Médica emergencista intensivista de hospital privado de Barra Mansa (RJ) afirma que vários colegas morreram devido à pandemia
Constança Tatsch

Para mim, como médica, cada plantão tem sido desgastante! É difícil manter o equilíbrio emocional vendo tantos casos aumentando diariamente. Eu e vários colegas já desenvolvemos quadros de ansiedade pelo desgaste, até mais emocional do que físico. Perdi vários colegas médicos dentro do hospital. E vi vários pacientes da mesma família sofrendo ao perder parentes. Tem sido muito angustiante.

 
Nathalia acredita que segunda onda traz mais complicações Foto: Arquivo pessoal

Acredito que seja o pior momento da pandemia. Essa segunda onda está mais grave, com mais complicações. Por ser tratar de um hospital privado, ainda não precisei recusar paciente ou escolher entre quem vai receber tratamento. Há leitos, porém poucos. Existe um CTI só pra isso que está cheio. Chegam pacientes de diversas idades, jovens e idosos, não tem mais parâmetro agora. Vemos idosos internando e se recuperando bem. E jovens que internam e infelizmente complicam e falecem. Essa doença não tem escolhido classe social e nem idade. Nunca sabemos como pode evoluir porque é tudo muito novo para a gente também.

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Na minha visão a situação de colapso na saúde é preocupante e desesperadora. Além do Covid estamos tendo que lidar com novos casos de dengue, doença que está voltando agora. Atendi essa semana a dois pacientes com dengue hemorrágica com indicação de internação. Não estamos preparados para enfrentar o Covid e casos de dengue com internação. Não haverá leitos para isso.

 Cristiene Faria: "A gente se assusta com a quantidade de óbitos"
Enfermeira do Hospital Pedro Ernesto diz que todos os leitos de dois CTIs estão cheios
Cintia Cruz

 Meu CTI e pelo menos mais um estão cheios. Do terceiro, não tenho informação. Semana passada, a taxa de ocupação estava 50%, 60%. Na quinta-feira, os leitos foram todos ocupados e a maior parte em estado grave e instável. A gente tenta estabilizar, fazer os primeiros cuidados para que eles tenham uma sobrevida, mas o desfecho não está sendo muito favorável para todos eles.

A enfermeira Cristiene Faria, no Hospital Pedro Ernesto: 'Parece que estou vivendo cinco anos em três meses' Foto: Maria Isabel Oliveira

 Antigamente, a gente se assustava muito com óbito. Hoje a gente se assusta com a quantidade de óbitos. A gente sabia que o óbito vai acontecer, mas espera que não sejam tantos numa semana.
Na semana passada, foram seis óbitos. Um deles foi uma paciente que tinha marido, filhas, falava muito da família. Ela queria falar com elas e a gente sempre procurava acalmá-la com mensagens positivas. Quando cheguei para o plantão, perguntei por ela e veio a notícia de que tinha ido a óbito. É nesse momento que a gente respira fundo e volta. Todos os dias, antes de deitar, rezo e peço pelos meus pacientes e pelos profissionais que trabalham comigo. Por todos eles.

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Eu tive todos os sintomas da Covid em março do ano passado, mas não positivei. Tomei a segunda dose da vacina dia 21 de fevereiro. Meu marido teve a doença em dezembro. Nosso filhos, de 8 e 13, estão bem. Mesmo assim, continuo com as medidas protetivas. Lavo a roupa separadamente, entro em casa e vou direto para o banheiro. Não abraço meus filhos há quase oito meses. Acho que nós, profissionais de saúde, sentimos cansaço lá no início. Agora é exaustão e sobrevivência. Tirei férias em novembro, mas parece que estou vivendo cinco anos em três meses.

Maria Luiza da Silva Paes: "Não vejo meu marido há duas semanas"
Dona de casa revela que não solta o celular, em busca de notícias do paciente de 82 anos, internado no Hospital Raul Gazolla
Cintia Cruz

 Dia 5 de fevereiro, meu marido teve muita tosse e cansaço. Levei para o Polo (de Atendimento Exclusivo à Covid-19) de Mesquita por volta das 10h. Lá mesmo, fizeram o exame e transferiram para a UPA. Fui junto na ambulância. Ficamos lá até as 19h, mas ele não quis ficar internado e fomos liberados. Dois dias depois, os sintomas continuavam. Marquei consulta numa clínica particular, mas eles nos mandaram para a UPA do bairro Botafogo, em Nova Iguaçu. Lá, foi atendido, medicado e liberado. Nos dia seguinte, só piorava. Dia 16, levamos de novo para o Polo de Mesquita e, mais uma vez, foi encaminhado para a UPA (Mesquita). De lá, transferiram, no mesmo dia, para o (Hospital Municipal) Raul Gazolla, no Rio. Desde então, a gente ainda não se encontrou mais. Não vejo meu marido há duas semanas.

Maria Luiza, que teve Covid-19, está se recuperando em casa enquanto espera o marido, internado com a doença, ter alta Foto: Maria Isabel Oliveira

 Lá em casa, eu e nosso neto tivemos (Covid-19) também. Comecei com os sintomas dois dias depois do meu marido. No quintal, são quatro casas. Todo mundo pegou, mas ninguém precisou ser internado. É a primeira vez que saio de casa desde que fiquei doente. Vim hoje ao hospital (Ronaldo Gazolla) pela primeira vez só para trazer os pertences dele. Mesmo se pudesse, eu não ia querer vê-lo. Vai se emocionar ainda mais, mas sei que já está na enfermaria e bem.

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Desde o dia 16, não soltei o celular. Todos os dias, o hospital ligava para dar notícias e eu ficava ansiosa aguardando o telefonema. Pensei que ele não fosse mais voltar. Com 82 anos, muito cansaço, falta de ar, diabético, hipertenso, obeso. Sexta-feira, ele completa 83 anos. Espero que tenha alta até lá. Eu já estou me restabelecendo para cuidar dele. Mesmo com as notícias sobre o aumento de casos da doença, eu não me desesperava. Sou muito de esperar a hora. Sofri, mas calada. Somos casados há 40 anos e tenho com ele uma filha de 36.







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