sábado, 31 de julho de 2021

Se ganhasse medalha hoje, não levaria a bandeira do Brasil no corpo (Adriana Araujo)

Medalhista olímpica: "Se ganhasse medalha hoje, eu não colocaria a bandeira do Brasil no meu corpo"

Do UOL, em São Paulo 31/07/2021

                                                               Adriana Araujo

No dia em que o Brasil conquistou a primeira medalha do tênis em Jogos Olímpicos, nas Olimpíadas de Tóquio, a responsável pelo primeiro pódio do boxe brasileiro, a pugilista Adriana Araújo, afirmou que já teve vontade de vender sua medalha de bronze conquistada em Londres-2012, conta que já precisou ser motorista de aplicativo e que se ela fosse medalhista hoje, não colocaria a bandeira brasileira devido à realidade para os atletas no país.

Durante sua participação no UOL News Olimpíadas, Adriana Araújo se emocionou ao falar da falta de incentivo ao esporte, criticou o governo e as empresas, que na visão dela só aparecem ao lado dos atletas em ano olímpico e não ajudam nos momentos mais difíceis.

"Essa é a realidade, infelizmente a gente vive no Brasil, é algo que estava dentro de mim. Se eu estivesse nas Olimpíadas hoje e eu fosse campeã, fosse medalhista novamente, eu não colocava a bandeira do Brasil no meu corpo. Não colocaria, infelizmente, porque é triste, é inadmissível, de que adianta você ser medalhista olímpica dentro de um país onde você não tem um incentivo", afirmou Adriana.

"Você não tem um apoio, infelizmente, esses patrocinadores aproveitadores, que é o que eu acho. Patrocinam as Olimpíadas? Mentira, cara, se você pegar um ano apenas e investir no atleta um ano e dizer que é patrocinador do atleta? Mentira, patrocinador é aquele que está ali lado a lado, desde o momento mais difícil até o momento bom da vida do atleta", completa.

Ela contou que em 2017, apenas cinco anos depois de conquistar a medalha em Londres, precisou trabalhar como motorista no Uber, que era reconhecida em algumas das viagens que fazia levando os passageiros e que pensou em vender a sua maior conquista.

"Em 2017 eu fiquei oito meses trabalhando no Uber. Teve uma situação, um rapaz que eu não ia pegar, porque estava em outro bairro, ia demorar um pouquinho, mais ou menos uns 10 minutos para chegar até ele e aí eu vi que ele deixou, não cancelou, vou lá pegar ele. Quando ele entrou dentro do carro, ele falou 'cara, eu só não cancelei porque eu vi a foto e eu queria ter certeza se era você', e aí quando entrou ele pediu para tirar foto", conta a pugilista.

"Vou ser bem sincera, isso aqui (medalha de bronze) já me deu vontade de vender. Qualquer valor que viesse para pagar minhas contas, eu tenho já há alguns meses que estou sem trabalhar, estou dando aula, alguns meses sem ter dinheiro em mãos e já me deu vontade de vender isso aqui, cara. Eu preciso pagar contas, preciso sobreviver e aí? É a realidade, esse é um dos motivos que hoje se eu estivesse nas Olimpíadas, não botava a camisa do Brasil. Para quê? Eu sou brasileira para quê? Se amanhã, para mim, o boxe acabasse, eu sou uma pessoa totalmente realizada porque sei de onde vim, sei o que eu passei, sei o que eu superei para conquistar isso aqui", conclui.


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Ensino remoto x ensino presencial

 84% dos alunos do ensino médio afirmam estudar mais na escola, diz pesquisa

Ana Paula Bimbati
Do UOL, em São Paulo, 30/07/2021 10h30

Pesquisa feita pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo) e o Instituto Vox Populi aponta que 84,1% dos alunos do ensino médio nas escolas públicas dizem que estudam menos horas no ensino remoto do que nas aulas presenciais. O levantamento foi feito entre os dias 22 de junho e 8 de julho com 600 estudantes, 1.500 professores e 1.500 pais de alunos no estado.

A dificuldade com o ensino remoto pode estar ligada com a falta de acesso à tecnologia, principalmente por alunos pobres e de escolas públicas. Dados da mesma pesquisa revelam que 37,5% dos estudantes têm apenas o celular para estudar.

Computador ou notebook é equipamento menos comum entre os alunos, já que 42,5% disseram que não possuem o item em casa. O aceso à internet tem sido uma barreira durante a pandemia, segundo especialistas e pesquisas do tema. Um estudo da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), lançada na semana passada, indicou que 25% das cidades classificaram o a conectividade dos alunos como "maior grau de dificuldade".

A pesquisa da Apeoesp também perguntou aos participantes se o estado ou a escola ofereceu "condições de acesso a plataformas virtuais de ensino" como equipamentos, pacote de dados de internet e suporte em caso de dúvidas. Dos alunos, 63,2% disseram que não receberam nenhum tipo e apenas 10,1% recebeu ao menos uma oferta. Em relação aos professores, 54,3% disseram não ter recebido nenhuma ajuda e 15% receberam alguma oferta.

Enquanto a maioria dos alunos acredita ter estudado menos horas no online, 49,2% dos professores disseram que trabalharam por mais horas no formato remoto e 17,4% apontaram que a carga horária continua igual. Em média, segundo a pesquisa, os alunos entrevistados estudaram cerca de três horas por dia. Nas escolas, um dia de aula costuma durar de 4 a 5 horas.
Professores (65,6%), pais (63,5%) e alunos (62,5%) concordaram que o ensino remoto prejudica o desempenho do estudantes. Outros 18,7% dos responsáveis afirmaram que é indiferente o formato de estudo para o desenvolvimento do aluno.

Volta às aulas presenciais 

A ampliação das aulas presenciais está marcada para acontecer a partir de segunda-feira (2), o tema porém levanta embates desde o ano passado. Para 48,3% dos alunos entrevistados, os governos estadual e municipal não têm oferecido nenhum apoio para que as escolas tenham condições adequadas para as aulas presenciais. Além disso:
39,7% para dos alunos o poder público tem dado apoio; 55,3% dos professores disseram que governo tem dado um tipo de apoio e 39,4% dos pais de estudantes responderam que o estado e a Prefeitura não tem dado nenhum apoio.

O medo de ser contaminado pela covid-19 com o retorno das aulas presenciais é quase um consenso entre os três públicos. 85,6% dos professores temem a infecção — entre os alunos esse índice é de 76,1% dos alunos e entre os pais, 81,8% estudantes.

Mais da metade dos professores (56,2%) e das famílias (51,3%) desaprovam o retorno presencial das aulas neste momento. Entre os alunos, o índice ficou em 44,1%.

Em tempo:
Projeto do capital para a educação, volume 4: O ensino remoto e o desmonte do trabalho docente

In https://www.andes.org.br/


quinta-feira, 29 de julho de 2021

Ferrogrão

MAIS IMPACTOS PARA POVOS INDÍGENAS
Ferrogrão segue modelo de retrocesso na Amazônia

Por Juliana Arini, 27 de julho de 2021, Le Monde Diplomatique Brasil

Ferrovia EF-170 MT/PA impactará 48 áreas protegidas, entre terras indígenas e unidades de conservação, e pode fazer o Brasil renunciar à Convenção 169 da OIT.

O direito de ser ouvido antes de um grande projeto de infraestrutura ser construído, novamente, torna-se uma questão para povos indígenas e populações tradicionais da Amazônia. Desta vez, as comunidades contestam o projeto de uma ferrovia: a Ferrogrão ou EF-170 MT/PA.  Projetada para percorrer mil quilômetros entre Itaituba, no Pará, e Sinop, no Mato Grosso, a ferrovia ligará o porto de Miritituba (PA) à maior região produtora de grãos do país, o nortão mato-grossense.

O governo federal afirma que, mesmo sem consulta, o leilão da obra deve acontecer até outubro de 2021. Com 933 km de extensão, a ferrovia está estimada pelo governo federal  em  R$ 21,5  bilhões de investimentos ao longo da concessão.  A Ferrogrão, tal qual obras que foram leiloadas e licenciadas sem oitivas aos indígenas como a Hidrelétrica de Belo Monte no Pará, é justificada pelo discurso de prioridade para a economia do Brasil. A redução de custos com o frete das safras é o argumento dos defensores.

Para ser leiloada no prazo previsto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a obra exigirá mudanças na legislação brasileira. A primeira destas modificações  já aconteceu depois da aprovação da lei nº 13.452/2016, que ampliou  a faixa de domínio da Rodovia BR-163, a Cuiabá (MT) e Santarém (PA). Esta alteração foi  feita para estabelecimento do traçado da ferrovia.

“Ao ser proposta dentro das faixas de domínio da BR-163, os proponentes do projeto afirmam que a ferrovia não trará mais impactos, uma vez que não irá alterar o que já foi alterado pela estrada. O que é altamente contestável. Outro ponto é que o projeto se auto intitula um investimento verde, mas não há muitas explicações no projeto sobre isso”, afirma Paulo Zahan Taques, advogado do Instituto Antônio Augusto de Leverger (IAAL), uma das entidades que contesta a ausência de oitivas aos povos impactados.

Recentemente, o governo federal  busca registrar a Ferrogrão como uma obra que evitará emissões de até 77% de CO2 no transporte da safra de grãos. Caso isso ocorra, será possível inclusive vender crédito de carbono com o projeto.  Porém, no cálculo apresentado pelo governo federal não está contabilizado  o aumento do desmatamento em decorrência da Ferrogão,   que será, justamente, nos dois dos estados  que representam mais de 61,89% do que foi desmatado na Amazônia em 2020, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A segunda modificação proposta para possibilitar a construção da Ferrogrão segue  em análise no Supremo Tribunal Federal (STF). A Medida Provisória 758/216 prevê a redução do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará, que fica em uma região líder em queimadas e desmatamentos, segundo o Imazon.   Em março, o ministro do STF, Alexandre de Moraes,  suspendeu a Lei 13.452/17, originada da MP, que excluía 862 hectares do parque. A decisão final será votada no plenário do STF. Nesta decisão também segue suspenso todo o licenciamento da ferrovia.

Outro possível impacto  da Ferrogrão pode afetar o direito dos povos e comunidades tradicionais do país todo. . ​​A construção da ferrovia  pode ser um dos propulsores para o Brasil abandonar a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O artigo 60 deste acordo internacional, do qual o país é signatário desde 2002, prevê a  obrigação de realizar consultas prévias, livres e informadas com povos indígenas e demais populações tradicionais afetadas por qualquer projeto, seja do Legislativo ou do Executivo.

