'Só não morri por causa dos meus filhos', diz herdeira da família mais cinematográfica do país
Após a morte do pai, Julia Barreto travou uma batalha contra as drogas e deu a volta por cima com o surfe. Agora, a neta de Barretão vai rodar seu primeiro longa-metragem em busca da mulher que se perdeu pelo caminho
Maria Fortuna, O Globo, 03/03/2021
Foi o mar que salvou Julia Barreto. Quer dizer, primeiro, foram os filhos. Caetano e Olivia despertaram na documentarista de 42 anos a urgência em emergir do fundo do poço, onde a dependência química a afogou por quatro anos. Depois, a água salgada. Por meio do surfe, encontrou o equilíbrio emocional para virar a chave. Agora, Julia quer descobrir a mulher que ficou pelo caminho.
Seu primeiro longa promete ajudar nessa busca. “Icamiabas – A força do feminino ancestral” parte da lenda amazônica sobre indígenas guerreiras (como as amazonas, na mitologia grega), que teriam montado uma aldeia matriarcal, para retratar mulheres contemporâneas que trazem a força feminina originária. Julia vai rodar o filme, no Pará, assim que a pandemia deixar (e a grana pintar).
Intimidade com o set ela tem. Produziu a série documental “Amálgama Brasil”, com Jorge Mautner (TV Brasil), o programa “Amor de 4” (Canal Brasil), assina a assistência de direção do filme sobre os 30 anos do Grupo Corpo. Além do mais, ela encarna a terceira geração da família mais cinematográfica do país, o clã por trás da produtora LC Barreto. É neta de Lucy e Luiz Carlos Barreto, o Barretão, sobrinha da produtora Paula Barreto e do diretor Bruno Barreto. É, antes tudo, filha de Fábio Barreto (com a hoteleira Marcia Ramalho). O cineasta, morto em 2019, era também seu melhor amigo, além de parceiro profissional. Julia trabalhou em todos os filmes dele desde “O quatrilho”, de 1995, indicado ao Oscar. A última parceria aconteceu em “Lula, o filho do Brasil”, de 2009.
‘Analfabeta emocional’
Foi naquele ano que a vida da documentarista começou a desmoronar. Numa noite de dezembro, Fábio sofreu o grave acidente de carro que o deixaria em coma por dez anos. Criada pelo pai e agora privada desse afeto, Julia surtou. Tinha dado à luz Olivia, sua segunda filha, havia um mês. O que não a impediu de cair na profunda depressão que corroeu seu casamento de 13 anos (com o hoje empresário Daniel Tendler) e a fez emburacar em compras e comida. Chegou a pesar 120 quilos.
— Na mesma tacada, perdi pai e marido. Minha estrutura deixou de existir. A vida acabou. Não sabia onde encontrar afeto. Era uma escassez de sentimentos... Virei uma analfabeta emocional — define.
Quando Paula, a tia, fala sobre o relacionamento entre pai e filha, dá para entender o tamanho do buraco.
— Fábio metia o bedelho em tudo na vida da Julia. Ia à casa dela todas as manhãs, abria a geladeira, fazia compras, cuidava do neto — detalha.
Julia passou a enganar o vazio numa roda viva de festas e noitadas em bares. Madrugadas regadas à álcool e muitas outras drogas, em que mendigava a atenção de quem lhe desse dois dedos de conversa.
Acordava em lugares que nem ela acreditava, muito menos se lembrava, deixava na mão parceiros de trabalho. Bateu o carro ao dirigir embriagada e teve princípio de overdose mais de uma vez.
— Eu não me amava, perdi o respeito por mim. Só não morri por causa dos meus filhos. Sempre que estava no limite, pensava: “Meu Deus, as crianças... não posso me expor a essa situações”.
Nesse momento, a família também bateu o martelo: já tinham, praticamente, perdido Fábio — outro que havia enfrentado a dependência química (“ele se internava, fazia um filme e voltava para a clínica”, lembra Julia). Lutariam por ela até o fim. Montou-se, então, a força-tarefa para resgatá-la. Veio a primeira internação numa clínica de reabilitação. Julia reagiu mal (“a química tira a razão da gente, eu precisava desintoxicar para entender tudo”). Aos poucos, a agressividade foi dando lugar à reflexão: “Quer morrer sem ver seus filhos crescerem?”, ela se perguntava.
Àquela altura, as crianças estavam morando com o pai, na casa da avó. Julia já tinha perdido quatro anos de convivência eles.
— Nunca me proibiram de vê-los, do jeito que eu estivesse. Daniel os levava à clínica, ele sabia que aquilo me resgatava — lembra.
