domingo, 7 de março de 2021

Uê e os labirintos do tráfico no Rio

Eraldo Medeiros, o Uê
Poder, traição e morte: A história do traficante que criou uma guerra dentro da própria facção
O Globo, 05/03/2021

Os passageiros do voo 375 da Varig, que decolou de Fortaleza com destino ao Rio naquela terça-feira, viravam a cabeça para a parte de trás do avião com pontos de interrogação na testa. Quem era o rapaz de vinte e tantos anos de idade na última fileira, algemado e cercado por 12 policiais armados? A resposta, porém, já ganhava destaque no noticiário das emissoras de TVs de todo o país.

   

O traficante Uê é levado de helicóptero para o presídio de Bangu 1 | Foto de Jorge Peter/Agência O GLOBO

O preso era Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, bandido mais procurado da capital fluminense numa época em que as milícias ainda não avançavam sobre as favelas, levando novas formas de tirania e disputando o controle de comunidades. Um grupo de 30 agentes havia passado 12 meses em seu encalço. A captura, no dia 5 de março de 1996, há 25 anos, num hotel quatro estrelas com vista para o mar do Nordeste, foi motivo de celebração na polícia e alterou o cenário do crime no Rio.

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Então chefe do tráfico no Complexo do Alemão, Uê estava se passando por um engenheiro de férias na capital cearense. Hospedado no apartamento 808 do luxuoso Seara Praia Hotel desde a sexta-feira anterior, com o nome de Juarez Soares de Oliveira, ele foi supreendido pelos policiais por volta das 10h.

- Percorremos vários hotéis até chegar naquele, onde uma camareira reconheceu Uê pela foto que mostramos na recepção. Quando subimos, ele estava saindo do quarto. Não houve resistência - relembra o detetive José Carlos Guimarães, chefe do grupo de policiais civis do Rio responsáveis pela captura. - Uê era o maior fornecedor de armas e drogas do estado. Ele controlava as rotas que vinham do Paraguai e estava em vias de fazer conexões na Colômbia que o tornariam ainda mais poderoso. A prisão dele quebrou essa trajetória.

Além de interromper a escalada de Uê no tráfico, a captura do bandido iniciava um novo capítulo na guerra fraticida que ele próprio havia gerado nas entranhas de sua antiga facção: o Comando Vermelho (CV).

Mas, para explicar esse conflito entre peixes grandes do tráfico, é preciso voltar mais no tempo. Ernaldo Pinto Medeiros nasceu na Favela do Adeus em 23 de abril de 1968. Ele tinha 12 anos quando começou a praticar pequenos delitos, influenciado pelo contato com alguns criminosos na comunidade. Segundo relatos, o pai de Uê guardava armas para traficantes em casa. Aos 17 anos, o jovem foi detido pela primeira vez, por assaltar um ônibus. Aos 18, foi preso novamente, por receptação de arma militar.

Em pouco tempo, Uê se tornou chefe do tráfico no morro onde nasceu, apadrinhado por José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, na época um dos principais líderes do Comando Vermelho. O elo com o bandido mais velho não apenas facilitou a ascensão de Uê na facção como também, mais tarde, salvou o traficante depois que ele organizou o assassinato de um outro figurão de seu próprio bando.

Orlando da Conceição era conhecido como Orlando Jogador por causa dos tempos como atleta do Olaria, clube de futebol da Zona Norte do Rio. Após deixar os gramados, tornou-se um dos maiores traficantes da cidade. Comandava a venda de drogas no Complexo do Alemão.
Em teoria, Jogador e Uê eram aliados, ambos líderes do CV. Mas Uê queria controlar as rotas de remessas de armas e drogas e enxergava em Jogador um rival. No dia 14 de junho de 1994, ele colocou em prática um plano traiçoeiro. O bandido fingiu ter sido "mineirado", ou seja, simulou que tinha sido sequestrado por policiais que o estariam extorquindo. Daí, enviou comparsas para "pedir a ajuda" de Jogador.

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Segundo as investigações da época, Jogador reuniu a tropa e colocou US$ 300 mil numa mala, dinheiro que serviria para libertar o "aliado". Quando menos esperavam, porém, a gangue de Uê sacou as armas. O então chefe do tráfico no Alemão e 11 de seus comparsas foram mortos sem ter tempo de reagir. O massacre foi noticiado pela imprensa, que destacou a execução do "maior traficante do Rio", traído por um membro de sua facção.

- Na época, Uê disse que matou Jogador porque ele tinha dado o tiro que deixou seu irmão numa cadeira de rodas. Na verdade, era tudo disputa pelo controle das rotas do tráfico - explica o detetive Guimarães, hoje lotado na Operação Barreira Fiscal.

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O assassinato de Orlando deu início a uma série de conflitos entre traficantes nas favelas e nos presídios. O Comando Vermelho foi rachado. De um lado, estavam aqueles que queriam a "pena de morte" para Uê. Do outro, os aliados do traficante. Muitos óbitos nos meses e anos seguintes foram atribuídos a essa guerra.