Tramita no Congresso Nacional o projeto de lei  177/2021, que propõe que o Brasil deixe de ser signatário da  a Convenção 169. O PL está para análise na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. De autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB – RS), a proposta permite que o presidente Jair Bolsonaro abandone a Convenção 169 da OIT.

Se o PL não for aprovado, a adesão do Brasil à Convenção segue automática  até setembro de 2032, quando novamente  poderá ser revista. Se for aprovado, os indígenas e demais populações tradicionais, como os quilombolas, perdem voz nas decisões sobre a ferrovia e outros projetos que possam ser propostos e afetem seus territórios ou direitos.

O Ministério Público Federal divulgou uma nota  sobre   a possibilidade do país deixar a Convenção em junho.  “A eventual saída do Brasil da Convenção 169 da OIT só demonstraria a nossa incapacidade de lidar com a diversidade que sempre foi uma das nossas principais características como nação. É dizer: ao invés de dialogar com os nossos povos tradicionais, vamos simplesmente calá-los”. A afirmação foi feita pela coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), Eliana Torelly, durante um webinário no qual foi discutida a importância do tratado internacional para a defesa dos direitos das comunidades tradicionais brasileiras. O evento – promovido pelo MPF em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) – teve como foco o debate sobre a tramitação do projeto de lei  que pretende autorizar o presidente da República a retirar o Brasil do rol de nações que fazem parte da Convenção 169.A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho (ANPT), entidades que congregam e representam os Procuradores e as Procuradoras da República e do Trabalho de todo o país, publicaram nota técnica  contra a aprovação do PDL.

No dia 15 de agosto, uma delegação internacional chega ao Brasil  para pressionar contra a construção da Ferrogrão. A comitiva é ligada à Internacional Progressista, entidade criada no ano passado pelo senador americano Bernie Sanders e pelo ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis, e que reúne políticos, ativistas e celebridades de diferentes países.

Consultas prévias, livres e informadas

O direito de ser ouvido e comunicado sobre os impactos  é a principal demanda dos povos indígenas em relação à Ferrogrão. Ao  menos cinco nações indígenas reivindicam oitivas, como os povos Munduruku, Kayapó, Apiacá, Terena e Panará. Eles alertam que a ferrovia pode afetar 49 terras protegidas, entre indígenas e unidades de conservação. O impacto  mais grave é o aumento do desmatamento na Amazônia. Se forem considerados os impactos sinérgicos da construção de novos portos fluviais, terminais de navegação e silos, essa pressão sobre a Amazônia e o Cerrado aumenta.

Áreas protegidas são fundamentais para a conservação de floresta, segundo estudo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, publicado em junho de 2021, “Povos Tradicionais e Biodiversidade: Contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”. O artigo dos pesquisadores Antonio Oviedo, do Instituto Socioambiental (ISA), e Juan Doblas, do Inpe, mostra que as terras indígenas são os territórios tradicionais que mais preservam a floresta: apenas 2% da cobertura foi perdida em 33 anos.

A luta para que o direito a consulta seja respeitado  fez a Ferrovia EF-170 MT/PA  ser um dos temas dos protestos indígenas, que aconteceram em Brasília durante o Levante pela Terra, encontro que durou até o dia 20 de julho e reuniu etnias de todo o Brasil. A Ferrogrão também motivou  reuniões entre caciques e representantes dos três poderes.

“Não é apenas uma ferrovia, pois abre precedentes para discutir a necessidade de se ouvir os indígenas  e trás junto a necessidade de novas hidrelétricas para gerar a energia que o agronegócio demanda. Eles também não estão discutindo os impactos de mais silos de grãos, desmatamento e a pressão por mineração nas terras indígenas e no entorno.”, diz Alessandra Munduruku, liderança do território mais próximo da área onde será o terminal final da Ferrogrão, em Itaituba, no Pará.

“Mas  não vamos desistir dos nossos direitos. Nos reunimos com os ministros do Tribunal de Contas da União e do Supremo Tribunal Federal . Temos esperança de que a lei e os acordos internacionais dos quais o Brasil faz parte não serão desrespeitados”, diz.

Outro lado

Agência Nacional de Transportes  Terrestres (ANTT), a proponente da Ferrogrão, defende que as consultas aos indígenas já aconteceram. “É preciso lembrar que a ANTT realizou a Audiência Pública nº 14 de 2017 para que a população e interessados em geral, como um todo, pudessem se manifestar. As sessões públicas presenciais sobre a Ferrogrão foram realizadas em Cuiabá/MT, Belém/PA, Brasília/DF, Itaituba/PA e Novo Progresso/PA, com a presença e a participação efetiva de diversas lideranças indígenas [1]. Durante a audiência pública mencionada foram ouvidas as etnias do Parque Indígena do Xingu, Munduruku, Kayapó, além de outras, tanto nas sessões públicas presenciais da Audiência Pública como em reuniões privadas na ANTT, em Brasília”, respondeu os representantes da ANTT, através de sua assessoria.

“Esse é o problema. Eles acreditam que as audiências são consultas e não é o que diz a lei. Eles deveriam ter realizado visitas aos territórios indígenas. As audiências nem aconteceram, nós protestamos quando descobrimos que muitos não poderiam participar. E mesmo assim eles disseram, em 2019, que o processo tinha acontecido.”, diz o cacique Francisco Munduruku. “Na época nem o traçado da Ferrovia foi apresentado”, conclui.

 

A ANTT assume que as informações transmitidas na audiência pública estavam incompletas.  “À época da audiência ocorrida, não se dispunha de informações concretas para se delimitar quais Terras Indígenas seriam impactadas e, com a maturação desse traçado, foi possível realizar as plotagens e assim determinar quais Terras Indígenas teriam a presunção de serem afetadas. Sobre esse assunto, cabe esclarecer que a delimitação dos povos indígenas participantes do processo de licenciamento ambiental é definido pelos parâmetros da Portaria Interministerial MMA/MC/MJ/MS nº 060/2015, a partir de provocação do órgão licenciador, e encontra-se especificada no Termo de Referência Específico (TRE) da Ferrovia, expedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) à Empresa de Planejamento e Logística (EPL), em setembro de 2019.”, afirma a assessoria da ANTT em nota à reportagem.

Para a ANTT, nem as terras indígenas que estão a menos de 40 quilômetros do  traçado dos trilhos serão incluídas no licenciamento ambiental da obra. “Com as informações disponíveis até o momento no processo de licenciamento ambiental, não se presume a ocorrência de afetação às terras indígenas Baú e Menkragnoti, do povo Caiapó, que, segundo análise cartográfica oficial realizada pela Funai (Informação Técnica nº 110/2020/COTRAM/CGLIC/DPDS-FUNAI), estão distantes, respectivamente, 29,91 km e  47,7 km da Ferrogrão.”, diz a nota da Agência.

Os povos que reivindicam o direito à consulta afirmam que o anúncio da Ferrogrão já traz impactos. Desde que começou a ser debatido o projeto, o fluxo de caminhões nas estradas que contornam as aldeias teria duplicado. “Eu imagino quando liberarem esse trem. Toda soja que vem da região de Querência (MT) pelo Xingu vai acabar aqui pela MT-322. Da forma como esta hoje muitos animais já morreram atropelados. Isso também acaba incentivando os produtores a arrendar sítios, e com isso vem os pesticidas e queimadas. E isso tudo sempre impacta nosso território. É isso que precisamos debater.”, reivindica Messias Clemente Rondon, liderança do povo Terena.

Lembranças de horror

Os Terena, originalmente do Mato Grosso do Sul, têm uma história marcada pelos planos nacionais de infraestrutura. A abertura de grandes fazendas e estradas em seus territórios ancestrais os relegou à condição de “povos sem terra” por mais de vinte anos. Eles acabaram perdendo suas terras para esses empreendimentos.

Depois de um processo contra o governo federal, o povo Terena ganhou uma indenização (ainda não paga) de 2 mil hectares de terras demarcadas, em outro estado e bioma, no Norte de Mato Grosso. É nesse novo território, vizinho à área Caiapó e Panará, que eles aguardam com apreensão os desdobramentos sobre a Ferrogrão.

Os Caiapó discordam da ANTT sobre as oitivas e impactos. Em agosto de 2020, um grupo Caiapó parou a BR-163, na altura de Novo Progresso (PA), em protesto contra a ferrovia. Foram cinco dias até que a Advocacia Geral da União (AGU) entrasse com um pedido à Polícia Federal para retirada dos indígenas da rodovia.

“Nossa terra é a mais próxima do trilho e o estudo diz que não vai impactar. Basta olhar e lembrar da história da BR-163 e ver as plantações de soja que já estão beirando a reserva. Imagina com essa Ferrogrão. Já tem agrotóxico matando todos os nossos peixes. Depois desse projeto, os empresários vão vir com mais força e cortar mais floresta.  Precisamos ser ouvidos sobre os problemas que já existem e os que ainda irão aparecer.”, reclama Mydjere Kayapó, presidente do Instituto Kabu, organização que reúne 11 aldeias das terras indígenas Baú e Mekrãgnotire.

Segundo as lideranças, há cinco anos os Caiapó tentam debater a Ferrogrão. Em de 2017, o povo Caiapó Mekragnotire enviou um ofício ao Ministério de Transportes, Portos e Aviação Civil solicitando participarem da consulta. Em março de 2021, após descobrirem que a ANTT pediu ao TCU liberação do leilão, novamente uma comitiva indígena visitou Brasília. O grupo formado pelos líderes Munduruku e Caiapó foi recebido pelo ministro Aroldo Cedraz,  relator do processo sobre o leilão da Ferrogrão, e pela  ministra Ana Arraes, presidente do TCU. 

Atualmente, o TCU e o STF são as instâncias que irão definir o futuro da Ferrogrão.  Segundo resposta da assessoria do tribunal , dois processos correm sobre a EF-170, ambos de relatoria do ministro Aroldo Cedraz. “O TC 037.044/2020-6 tem por objeto uma representação do Ministério Público Federal acerca de possíveis violações de direitos de povos indígenas no projeto da Estrada de Ferro EF -170 (Ferrogrão). O relator, ministro Aroldo Cedraz, ouvirá o Ministério Público junto ao TCU antes de se pronunciar nos autos. Já no TC 025.756/2020-6 o Tribunal vai analisar a Concessão da EF-170 (Ferrogrão)”, explicou em nota à reportagem. 