Até que o filho mais velho, hoje com 14 anos, passou a a rejeitá-la.
— Ele não queria mais me ver. Meu filho não me abraçava. Quando eu me aproximava, me dava o ombro e me olhava de banda. Pensei: “Isso não tá certo, não botei duas crianças no mundo para não acompanhar”.
Mas as recaídas eram mais fortes. Foram várias, que ela enfrentava com reuniões do Narcóticos Anônimos e sessões de psicanálise. Nada, no entanto, interrompia o ciclo vicioso daquele “período trevas". Até que apelou para medicação pesada e para a eletroconvulsoterapia. O cabelo caiu, a menstruação sumiu, e Julia se transformou, em suas próprias palavras, numa “ameba”.
Era outra pessoa. A Julia que eu conhecia era forte, falante e extrovertida. Havia dado lugar a uma pessoa desconectada, sem memória nem vida — conta Carolina Monteiro, amiga da documentarista há mais de 30 anos.
Da prisão das drogas, havia passado à clausura mental. Enquanto vivia seu horror particular, o pai seguia em estado vegetativo no hospital. Era lá que ela deitava em seu colo para contar as novidades sobre os netos e sussurrar, orgulhosa, que estava “limpa”. Era raro, mas acontecia. Se o inferno de um estava ligado ao do outro, só ela podia reagir. Resolveu dar um basta no tratamento com eletrochoques.
O contragolpe chegou no pré-carnaval de 2018. Se viu novamente “doidona”. Sentiu medo e conseguiu reunir forças para se isolar na serra. Na volta, retornou ao NA. Trocou de psiquiatra e fez exames neurológicos. Queria entender como funcionava seu cérebro, que, de tão acelerado, fez o pai apelidá-la de “usina atômica”.
A sugestão para que praticasse um esporte que equilibrasse a mente veio do neurologista. E Julia se lembrou dos sucessivos convites da prima, Helena Barreto, para surfar. Quando subiu na prancha pela primeira vez, há três anos, no Arpoador... um mundo novo se abriu, havia encontrado o seu lugar. Desde então, a prática virou uma rotina que a fez se mudar para Copacabana, abandonar o cigarro que fumava desde os 11 anos, os amigos zumbis e a noite carioca. Agora, dorme às 20h e acorda às 5h. Medita, faz ioga, terapia, cozinha e cuida de quem ama.
— Fui salva pelo mar. Ele me ensinou que é maior e sempre vai ganhar, não adianta lutar contra. Aprendi a esperar a série passar, parei de ser reativa e impulsiva — enumera ela, que toma medicação controlada por um psiquiatra. — Mas leva tempo até se resgatar o entendimento da normalidade, desfazer e refazer padrões, normas de conduta e socialização. Isso só está acontecendo agora.
Pouco antes desse “agora”, mas já decidida a retomar as rédias da sua vida, Julia liberou o pai para morrer, em 2019.
— Fui lá e disse: “Pai, tá tudo bem. Vai nessa, sai dessa prisão. Desculpa, mas não estou precisando mais de você. Agora, preciso de mim, da mulher que tenho que descobrir e dos meus filhos”.
Ele se foi. A mulher, ela pretende encontrar fazendo seu primeiro filme (“Julia está pronta”, garante a tia Paula).
— Fui criada por um homem, não sei ser mulher. Não tenho sutileza, meu modo de me relacionar é abrutalhado. Com o filme, busco o meu feminino — analisa ela, que produziu o documentário “Escravidão no século XXI”, previsto para este ano na HBO, e trabalha agora na animação “Amazônika, a origem”, projeto de estreia da Amazônika S/A, nova produtora dos Barreto dedicada a projetos de sustentabilidade.
Ela também toca a produção do filme sobre os 25 anos da Cia. Deborah Colker, com direção de Heitor Dhalia.
— Julia tem intuição e fibra. Foi ela quem levou o avô para ver o nosso espetáculo, "Cão sem plumas", que provocou o filme. Ela sabia que aquilo ia bater nele, que se emocionou, chorou muito. Vários diretores gostariam de dirigir, e Julia foi contornando com tudo elegância e delicadeza —, elogia Deborah. — Ela faz parte de uma família consagrada, mas não tem nariz em pé. Não quer sentar na cadeira, mas aprender, estudar Tem humildade e escuta. Ela é o novo, o experimental dentro da família.
Agora, só falta resgatar a intimidade com os filhos.
— Esse é meu foco. Meu sonho é trazê-los para morar comigo — diz, antes de desabar num choro.
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