No dia 30 de agosto de 1994, Uê convidou repórteres de três jornais, entre eles O GLOBO, para uma entrevista coletiva, no Morro do Juramento. Armado com fuzis e pistolas, sentado num sofá com a cabeça coberta para não ser identificado, ele disse que não era responsável pela guerra que começou após a morte de Jogador.

-  Agora, tudo o que acontece, falam que sou eu. Ninguém investiga nada, a polícia não está nem aí - disse o bandido, que não confessou o assassinato, mas afirmou: - Aquilo foi um problema pessoal, questão famíliar.

Com a cabeça coberta durante entrevista em 1994, ainda em liberdade | Foto de Ricardo Leoni/Agência O GLOBO

Entre aqueles que queriam Uê morto, estavam os chefes mais jovens do Comando Vermelho. O bandido, porém, foi salvo por Escadinha e a ala mais sênior do bando. Os insatisfeitos criaram, então, o Comando Vermelho Jovem (CVJ), liderado por Marcinho VP, que vinha ganhando poder na facção e se tornou inimigo mortal do assassino de Orlando. Chamuscado, Uê deixou o CV, mas continuou crescendo no mundo do crime.

- Ele vendia um grande volume de armas e drogas para favelas, no atacado e no varejo. Comercializava até com rivais, por meio de laranjas - conta Guimarães, que também atuou na prisão de Marcinho VP, em setembro de 1996, quando o bandido já havia firmado parceria com o contrabandista de armas e drogas Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como Fernandinho Beira-Mar.

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Depois de preso, Uê teve frustrados os planos de criar as conexões que buscava com o crime organizado na Colômbia. Ele pretendia trazer remessas de cocaína a preços baixos e com mais qualidade. Por outro lado, cotinuou exercendo grande influência no tráfico do Rio de dentro da prisão. Foi no Complexo Peniteniciário de Bangu, na Zona Oeste, que ele fundou sua própria facção.

Com Uê e Marcinho na cadeia, em 1996, o conflito entre eles tomou conta do presídio de Bangu 1. Os aliados de Uê, ameaçados, começaram a pedir transferência para uma determinada galeria do presídio, dizendo que eram "amigos dos amigos de lá". Os "amigos de lá" eram Uê e seu parceiro Celso Luís Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém. Estava sendo batizada, então, a facção Amigos dos Amigos (ADA).

Uê no Fórum de Justiça, em agosto de 2002, semanas antes de ser morto | Foto de Ricardo Leoni/Agência O GLOBO

A ADA se aliou ao Terceiro Comando para disputar territórios com o CV, constituindo o Terceiro Comando dos Amigos. Coordenando a facção de dentro da cadeia, onde cumpria pena de mais de 200 anos de prisão, Uê continuou enriquecendo. Estima-se que seus negócios movimentavam cerca de R$ 20 milhões por ano, há duas décadas atrás. Sua mulher e filhos moravam numa casa de luxo no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste. Ele tinha ainda um sítio de cinco mil metros quadrados em Pedra de Guaratiba, na mesma região, com piscina, parquinho e campo de futebol.

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Mas, como a maioria dos traficantes, Uê não podia desfrutar de sua fortuna. Ele ficou preso até morrer de forma violenta, como muitos de seus pares.

Em abril de 2001, a polícia prendeu Fernandinho Beira-Mar, o contrabandista de armas e drogas que tinha se tornado chefe do Comando Vermelho e estava na Colômbia tentando fazer as conexões que Uê fora impedido de firmar. Assim como VP, Beira-Mar era um arquirrival de Uê. Ele foi levado para o Complexo de Bangu, que virou uma panela de pressão com a presença de tantos inimigos perigosos. No dia 11 de setembro de 2002, enquanto o mundo todo temia um novo atentado da Al-Qaeda, um ano após os ataques ao World Trade Center, a panela de pressão na Zona Oeste do Rio explodiu.

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Segundo escutas da Polícia Civil, Uê tinha um plano para matar o rival no presídio, mas o traficante nascido em Duque de Caxias agiu antes. Beira-Mar comandou uma rebelião que tomou o presídio de "segurança máxima" de Bangu 1. Com o controle das galerias, fazendo diversos reféns, ele e seus comparsas ficaram livres para eliminar quem quisessem. Cinco rivais do Terceiro Comando e da ADA foram assassinados. Entre eles, estava Uê. O corpo do traficante que provocara uma guerra em sua própria facção foi encontrado carbonizado dentro de sua cela.

"Está dominado", festejou Beira-Mar durante uma conversa por telefone gravada por uma escuta policial. Mais tarde, o líder da rebelião seria condenado a 120 anos de cadeia pelos assassinatos cometidos durante o motim. Em 2015, suas penas somavam mais de 300 anos de cadeia. Atualmente, o bandido cumpre pena na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

 

 

Ernaldo Pinto, o Uê, em registro de 1994, aos 26 anos | Reprodução




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