Nenhum dos processos teve decisão do TCU publicada até o fechamento desta reportagem.

Outros impactos

Além dos indígenas, pescadores e moradores das cidades por onde os trilhos irão passar contestam o projeto. A ação movida pelo IAAL tem como foco grande parte dos povos indígenas e das comunidades tradicionais impactadas, entre estes os Caiapó de Mato Grosso, Apyaká, Panará, Terena e a colônia de pescadores Z53 do Pará, entre outros.  “Além do impacto nas comunidades, muitos locais de importância histórica e cultural serão literalmente rasgados pelos trilhos”, explica o representante jurídico do IAAL, Paulo Taques.
Em maio, o Ministério Público Federal também publicou um pedido reforçando a necessidade das oitivas.

Pró-ferrovia

 A obra segue movimentando polêmicas. Apesar de tantas vozes contrárias, a Ferrogrão conta com um defensor de peso, o presidente Jair Bolsonaro e membros do primeiro escalão do governo. No início de junho, o ministro da infraestrutura, Tarcísio de Freitas, declarou durante o Fórum Brasil de Investimentos 2021 que tem segurança jurídica para leiloar a ferrovia.
“[A Ferrogrão] Tem o poder de jogar a tarifa para baixo e tornar os nossos produtores extremamente competitivos em relação aos nossos pares ao redor do mundo. E a ferrovia faz sentido porque vai atender um estado que vai produzir em 9 anos 120 milhões de toneladas de grãos por ano. Quando nós começamos a estruturar esse projeto o Mato Grosso produzia 50 milhões de toneladas, hoje produz 70 [milhões de toneladas] três anos depois”, afirmou.


O projeto

 A ferrovia AEF-170/MT/PA, a Ferrogrão – como foi denominada pelo grupo Estação da Luz Participações Ltda (EDLP), proponente dos estudos, integra o Programa de Parcerias de Investimento e a criação do novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A proposta é fazer a conexão do Porto de Miritituba, em Itaituba, no Pará, com Sinop, em Mato Grosso, percorrendo 933 quilômetros com trilhos.

Estão previstos, também, o ramal de Santarenzinho, entre Itaituba e Santarenzinho, no município de Rurópolis/PA, com 32 km, e o ramal de Itapacurá, com 11 km.
Segundo a ANTT, o investimento público previsto é de R$ 6,2 bilhões, deste montante o investimento para custos socioambientais seriam de R$ 756 milhões, o que inclui obtenção de licenças e compensações socioambientais.

Juliana Arini é jornalista
[1] Todos os registros das contribuições e documentos dos estudos técnicos podem ser encontrados aqui

Em tempo: A questão se repete. Neste Blog já tratamos de assunto correlato. Ler Terra inacabada  de 07/11/2011

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Olimpíada enxerecada

A Olimpíada mais enxerecada da história

Milly Lacombe, UOL, 26/07/2021

Quem está de alguma forma ligado na Olimpíada de Toquio já percebeu que as mulheres estão fazendo um barulho inédito, dentro e fora dos Jogos. Dentro, vem das mulheres algumas das mais contundentes manifestações sócio-políticas, que até aqui envolveram a luta por usar uniformes confortáveis e que não necessariamente sirvam mais ao desejo hétero-normativo masculino do que à comodidade, apoio aberto aos direitos das populações originárias, dos movimentos negros e da comunidade LGBTQ.

Fora dos tablados, quadras, campos, ginásios e piscinas, embora o contingente de jornalistas ainda seja majoritariamente masculino, temos pela primeira vez na nossa história mulheres narrando e comentando competições variadas, o futebol entre elas.

E, não por acaso, veio da boca da comentarista de Skate do Sportv, Karen Jonz, o verbo que talvez seja o definidor dessa edição olímpica: xerecar. Ao testemunhar a queda da competidora com as pernas abertas sobre o corrimão, Jonz disse que a atleta tinha xerecado, e, diante do silêncio de seus companheiros de estúdio que ou não entenderam ou ficaram levemente constrangidos, ela explicou que cair daquele jeito doia demais.

Xerecar, ao contrário do que possa parecer de imediato, não precisa ser gesto que envolva a proprietária de uma buceta (se você se chocou ao ler aqui a palavra, mas não se choca quando lê, por exemplo, "pau" temos aí um detector de preconceito. Nesse caso, não é preciso se assustar ou se recriminar. O machismo está em todo mundo e o primeiro passo é a consciência dessa realidade. A partir dela, trabalhamos todos os dias para nos desconstruir).

A dança da vitória de Rayssa Leal, uma dança que se espalhou delirantemente por um Brasil que se enxereca um pouco mais a cada dia, é um grande evento enxerecador.

Xerecar é um jeito enxerecado de ver o mundo. Pode estar no gesto do jogador que dedica seu gol a Oxossi e, portanto, se manifesta contra o racismo religioso, pode estar numa declaração pelo direito de existir do povo Palestino, pode estar no narrador que cita em alto e bom som o nome do Orixá a quem o atacante acaba de dedicar o gol, e certamente está no jogador de vôlei que não tem medo de se mostrar feminilizado.

Xerecar é toda e qualquer luta por direitos humanos. É se deixar atravessar por emoções, vulnerabilidades, medos, paixões. É saber que existem homens com bucetas e mulheres com pau. É querer aprender o que é uma pessoa trans não binária e como se utilizam pronomes neutros. É saber que vamos errar, falar coisas impróprias e indelicadas, que seremos corrigidos, corrigidas e corrigides e que, a partir do deslize, nos esforçaremos para aprender a existir e se relacionar nesse novo mundo.

Um homem cis e heterossexual pode perfeitamente xerecar a vida adoidado, assim como muitas mulheres conservadoras são completamente incapazes de exerecarem-se.

Esse enxerecamento da vida não tem volta, eu sinto informar. Pois vejamos: a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, em Atenas 1896, teve apenas atletas homens porque era quase uma unanimidade a noção de que mulheres eram pessoas fisicamente incapazes de competir nesses níveis.

Quatro anos depois, em Paris, pudemos competir pela primeira vez. Entre os 997 atletas, 22 eram mulheres - ou 2%. No Rio, em 2016, tivemos 45,2% de participação feminina, e, em Toquio, somos 49% do total. 

Mas tem mais.

Tudo indica que os grandes nomes desses Jogos serão femininos. Katie Ledecky, da natação, Simone Biles, da ginástica artística e Naomi Osaka, do tênis.

Trata-se de um irreversível processo de enxerecamento das Olimpíadas, da sociedade e da vida. Um enxerecamento que vai nos fazer mais vulneráveis, emotivos, afetuosos, cuidadosos, potentes, solidários, comunitários. O futuro ou é feminino, ou simplesmente não será.

O lado podre das Olimpíadas

UMA ENTREVISTA COM JULES BOYKOFF

Jacobin Brasil, 25/07/2021.Tradução Guilherme Ziggy 

Os melhores atletas do mundo reunidos no espírito de uma competição amigável é uma bela imagem. Mas as Olimpíadas se transformaram em uma máquina implacável para extração de lucros às custas da classe trabalhadora.

 

O presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, em Lausanne, Suíça, 2020. (Denis Balibouse / AFP via Getty Images)

 
As Olimpíadas estão aqui novamente. É uma coisa linda ver os melhores atletas do mundo se reunindo na principal vitrine das realizações atléticas. O espirito esportivo é poderoso e não há demonstração maior deste poder incrível do que os jogos olímpicos.

Mas com esse poder vem uma grande responsabilidade, “e o Comitê Olímpico Internacional (COI) não cumpriu essa responsabilidade”, diz Jules Boykoff, ex-jogador profissional de futebol olímpico e pesquisador que se concentra na política dos jogos.

As Olimpíadas são um excelente exemplo do que Boykoff chama de “capitalismo de celebração”. O COI, os políticos poderosos e as megacorporações usam a ocasião como pretexto para canalizar quantias maciças de dinheiro para as elites locais e internacionais, enquanto endurece o trato com atletas e prejudica a classe trabalhadora em todas as cidades olímpicas sedes. Os jogos são um intensificador extremo de desigualdade: as casas de algumas pessoas são demolidas para dar lugar a estruturas temporárias, enquanto alguns ganham milhões e vivem permanentemente em hotéis cinco estrelas.

Jules Boykoff é professor de política na Universidade Pacific. Ele é o autor de Power Games: A Political History of the Olympics [Jogos poderosos: uma história política das Olimpíadas] e NOlympians: Inside the Fight Against Capitalists Mega Sports in Los Angeles, Tokyo and Beyond [NOlimpianos: por dentro da luta contra os mega sports capitalistas em Los Angeles, Tóquio e outros lugares]. A jornalista da Jacobin, Meagan Day, entrevistou Boykoff sobre quem fica rico com as Olimpíadas, quem se ferra e o que os ativistas estão fazendo para impedir essa furada.

Primeiro, vamos falar sobre Tóquio. Qual é a história por trás dos jogos de Tóquio, e por que você escreveu um artigo de opinião  no New York Times argumentando que eles deveriam ser cancelados?
JB A história por trás das Olimpíadas de Tóquio é que, essencialmente, ela foi construída em uma dupla mentira. Em 2013, quando o então primeiro-ministro Shinzo Abe estava diante dos membros votantes do Comitê Olímpico Internacional (COI) defendendo Tóquio para as Olimpíadas de 2020, ele foi questionado sobre Fukushima, que em 2011 experimentou um triplo golpe, com um terremoto, um tsunami e um vazamento nuclear. Ele disse na época que tudo estavam “sob controle" e assim os membros votantes escolheram Tóquio. Mas as coisas não estavam “sob controle” no Japão. Essa foi a primeira mentira.

A segunda mentira foi que eles lançaram as Olimpíadas de Tóquio com a ideia de serem os “jogos da recuperação”, o que significa que as Olimpíadas seriam uma forma de auxílio na recuperação das áreas afetadas pelo desastre. Nada disso aconteceu. Entrevistei pessoas no Japão, incluindo o professor da Universidade Kansai, Satoko Itani, que afirmou que sediar as Olímpiadas na verdade tirou materiais e máquinas das áreas afetadas.

Quando Comitê Olímpico Internacional entregou a competição para Tóquio, eles o fizeram porque a viam como “um par de mãos seguras”. Mas, desde então, os organizadores em Tóquio têm feito a tocha olímpica capengar. Foi um desastre desde o início, desde a contratação da famosa arquiteta Zaha Hadid para projetar um estádio que não saiu do papel por ser muito caro até o escândalo de plágio com o primeiro logotipo que eles lançaram para o evento – sem mencionar que há alegações confiáveis correndo nos tribunais franceses que Tóquio subornou com propina para sediar este evento.

Em meu artigo para o New York Times, falei principalmente sobre o fato de que as autoridades médicas dentro e fora do Japão clamavam pelo cancelamento dos jogos. Simplesmente não faz sentido realizar um espetáculo esportivo opcional durante uma pandemia global. Além disso, a população em geral do Japão era contra a realização das Olimpíadas. Naquela época, havia pesquisas que mostravam que cerca de 80% dos japoneses não queriam as Olimpíadas no verão.

Mas acho que o mais importante sobre o momento de Tóquio é que ele removeu o verniz do projeto olímpico e permitiu que as pessoas o vissem como ele realmente é, essencialmente um exercício de economia progressiva, onde o dinheiro flui para entidades bem estabelecidas, como o Comitê Olímpico Internacional, e elites políticas e econômicas bem localizadas.

Quando escrevi esse artigo, também esperava abrir uma discussão mais ampla sobre o que são as Olímpiadas no século XXI e como, de fato, elas se tornaram uma forma de prejudicar os trabalhadores em todas as cidades-sede e, ao mesmo tempo, ajudar aqueles que já estão indo muito bem economicamente.

Como as Olimpíadas evoluíram para uma marca global ávida por lucros?
JB As Olimpíadas foram iniciadas por um aristocrata francês chamado Barão Pierre de Coubertin, que construiu o evento sobre um leito de contradições. Uma é que, desde o início, ele disse que os jogos deveriam ser sobre a paz, mas ao mesmo tempo um dos motivos pelos quais ele achou que as Olimpíadas seriam uma boa ideia é que ele sentiu que fortaleceria os jovens para a guerra. A França acabara de ser derrotada na Guerra Franco-Prussiana e ele era um velho barão excêntrico que acreditava que era porque os jovens eram muito “fracos”.

Outra contradição era que as Olimpíadas deveriam ser uma demonstração universal de proezas para o mundo, mas as mulheres foram excluídas desde o início. O barão era um notório sexista que dizia que o trabalho das mulheres nas Olimpíadas era colocar os louros na cabeça dos campeões ou produzir meninos que um dia poderiam chegar aos jogos Olímpicos. Ele falou sobre trazer países da África para os jogos, mas porque os africanos eram “preguiçosos” e os jogos os ajudariam.
Para avançar, houve um pivô em direção ao que você pode chamar de disneyficação das Olimpíadas. A maioria dos acadêmicos olímpicos dirá que o pivô aconteceu em 1984, mas eu diria algo um pouco diferente. Acho que 1976 é na verdade o ano-chave para compreender como as Olimpíadas têm se desenrolado.

Duas coisas aconteceram em 1976. Primeiro, os jogos Olímpicos de verão de 1976, em Montreal, ultrapassaram o orçamento. O prefeito de Montreal na época disse que custaria 125 milhões de dólares. Acabou custando um bilhão e meio. Eles não pagaram por trinta anos. Isso realmente colocou o temor em muitas dessas outras grandes cidades que não queriam algo que saísse do controle nesses termos.
A outra coisa que aconteceu nas Olimpíadas de inverno de 1976 é que Denver deveria sediar o evento. Mas não houve uma Olimpíada de Denver em 1976, e isso porque pessoas de todo o espectro político se levantaram e disseram não.

Havia ambientalistas preocupados com os danos de sediar uma Olimpíada de inverno em suas pistas de esqui, e também havia conservadores fiscais que não queriam gastar dinheiro de uma forma que não fizesse sentido. Eles uniram essa coalizão interessante que conseguiu que uma medida eleitoral fosse aprovada dizendo que o Eestado do Colorado não gastaria dinheiro público nas Olimpíadas. E o COI sabia que, se não houvesse dinheiro público, não haveria os jogos, então eles mudaram para Innsbruck, na Áustria.
Esses dois momentos de 1976 estabeleceram o paradigma para o que então aconteceu em 1984 nas Olimpíadas de Los Angeles, que é o ano em que a maioria das pessoas que estudam os jogos apontaram como o momento de transição.

Em Los Angeles, o prefeito Tom Bradley se lembrava vivamente do que aconteceu em Montreal e não queria colocar dinheiro público nos jogos. Isso foi durante a era Reagan, e eles estavam neoliberalizando tudo com o pulso firme. Então, o empresário do esporte Peter Ueberroth decidiu que esta seria uma boa oportunidade para mostrar a todos como era grandiosa a privatização e a neoliberalização, e eles essencialmente privatizaram os jogos.

A fim de conseguir mais dinheiro para as Olimpíadas de Los Angeles em 1984, Ueberroth criou um programa de quem na época arrecadava milhões de dólares entre os empresários para se tornarem patrocinadores corporativos. Antes disso, centenas de corporações colocavam um pouco cada uma, mas Ueberroth o transformou em um clube mais exclusivo.

O COI assistiu Ueberroth em Los Angeles e percebeu que isso realmente funcionava, então ele começou seu próprio programa, o Programa Parceiro Olímpico. https://olympics.com/ioc/partners Hoje, esse programa tem grandes entidades como Coca-Cola, Airbnb, Dow Chemical, Alibaba e assim por diante. Foi esse pivô nos anos 1980 que nos moveu em direção ao que vemos hoje, essa fusão de dinheiro corporativo e esse desejo das elites de usar as Olimpíadas para refazer uma cidade à sua própria imagem.

Quem fica rico com as Olimpíadas e como?
JB Há muito dinheiro circulando no sistema olímpico. O problema é que ele tende a se espalhar para o bolso daqueles que já são ricos.
Vamos começar com o COI, o grupo que supervisiona o evento, com sede em Lausanne, na Suíça. Eles têm em suas reservas cerca de um bilhão de dólares ou mais, de acordo com os registros públicos. E eles se saem muito bem nas Olimpíadas. Cada vez que os jogos acontecem, 73% das receitas do COI vêm de emissoras, como a NBC nos Estados Unidos. Outros 18% vêm de patrocinadores corporativos. No geral, eles recebem uma infusão de bilhões de dólares toda vez que há jogos olímpicos. E há uma total falta de responsabilidade com relação a como esse dinheiro circula. O COI é a infraestrutura esportiva mais abrangente, porém menos confiável no mundo.

As emissoras também se saem extraordinariamente bem. A NBC anunciou na semana passada que teve vendas recordes de anúncios para as Olimpíadas de Tóquio. Portanto, embora haja descontentamento com os jogos, isso não impede a venda de anúncios. As emissoras ganham milhões e milhões com as Olimpíadas. Depois, há as elites políticas e econômicas locais que estão bem posicionadas. As Olimpíadas criam um Estado de exceção na cidade-sede que, no passado, chamei de capitalismo de celebração, uma espécie invertida do capitalismo de desastre de Naomi Klein. Você tem um Estado exceção, exceto que é uma celebração social das Olimpíadas e envolve parcerias público-privadas que são massivamente desequilibradas em favor das entidades privadas.

Tóquio, por exemplo, insistiu em uma nova regra antes dos jogos Olímpicos que dizia que você poderia construir até oitenta metros de altura em um distrito histórico específico. Anteriormente, a altura máxima era de quinze metros. Para construir o estádio nacional neste distrito eles precisavam ir mais alto do que isso, então eles precisavam de uma nova lei, e essa nova lei também beneficia incorporadoras imobiliárias privadas.

Muitas pessoas pensam que outro grupo que beneficia são os atletas, mas isso é questionável na melhor das hipóteses. Houve uma pesquisa muito boa feita apenas no ano passado pela Universidade Ryersone e pelo grupo liderado por atletas chamado Global Athlete. Eles compraram a National Basketball Association, a National Football League e a Premier League inglesa de futebol. Em todas essas ligas, os atletas tinham entre 45% e 60% da receita. Para os jogos olímpicos, é de 4,1%. Então o dinheiro não vai para os atletas trabalhadores. Está indo para essas outras entidades.

 Embora os atletas possam não se beneficiar, os membros individuais do COI estão vivendo uma vida de luxo. São eles que vivem sem pagar aluguel em um hotel cinco estrelas na Suíça. Se você estiver na diretoria executiva, receberá 900 dólares por dia. Henry Kissinger, indiscutivelmente um dos maiores violadores de direitos humanos da história do mundo, é um “membro de honra” members do COI.

Outro grupo beneficiado é a indústria de segurança. Cada anfitrião olímpico usa o evento como seu caixa eletrônico particular, obtendo todo o dinheiro de que precisa para comprar armas especiais com o suposto propósito de garantir os jogos. Mas eles não encaixotam as armas depois que os jogos acabam. Essas armas passam a fazer parte do policiamento diário na cidade olímpica. Em Los Angeles, em 1984, eles receberam todas essas armas especiais para as Olimpíadas que depois municiaram a chamada Guerra às Drogas – a guerra contra a classe trabalhadora de Los Angeles.

Mas não é apenas o caso de algumas pessoas se enriquecerem com as Olimpíadas. Também é o caso daqueles que acabam em uma situação pior que antes dos jogos. Quem se ferra e porquê?
JB Simplificando, a classe trabalhadora não se beneficia com as Olimpíadas. É dito que haverá benefícios na fase de licitação, na tentativa de atrair a população local, mas é tudo sempre muito exagerado.
Sei disso porque, ao contrário de outras pessoas que escrevem sobre as Olimpíadas, como parte do meu trabalho, eu realmente me mudei para a cidade olímpica e morei lá por muito tempo, conversando com os trabalhadores locais sobre como os jogos afetam suas vidas. Morei no Brasil em 2015 e 2016 e em Londres em 2012. Nas minhas pesquisas e nos meus artigos, avalio as Olimpíadas por todos os ângulos.
Quando converso com trabalhadores, as histórias são angustiantes, para ser honesto. Existem quatro tendências negativas quando se trata das Olimpíadas, o que nos leva a uma imagem muito clara de quem não se beneficia. 

A primeira tendência é gastos excessivos. Eles sempre dizem que as Olimpíadas vão custar apenas alguns bilhões e sempre custam exponencialmente mais. Eles perdem o controle. A partir de 1960, cada uma das Olimpíadas  teve custos extras, e os contribuintes tendem a pagar isso. A segunda é a militarização do espaço público. Como eu disse antes, o policiamento diário após os jogos sempre envolve alta tecnologia e mais armamento para a repressão policial.

A terceira tendência é a gentrificação e o deslocamento, o despejo forçado dos trabalhadores para abrir caminho para as instalações olímpicas. Em Pequim, 1,5 milhão de pessoas foram deslocadas. No Rio de Janeiro, onde morei, 77 mil pessoas foram deslocadas para dar lugar às Olimpíadas.
E por trás dos números existem histórias incríveis. No Rio, conheci algumas pessoas que foram despejadas, suas vidas inteiras viraram de cabeça para baixo. Uma delas é uma mulher chamada Heloisa Helena Costa Berto, uma negra brasileira praticante de Candomblé. Ela era uma grande parte da comunidade da Vila Autódromo, uma favela ao longo da lagoa de Jacarepaguá que foi demolida para os jogos no Rio de Janeiro em 2016.
Seu orixá, ou deusa se preferir, morava ao longo da água perto de sua casa. Portanto, não foi fácil para ela se levantar e se mudar para outra parte da cidade. Toda a sua vida, sua vida espiritual e sua vida comunitária, estavam ali na Vila Autódromo. Antes do início das Olimpíadas, ficamos juntos e espiamos através de uma cerca de arame onde antes ficava a casa dela, e era um estacionamento de uma base de cobertura jornalística. Sua vida inteira virou de cabeça para baixo por causa de um estacionamento temporário.

E a quarta tendência é o greenwashing, virtudes ambientalistas que nunca se concretizam. Voltando ao Rio, as pessoas com quem conversei ficaram emocionadas com a possibilidade de que as Olimpíadas realmente levassem à limpeza da notória sujeira da Baía de Guanabara. Alguns eventos olímpicos seriam realizados lá, e os promotores olímpicos disseram que 80% da água que fluía para a baía seria tratada. Nada disso aconteceu: 169 milhões de galões de esgoto não tratado fluíam para a baía todos os dias quando as Olimpíadas começaram.

Então, novamente, quem perde é a classe trabalhadora – as pessoas que acreditam que o meio ambiente ficará mais limpo e seguro após os jogos. Mesmo que eles não pudessem pagar um ingresso para as Olimpíadas, deveria haver o que eles chamam de um “legado” para a cidade. Infelizmente, esse legado acabou se revelando falso, um grande engano por parte dos organizadores do evento.
Existem tantos que perdem. 

Por exemplo, em Atlanta, antes das Olimpíadas de 1996, a cidade aproveitou a oportunidade para destruir habitações públicas. O primeiro projeto de habitação pública subsidiado pelo governo federal do país, chamado Techwood Homes e estabelecido durante o New Deal, foi demolido para dar lugar às Olimpíadas.

Outro exemplo é que a mentalidade das forças de segurança muitas vezes é “limpar” a cidade para o consumo público da mídia global, e isso muitas vezes envolve a repressão às trabalhadoras do sexo, tornando suas vidas ainda menos seguras. E, para algumas cidades, também implica maus tratos aos sem-teto. Novamente em Atlanta, eles prenderam 90 mil pessoas desabrigadas. A mesma coisa aconteceu em Vancouver para as Olimpíadas de 2010, a ponto de os ativistas chamarem de “Lei do Sequestro Olímpico”. 

Eric Garcetti, o prefeito de Los Angeles, disse que trazer as Olimpíadas ajudaria a cidade a eliminar o problema dos sem-teto até 2028. Isso é ridículo; definitivamente não está acontecendo. Ele aponta mais uma vez para as falsas promessas em torno das Olimpíadas que são endêmicas ao projeto, e também para o fato de que há um enorme déficit democrático.
As pessoas que assinam o contrato da cidade-sede no início dão enorme poder ao COI e cedem enorme poder à cidade. E então eles somem quando as Olimpíadas começam. Garcetti não será prefeito de Los Angeles em 2028, quando vão ocorrer as Olimpíadas. Isso sempre acontece. Eles usam o evento como um trampolim político e depois passam para a próxima etapa, deixando para trás os problemas para os próximos resolverem.

Os preços de moradia sobem cidade após cidade, mesmo nas chamadas histórias de sucesso. Em Barcelona, os preços da habitação subiram. Em Londres, nos bairros próximos às Olimpíadas de 2012, os preços das moradias dispararam. Entrevistei pessoas quando morava lá que tiveram que se mudar. A população de rua aumentou em Londres nesses mesmos bairros por causa desses processos de que estamos falando. As Olimpíadas são o único motivo? Não, mas definitivamente contribui de forma importante para esses problemas sociais.

À medida que as cidades clamam e se prostram pela oportunidade de sediar os jogos, os contra-movimentos locais estão surgindo com mais frequência. Onde eles começaram e onde estão mais fortes agora?
JB O ativismo anti-olimpíadas existe há décadas. A primeira vez que Los Angeles sediou as Olimpíadas em 1932, a Grande Depressão estava no auge e havia muitos manifestantes lá com cartazes que diziam “Comida, não jogos”, apontando os gastos e custos envolvidos nas Olimpíadas.
Nas décadas de 1920 e 1930, as pessoas criaram jogos alternativos. As Olimpíadas Femininas foram anunciadas porque as mulheres queriam mostrar que eram perfeitamente capazes de participar e se destacar nos esportes. Houve também as Olimpíadas dos Trabalhadores, organizadas  em grande parte por socialistas e comunistas na Europa.

Eram casos enormes, não apenas como ir ao parque com seus amigos. Estamos falando de umas 200 mil pessoas comparecendo aos eventos Olimpíadas dos Trabalhadores, por exemplo. Elas eram uma alternativa muito organizada às Olimpíadas que poderia ser interpretada como um protesto ao que eles chamavam na época de “jogos burgueses”.

Os preparativos para 1976 em Denver foram um momento crítico para o ativismo anti-olímpico, como mencionei antes. Certamente houve campanhas nos anos 1990: em Chicago e Toronto houve movimentos bem-sucedidos para evitar que as Olimpíadas viessem à sua cidade. Mas acho que o ponto principal em termos de levar ao estado atual de ativismo anti-olímpico foi Vancouver nos preparativos para 2010, onde uma coalizão vibrante e fascinante de todos, grupos indígenas a anarquistas e advogados, se reuniu. Eles fizeram um acordo de diversidade de táticas, onde concordaram em nunca dizer nada negativo sobre as táticas de outras pessoas na coalizão para a imprensa. E eles foram tremendamente bem-sucedidos em lutar contra as Olimpíadas.

O movimento anti-olímpico de cada cidade tem seu próprio caráter. Em Londres, antes dos jogos de 2012, os ativistas enfatizaram a política anticorporativa, pois as corporações estavam assumindo esses novos papéis no projeto olímpico – como, por exemplo, a British Petroleum chegando como um “parceiro de sustentabilidade” dos jogos de Londres.

Quando Sochi sediou as Olimpíadas de 2014, muitas pessoas ficaram extremamente descontentes com a ridícula lei anti-LGBTQ aprovada na Rússia, que era terrível à primeira vista e também conflitava fortemente com a Carta Olímpica. Eles não podiam protestar em Sochi. Houve uma ação do grupo Pussy Riot e foi rápida e fortemente reprimida. Então, as pessoas protestaram em cidades do mundo todo.

No Rio, antes dos jogos de 2016, você tinha um grupo muito organizado, o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas. Eles tiveram muitos eventos, muita educação política acontecendo e muitos protestos de rua, incluindo um protesto muito vibrante durante as Olimpíadas, que teve uma grande presença policial e muito gás lacrimogêneo.

Isso nos traz até o presente com Tóquio e Los Angeles. Até julho de 2019, o ativismo anti-olimpíadas era basicamente um jogo rápido, o que significa que um grupo surgia em uma cidade-sede e depois desaparecia. Eram ativistas que já estavam ocupados com questões de moradia e segurança. Quando os jogos chegaram, eles formaram um grupo maior porque as Olimpíadas pioraram todos esses problemas. Mas quando os jogos acabarem, eles voltarão à sua organização normal e, na maioria das vezes, não se preocuparem mais com as Olimpíadas.

Isso mudou em julho de 2019, em grande parte por causa do trabalho do NOlympics LA, bem como seus colegas de Tóquio, dois grupos chamados Hangorin no Kai e OkotowaLink. Eles decidiram que, para lutar contra a máquina peripatética conhecida das Olimpíadas, eles precisavam se tornar mais transnacionais e móveis. E então eles organizaram em julho de 2019 a primeira cúpula transnacional anti-olímpica.

Houve palestras, protestos de rua, debates de tática e de estratégia – que duraram uma semana inteira. E também as pessoas passaram a se conhecer melhor. Estavam lá pessoas de Tóquio, Paris, Rio de Janeiro, Pyeongchang, Seul e Londres. Havia pessoas de cidades futuras, passadas e Tóquio, a atual cidade-sede. A ideia era pegar o momento e transformá-lo em um movimento, que tenha pernas que vão de uma Olimpíada a outra. E é isso que estamos testemunhando agora. Estamos nos estágios iniciais, mas parece muito promissor.  

A ideia dos melhores atletas do mundo se unirem em espírito de cooperação e competição amigável para mostrar o auge das realizações atléticas humanas é realmente bela. Podemos ter algo assim sem criar um monstro parecido com as Olimpíadas?
JB Bem, é verdade que, se você ler a Carta Olímpica, ela contém muitas ideias lindas e maravilhosas. O problema sempre foi que, na medida em que são percebidas, elas aconteceram em meio a todas essas outras extremidades negativas de que falamos.
Pratiquei esportes com muita seriedade durante grande parte da minha vida. Não sou um acadêmico excêntrico que odeia esportes e fica pensando em maneiras de arruiná-los. Acredito profundamente no poder do esporte e acredito que com esse poder vem grandes responsabilidades, e o Comitê Olímpico Internacional não as cumpriu.

Acho que existem alternativas, e vimos isso nos anos 1920 e 1930 com os jogos alternativos que mencionei. Aqueles que permitiam que todas as pessoas participassem e não tinham questões externas. No momento, os benefícios econômicos não permanecem na comunidade. Os economistas chamam isso de vazamento, onde todo o dinheiro acaba vazando, direto para a sede da empresa. Se você pudesse criar um evento em que os benefícios econômicos permanecessem dentro da comunidade, isso seria algo muito poderoso.


Guaraná Jesus

SONHO COR DE ROSA
Por Ana Cláudia Guimarães, 26/07/2021

Já está em produção o longa-metragem que vai contar a história do farmacêutico maranhense Jesus Norberto Gomes, inventor nos anos 1920 do famoso Guaraná Jesus, o refrigerante mais popular no Nordeste do Brasil, que foi comprado em 2001 pela Coca-Cola.


Em 2020, a bebida ganhou o noticiário internacional e ficou entre os assuntos mais comentados no Twitter quando foi citado por Jair Bolsonaro em declaração homofóbica. Durante uma visita ao estado, o presidente tomou o Guaraná Jesus, que é cor de rosa, e questionou se teria virado "boiola".
A produção do filme "Além do sonho cor de rosa" é da carioca Fernanda Kalume e da bisneta de Jesus, Roberta Gomes, que também assina o roteiro. A cantora maranhanse Pablo Vittar será convidada para fazer uma participação afetiva no longa, primeira produção que pretende levar a história do Maranhão para os festivais internacionais de cinema.


Jesus Norberto Gomes era comunista e ouvinte assíduo da rádio BBC de Londres; recebia revistas russas e chinesas, mesmo sem saber ler, mas gostava de ver as figuras. Era ele que desenhava os rótulos dos produtos e escrevia os textos auxiliares e também de propagandas para os jornais locais. Visonário, nos anos de 1930 ele  dividia com os funcionários o lucro da empresa. Aliás, fez isso antes da instituição do 13º salário no Brasil. Quando foi instituído, Jesus brincou com seus funcionários que estudaria a possibilidade de pagar o 14º já que o 13º ele já pagava.

Guaraná Jesus, apesar do nome, foi criado por um ateu; conheça a história


O ateu, com fama de comunista, que inventou o Guaraná Jesus



Reuni digital

O documento Reuni Digital: Plano de Expansão da EAD nas IES públicas federais, Brasília-DF de maio de 2021, da Sesu/MEC, tem o seguinte preâmbulo:

"O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Superior (Sesu), com vistas a atender às metas de expansão de matrículas na educação superior, previstas no Plano Nacional de Educação, Plano Plurianual e Plano Estratégico Institucional, está desenvolvendo o Programa Reuni Digital para promover a Educação a Distância (EaD) nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas federais. O Programa é fortemente motivado pela necessidade de expansão da educação superior prevista de modo mais específico na meta 12 do PNE 2014-2024. Essa meta prevê uma elevação na taxa bruta de matrículas (TBM) para 50% (cinquenta por cento) e na taxa líquida de escolarização (TLE) para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, sendo que pelo menos 40% das novas matrículas seja proveniente do segmento público, assegurada a qualidade da oferta."

Elevar as taxas bruta (razão entre o número total de matrículas independente da faixa etária e a população correspondente numa faixa etária prevista) em 50% e líquida (razão entre o número de matrículas de alunos com idade prevista de 18 a 24 anos, e a população total na mesma faixa etária ) em 33% pode significar um aumento de cerca 1,5 milhão das matrículas apenas no ensino público superior. Matrículas somente em EaD.

Para João Carlos Salles, Reitor da Universidade Federal da Bahia, "certamente, a meta de expansão de vagas é uma das mais sérias do PNE, vindo ao encontro da necessidade de ampliar o acesso ao ensino superior, historicamente restrito e excludente. Não pode, todavia, ser cumprida de qualquer modo, com prejuízo das universidades plenas ou com o rebaixamento das exigências de uma educação superior de qualidade, quer presencial, quer não presencial."

Contextualizando

A corrida voraz pelo Ensino a Distância (EaD) no Brasil, no Ensino Superior, vem acelerando desde 2009. Segundo o Inep de 2019, em 2009, existiam 838.125 matriculas em EaD e 5.115.896 matrículas no ensino presencial. Esses números saltam, em 2019, respectivamente, para 2.450.264 e 6.153.560. Aumento em EaD no período: 2,9. No presencial um acréscimo: 1,2. Ingressantes em 2009: EaD (16,1%) e presencial (83,9%). Em 2019: EaD (43,8%) e presencial (56,2%). Aumento de ingressantes no período, em EaD: 2,7. No presencial há um decréscimo de 1,5. Em termos absolutos, em 2019, existiam 1.592.184 ingressantes em Ead. 

A proposta do Reuni Digital da Sesu/MEC é aumentar, em 10 anos, em cerca de 50% as matrículas em EaD. E quem será responsável por isto? As IES Federais. 




A Superintendência de Educação à Distância (SEAD) da Universidade Federal da Bahia, a pedido da Reitoria da Universidade, fez uma análise do Reuni Digital em questão. 

Destaques da análise

1. Não ao Reuni Digital. O SEAD / UFBA se posiciona numa decidida recusa ao programa Reuni Digital, bem como à criação de uma “Universidade Federal Digital”. Porque a ampliação de vagas com a primazia em EaD? E as condições de infraestruturas das universidades continuarão deficitárias como hoje? Expansão a qualquer preço com crise orçamentária será o cenário previsto. O projeto “Reuni Digital” dissocia a EaD da pesquisa, do ensino e da extensão de nossas, representando, por esse viés, grave ameaça à sua autonomia didático-pedagógica;

3. Porque primazia ao EaD? A diretriz de conferir primazia à EaD na política federal de ampliação de vagas de ensino superior tão somente subtrairia ao sistema significativo volume de investimento público, tendendo a aprofundar ainda mais a grave crise orçamentária enfrentada pelas universidades. Projetar expansão a qualquer preço, em contexto de tamanha escassez, tornar-se-ia então um gesto mais eivado de populismo que de reflexão acadêmica aprofundada, sobretudo caso se realize a expansão por meio de um ente sem substância, como o seria uma Universidade Federal Digital, em detrimento do necessário crescimento estratégico de nossas universidades plenas;

4. Telecurso. É inaceitável a proposta de adoção da “Educação Aberta” – modalidade de estudo que não prevê sequer a figura do professor mediador/tutor, quanto menos a do professor, resultando em uma espécie de “telecurso” que, em que pese sua eventual funcionalidade suplementar, de modo algum atende aos requisitos de educação superior de qualidade – , sobretudo quando tal modalidade se confunde com a noção de EaD e sem que haja qualquer segurança quanto aos referenciais básicos de qualidade. Nesse sentido, um projeto de Universidade Federal Digital favoreceria, em última instância, somente aos provedores privados de educação de terceiro grau, que encontrariam campo fértil para a prática de negócios com finalidade de todo estranha à da educação pública;

5. A educação presencial. Espera-se, em suma, que qualquer proposta de institucionalização da EaD efetivamente agregue recursos para o desenvolvimento das IFES, garantindo, em primeiro lugar, as condições para a educação presencial associada à pesquisa e à extensão, que depende de equipamentos, laboratórios e espaços de convívio para efetivamente acontecer; e abarcando também, no que couber, a possibilidade de uma educação híbrida, que lance mão das tecnologias digitais quando necessário, de forma a garantir uma educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, respeitando assim a autonomia das universidades;

6. Universidade Federal Digital. A proposta de uma Universidade Federal Digital, em nome de uma suposta “novidade tecnológica”, resultaria, efetivamente, na criação de um ente “digital” sem substância acadêmica efetiva, centralizador das iniciativas de implementação de novas metodologias e tecnologias realizadas originalmente no âmbito das IFES. Sendo assim, seu principal efeito prático seria o desestímulo às iniciativas orgânicas e plurais que já vicejam na rede de instituições de ensino superior, indo, portanto, na contramão da adequada institucionalização da EaD nas IFES;

7. Tutoria. É inadequada a compreensão de que o tutor da EaD deva ter estatuto e atribuições diversas às do professor – figura esta que, em realidade, deve ser sempre o interlocutor direto dos alunos durante o processo educativo, uma vez que tal interlocução requer domínio aprofundado dos conteúdos, atendimento a questionamentos e dúvidas e acompanhamento de seu desenvolvimento.

Considerações finais

A proposta do Reuni Digital corresponde a um ardoroso manifesto de implantação do EaD no Sistema Federal de Ensino Superior. Em 2019 existiam 81.189 matrículas nas IES Federais. A proposta pretende, em 10 anos, acrescentar cerca de 1,5 milhão de matrículas. Caso esta insensatez ocorra teríamos no Ensino Superior Público mais estudantes em EaD do que no ensino presencial. Repetiria o que hoje acontece no sistema privado de ensino superior.

É muito provável que, doravante, a utilização de novas tecnologias venha a modificar ainda mais nossa dinâmica acadêmica regular. Ou seja, as tecnologias podem sim servir para enriquecer universidades plenas, mas nunca para as substituir ou prejudicar. Desse modo, mesmo avanços benfazejos, com os devidos reparos e adequações que nossas instituições autonomamente determinam, não podem se dar ao preço do sucateamento das universidades, nem sobretudo em prejuízo da precedência que, em nossas instituições, têm e devem continuar a ter as atividades desenvolvidas em nossos laboratórios, bibliotecas, teatros, salas de aula, espaços de convivência e encontro de nossa rica diversidade. Somos, afinal, universidades plenas, cuja autonomia tem como fonte o entrelaçamento indissolúvel de ensino, pesquisa e extensão, de modo que em nossas atividades se tecem as relações formadoras próprias de um autêntico ambiente universitário, no qual se produzem ciência, cultura e arte. (João Carlos Salles, Reitor da Universidade Federal da Bahia)

Referência sobre Ead e o ensino remoto aqui

Projeto do capital para a educação, volume 4: O ensino remoto e o desmonte do trabalho docente

Adufes divulga! Episódio do podcast “Viração” debate o Reuni Digital agosto 25, 2022

Projeto do governo federal planeja transformar as federais em universidades digitais; confira
Reuni Digital em pauta! O podcast Viração, da  ADUFPel (Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas), fomenta, semanalmente, o debate de temas importantes. No episódio 133, o programa aborda o Reuni Digital, o projeto do governo federal que planeja transformar as federais em universidades digitais. Isso significa, na prática, a adoção do modelo privado nas Instituições Públicas, beneficiando grupos empresariais que objetivam avançar sobre o orçamento estatal destinado às universidades.

O convidado para falar do tema é o professor Mauro Titton, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O docente também é coordenador do Grupo de Investigação em Política Educacional Marx/UFSC.
Ouça o podcast! Confira em um dos agregadores de podcast: Anchor, Spotify e Apple Podcast.

https://open.spotify.com/show/0nS4cLKb7ztz2C73LlrWTj?si=kxzbVHltSYeNJdp8jxGDjQ&utm_source=copy-link

 


sábado, 24 de julho de 2021

A cegueira do império

Em 1975, Portugal abandonou a África sem ter chegado a compreender os povos dos territórios que havia colonizado. Já os africanos alcançaram a independência conhecendo muito bem Portugal e os portugueses
José Eduardo Agualusa 24/07/2021

O colonialista olha o colonizado e não o vê. A incapacidade de ver o outro, mesmo quando o tem diante dos olhos, mesmo enquanto o filma ou fotografa, faz parte da natureza profunda do colonialismo. Se o colonialismo visse o outro não seria colonialismo. 

Confirmei esta ideia na última segunda-feira, ao assistir, em Lisboa, ao mais recente documentário da diretora portuguesa, natural de Angola, Joana Pontes. Em “Visões do império”, Joana visita arquivos e colecionadores, públicos e privados, procurando postais e fotografias produzidas nas antigas colônias portuguesas, sobretudo em Angola e Moçambique, nas primeiras décadas do século XX. Essas imagens mostram o feliz cotidiano dos colonos portugueses, na praia, em festas, caçando ou pescando. Os africanos surgem apenas como material etnográfico, representando etnias ou profissões, ou então como uma incômoda e silenciosa paisagem de fundo. 

O mesmo se passa, aliás, na literatura colonial. Mais estranho é constatar que até a literatura portuguesa produzida após a independência de Angola e Moçambique padece de cegueira semelhante. Nos romances portugueses cuja ação decorre na África, os africanos raramente falam ou pensam. São como fantasmas desprovidos de história e de identidade. Nos últimos anos isso mudou um pouco. Nas obras de escritores mais jovens, como Francisco José Viegas, já se vai dando voz aos personagens negros. Por outro lado, surgiu entretanto uma geração de escritores portugueses de ascendência africana, cujo rosto mais conhecido é o de Djaimilia Pereira de Almeida, cujos romances, disponíveis nas livrarias brasileiras, criam pontes entre Angola e Portugal. 

O processo de descolonização português aconteceu há quase meio século. Contudo, a descolonização do olhar, isto é, dos espíritos, ainda está longe de acontecer. 

Curiosamente, nos romances de autores angolanos e moçambicanos, escritos quer antes quer depois das independências, os colonos portugueses sempre tiveram voz. Escritores como Luandino Vieira, Pepetela ou Manuel Rui esforçaram-se não apenas por escutar o outro — no caso, os colonos portugueses —, mas por retratar a diversidade e a complexidade humana desse grupo. Nos livros dos autores africanos há personagens representando tipos muito diversos de portugueses, desde aqueles que foram para a África com o único propósito de enriquecer depressa até os que conseguiram superar a cegueira colonial, interessando-se pelas sociedades africanas, e integrando-se nelas. 

Em 1975, Portugal abandonou a África sem ter chegado a conhecer e a compreender os povos dos territórios que havia colonizado. Os africanos, pelo contrário, alcançaram a independência conhecendo muito bem Portugal e os portugueses. Esta desigualdade reflete-se até hoje na relação entre as antigas colônias e Portugal. Os dirigentes políticos angolanos, em particular, têm sabido explorar com grande inteligência (e uma certa crueldade) as contradições, fraquezas e hesitações dos sucessivos governos portugueses, sejam estes mais à direita ou mais à esquerda, para fazer valer as suas posições. Hoje, Angola influencia mais a política portuguesa do que o oposto. A isto se chama justiça poética.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

O padre que morde

A vida, a obra e as marretadas de Júlio Lancellotti

Angélica Santa Cruz
Piaui, Edição 178, Julho 2021

O padre Lancellotti em ação: em 10 de outubro de 2020, às 14h15, seu celular tocou e um homem se identificou. “Papa Francesco.” Admirado, o pároco soltou um animado “Santità!!” CREDITO: EGBERTO NOGUEIRA_2021_ÍMÃ FOTO GALERIA

No livro O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino, o jovem Medardo di Terralba se mete em uma batalha pela cristandade, leva um balaço de canhão e sai cortado em duas metades: o lado esquerdo é benigno, o direito é insidioso. Se fosse possível dividir o padre Júlio Renato Lancellotti em dois, a banda boa seria de uma simpatia comovente. O religioso tem fraqueza por doces retrôs, como marzipã e marrom-glacé, especialmente o espanhol. Reserva os sábados para regar plantas. Vive rodeado por uma coleção de imagens de seus santos preferidos, a maioria deles com histórias de vida dificílimas. Gosta de citações. Em momentos graves das conversas, encaixa uma da escritora existencialista Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” Em horas mais descontraídas, lembra da frase atribuída ao bovino Homer, o pai na animação Os Simpsons: “Se a culpa é minha, eu coloco em quem eu quiser.” Orgulha-se de nunca ter tirado férias e só ter ido ao exterior rapidamente e a trabalho, em rasantes pela Itália, Colômbia, Nicarágua, Panamá e El Salvador. Parece muito feliz com sua opção de não ter carro, roupas de marca, sapatos caros ou títulos imponentes demais dentro da Igreja Católica. Transita, embevecido, entre pilhas de livros espalhadas pela casa onde mora com três sobrinhos no bairro do Belém, na Zona Leste de São Paulo – só na sala, são três, escoradas umas nas outras; no corredor, quatro, que sobem do chão até o teto como cobras. Às vezes, fica pensando quem é que cuidará desse acervo quando morrer.

A metade atroz do padre partido ao meio seria casca-grossa. Ele tem iracúndias sagradas – e não raro estoura alguma gritaria fenomenal na sacristia da Paróquia São Miguel Arcanjo, uma pequena igreja, bem no limite entre os bairros do Belenzinho e da Mooca, que comanda há 36 anos. Personalista, tende a narrar os feitos de sua comunidade na primeira pessoa, o que às vezes irrita e espana alguns colaboradores. Como, ao longo da vida, já visitou vários círculos do Inferno de Dante, é desconfiado e solta frases que parecem delírios persecutórios como “o próximo ataque, eu nunca sei de onde virá…”. Exige, sempre, soluções imediatas para o que quer e arma circos homéricos quando não consegue – como sabem todos os últimos prefeitos de São Paulo. E, por causa desse conjunto, pode provocar decepções nos que esperam virtude total dos líderes espirituais, mais ou menos como aquele desapontamento planetário de 2019, quando o papa Francisco, num arroubo de irritação extrema, tascou uma palmada nas mãos de uma peregrina que o puxou pelo braço.

Na vida pública, o padre Júlio Lancellotti é há décadas realmente cortado ao meio, em duas fatias irreconciliáveis. Por um lado, é beatificado em vida por seu destemido trabalho de assistência aos excluídos dos excluídos: os sem-teto, a população carcerária, os menores infratores, as crianças órfãs portadoras de HIV, os jovens LGBTQIA+ que são marginalizados. Por outro, é demonizado como aproveitador da população carente, um “esquerdopadre” viciado em mídia. Lancellotti reage suspendendo os ombros, num misto de indiferença e desânimo, sempre que fala desse pêndulo frequente sobre sua cabeça. “Na verdade, eu acho é que muita gente me vê como um enigma”, diz, ajeitando o longo crucifixo que usa no pescoço.

Mesmo dentro da Igreja Católica, o padre Júlio ocupa um lugar próprio, sujeito a rapapés e pedradas. No Brasil, a instituição é formada por uma tropa de 268 bispos, 48 cardeais na ativa e 19 428 padres distribuídos por 12,2 mil paróquias. Para se manter dentro dos preceitos, todos precisam andar na linha hierárquica e fechar questão em temas fundamentais de fé e moral, o que não é pouco. De resto, a Igreja é um cintilante regime democrático. Qualquer integrante do clero tem o direito de ser um conservador, um moderado ou um progressista. Nesse aquário colorido, a maioria esmagadora dos sacerdotes com influência que vai além de seus altares integra a categoria dos cantores e/ou youtubers ligados à Renovação Carismática, corrente de orientação conservadora. Dono de um magnetismo envolvente, o padre Marcelo Rossi é o expoente dessa ala.

Aos 72 anos, vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, o padre Júlio Lancellotti é também um nome famoso, mas acomoda-se numa gaveta mais solitária. Ele é, hoje, o padre mais político do Brasil.

Nos meses excruciantes da pandemia, ficou visível a diferença entre uns e outros. Em sua maioria, os padres carismáticos usam sermões e redes sociais para confortar seus fiéis com palavras de fé. Júlio Lancellotti foi para o pau. Até receber as duas doses da vacina contra a Covid-19, preocupou os amigos ao se jogar na linha de frente do atendimento aos sem-teto, apesar de integrar o grupo de risco – não só pela idade, mas porque, no começo do ano passado, chegou a ficar duas semanas hospitalizado para tratar de uma pneumonia agressiva.

O religioso vai para as ruas todos os dias, com exceção dos sábados, em uma rotina arriscada. No quinto domingo da Quaresma, dia 21 de março, por exemplo, o céu estava limpo, e as ruas, desertas. Às sete e meia da manhã, ele abriu o portão azul da entrada lateral de sua paróquia e saiu empurrando um carrinho de supermercado lotado com seis caixas de papelão – três delas recheadas com biscoitos, duas com pequenos potes de hidratante e uma com pãezinhos redondos. Magro, calvo e comprido, seguiu em marcha acelerada e deixou para trás quatro voluntários que o seguiam. Com o rosto protegido pela máscara com dois imensos filtros cor-de-rosa que virou sua marca registrada nos últimos tempos, vestindo jaleco branco e um avental amarelo, ele era uma combinação de guerrilha urbana e lirismo – parecia ter escorrido de um muro grafitado pelo artista de rua britânico Banksy para se materializar por ali, abrindo caminho em calçadas cumuladas por cocôs de cachorro.

O destino da trupe, pequena e quixotesca, estava a 400 metros dali: o Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, umas das comunidades assistenciais do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar), mantido pela Igreja Católica por meio de convênios com a Prefeitura de São Paulo e a iniciativa privada. Quando alcançou a Praça Barão do Tietê, exatamente no meio do caminho, avistou um jovem febril, com as pernas inchadas e mal acomodado sobre um banco de concreto com assento cheio de ondulações. Sacou o celular e ligou para o Consultório na Rua, um programa de saúde para os sem-teto mantido pelo Bompar e pela prefeitura com verbas do SUS. Pediu que viessem atender o rapaz, e retomou seu caminho. Virou a esquina da Rua Siqueira Cardoso, onde fica o São Martinho de Lima, atravessou uma nuvem de desabrigados e começou a arrumar as doações em mesinhas. Três músicos formaram uma banda – na sanfona, um voluntário recém-chegado; nos violões, dois sem-teto. O religioso começou a partilha das doações – um incremento em tempos de pandemia ao combo café-pãozinho oferecido pela prefeitura no salão ao lado.

Pela fila, passou aquele cortejo ao qual os pensadores do mundo todo dão nomes diversos. É a “ralé”, do brasileiro Jessé de Souza. “Os sobrantes”, do francês Robert Castel. As “vidas desperdiçadas”, do polonês Zygmunt Bauman. Ou, na definição do papa Francisco, os “descartados”. Ao vivo e em cores, eram corintianos, palmeirenses, jovens tatuados, senhoras com tranças, senhores risonhos, homens com os ombros desabados. Passaram trans – duas delas, falantes e de mãos dadas, levaram um pito do padre porque interromperam o fluxo para narrar as travessuras de seus cachorros. Passou um aposentado com cabelos penteados para trás que, depois de recusar o pãozinho e antes de aceitar os biscoitos, ouviu a música O Astronauta de Mármore, da banda Nenhum de Nós, e observou, com o dedo em riste: “Isso aí é Bowie!” Boa parte estendeu seus “galos”, jargão usado para as inseparáveis sacolas de plástico dos sem-teto, e pediu que as doações fossem colocadas diretamente ali dentro.

Em uma hora, 501 pessoas percorreram a fila.

Quando a partilha acabou, às 9 horas em ponto, a trupe pegou o caminho de volta. Passando mais uma vez pela Praça Barão do Tietê, o padre viu que o rapaz adoecido ainda estava lá, agora mais abatido. Impaciente, pegou o celular no bolso do jaleco, fez alguns telefonemas, sentou no banco e passou as mãos na cabeça do sem-teto. Dez minutos depois, uma Kombi do Consultório na Rua estacionou na pracinha. Um médico jovem, com dreadlocks nos cabelos, pediu desculpas pela demora e assumiu o caso.

De volta ao prédio bege da sua paróquia, o religioso colocou uma máscara menos radical, cirúrgica e descartável, e fez o de sempre: rezou uma missa recheada de recados políticos e de respostas aos detratores. Naquele domingo, a lambada foi para a primeira-dama do estado de São Paulo, Bia Doria, que em entrevista publicada pelo site UOL afirmara: “Tira um prato de comida do padre Júlio Lancellotti para ver como ele grita. Agora, pergunta quantas pessoas ele tira da rua? As pessoas precisam voltar para a sociedade, as pessoas precisam tirar da cabeça esse assistencialismo…” Diante de uma igreja vazia, com dezesseis bancos de madeira amarrados aos pares por fitas isolantes amarelas, ele improvisou um alto-falante. Colocou as mãos em concha em volta da boca e soltou um grito que provocou eco dentro da paróquia deserta e reverberou do lado de fora: “Todos os dias, a pastoral de rua encontra centenas de pessoas famintas, pedindo alimento. E se ouve: ‘Ah, o padre Júlio vai gritar se tirar um prato de comida.’ vou! vou gritar mesmo! não tirem comida do povo! não tirem alimento dos pobres!!”

No começo da tarde, a conta do padre no Instagram, hoje com mais de 600 mil seguidores, já mostrava cinco fotos em que ele aparecia confortando o rapaz que passou mal no banco de concreto, feitas por um dos voluntários que o acompanharam pelo caminho. A missa, editada em três vídeos curtos, foi postada no canal da paróquia no YouTube, O Arcanjo no Ar, e nos dias seguintes alcançou 14 mil visualizações. Em enxurradas de entrevistas e em lives sucessivas – há semanas em que ele participa de até duas por dia –, o religioso reporta o cenário de guerra que domina as ruas de São Paulo.

Antes da pandemia, a população dos sem-teto das capitais brasileiras já era um retrato com detalhes difíceis de desenhar. A primeira e única contagem nacional – o Primeiro Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua – foi feita entre 2007 e 2008. Na época, o levantamento contou que 32 mil pessoas com mais de 18 anos moravam em vias públicas, praças, galpões, albergues, sob viadutos e marquises em 71 cidades. Quase a metade delas (48,4%) vivia nessas condições há mais de dois anos, por razões quase sempre associadas ao vício, de drogas ou álcool, ao desemprego ou desavenças familiares. Eram brasileiros em sua maioria homens, negros, com baixa escolaridade, alguns com problemas de saúde (30%) e sem documentos (24,8%) – mas a maioria (70,9%) exercia alguma atividade remunerada e afirmava ter uma profissão (58,9%).

De lá para cá, o Brasil não voltou a fazer uma contagem oficial de seus habitantes mais vulneráveis. Mas, no ano passado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) cruzou dados de duas fontes – o Censo anual do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), que junta informações das secretarias municipais, e o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal – e analisou o período de setembro de 2012 a março de 2020. O Ipea descobriu que, ao longo desses oito anos, a população de rua aumentou 140% e chegou à marca de quase 222 mil brasileiros. Um crescimento que se deu em todas as grandes regiões, em municípios de todos os tamanhos.
Na cidade de São Paulo, o primeiro censo da população sem-teto foi feito pela prefeitura em 2000 e registrou 8 706 pessoas. Em 2015, já eram 15 905 pessoas sem casa. Em 2019, 24 344. Um número expressivo, mas subnotificado porque não considerou variáveis como moradores de barracos improvisados em vias públicas – os mocós – ou internados em clínicas de reabilitação.

Os meses a fio da pandemia engordaram esse contingente com um novo perfil. Começaram a chegar às ruas levas de desempregados e trabalhadores informais – vendedores ambulantes, pedreiros, guardadores de carro – que, depois de semanas sem renda, foram despejados de suas casas. Os que andam sozinhos por vezes vagam entre cidades. Os que têm família formam pequenas favelas sob viadutos. Em São Paulo, as barracas de camping que passaram a ser vistas a partir de 2013 abrigando sem-teto na região central se disseminaram, agora também pelas periferias. O cenário, desalentador, ainda está longe de ter contagem oficial. “É a tragédia dos esquecidos”, diz Lancellotti.

A atuação do padre em meio a essa hecatombe acabou por colocá-lo no patamar de símbolo nacional, uma espécie de popstar social. Nos últimos meses, à frente da Pastoral do Povo da Rua, ele girou uma máquina que distribui 20 mil marmitas por mês, passa adiante doações de roupas, providencia atendimento médico e lugares para dormir para legiões de desamparados. E também protagonizou uma lista estonteante de situações com grande repercussão. Não há semana em que o nome dele não apareça no noticiário.

Na manhã quente do dia 2 de fevereiro, o padre chegou ao Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no bairro paulistano do Tatuapé, no momento em que funcionários da subprefeitura da região começavam a remover blocos de concreto colocados ali para espantar a presença de sem-teto. A medida pegou mal. A própria prefeitura, esbaforida, providenciou a retirada das pedras que haviam sido cimentadas. Assim que saiu do carro e avistou o amontoado, o padre teve o estalo de fazer um ato simbólico. Pediu emprestada uma marreta de um dos trabalhadores, bateu em alguns dos blocos e postou uma foto com a legenda: “Tirando as pedras, debaixo do viaduto, a marretadas.” Em algumas horas, deu-se o milagre da multiplicação de engajamentos. Nas semanas seguintes, ganhou corpo um debate sobre arquitetura hostil, usada em lugares públicos para inibir a permanência das pessoas – como bancos com divisórias ou ondulações e batentes com pinos pontiagudos. Inspirado pelo ato simbólico do padre, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um projeto de lei que veda o emprego de medidas do gênero em espaços públicos.

Dez dias depois das marretadas, em reconhecimento à sua atuação durante a pandemia, o padre foi convidado pelo governador de São Paulo, João Doria, para acompanhar uma coletiva que, entre outras coisas, falava sobre a vacinação contra a Covid-19 da população sem-teto com mais de 60 anos. Horas antes, o padre fora vacinado também, com uma dose que sobrara do mutirão para imunizar os desabrigados idosos. No mês seguinte, assinou a Carta Aberta à Humanidade, um manifesto também apoiado por intelectuais e artistas que pedia ao Tribunal Penal Internacional a condenação da “política genocida” do governo Bolsonaro. O filho Zero Três, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), reagiu, mirando o padre: “Não é a primeira vez que o padre Júlio Lancellotti faz ataques direcionados contra o presidente, mas esse ficou bem vil.”

Não foi, de fato, o primeiro embate entre o religioso e o político. Em 2017, quando Jair Bolsonaro já borbulhava nas redes sociais, mas ainda era um nanico nas pesquisas para a Presidência da República, o padre aproveitou uma missa às vésperas do Dia da Mulher para dizer que não entendia como alguém com posições machistas e homofóbicas poderia ter tantos seguidores. Bolsonaro entrou com uma ação na 7ª Vara Cível do Rio de Janeiro, alegando danos morais. Em novembro do ano passado, a Justiça entendeu que o padre exerceu um direito constitucional de emitir sua opinião e condenou o presidente a pagar as custas do processo. Bolsonaro não recorreu.

Nas últimas semanas, a usina de notícias em torno do padre continuou queimando lenha. No fim de maio, tocado pelo aumento dos jovens LGBTQIA+ que vão às ruas pedir comida, resolveu incluir nas sugestões de leitura que faz em suas missas de domingo o livro Teologia e os LGBT+, escrito pelo padre Luís Corrêa Lima. Foi bombardeado por mensagens, enviadas por perfis de pessoas que se identificam como religiosas, que o chamavam de “excomungado comunista”, “terrorista”, “herege”. Em uma das mensagens, o livro que aparecia em suas mãos foi trocado por Catecismo Anticomunista, clássico do pensamento católico conservador escrito pelo bispo dom Geraldo de Proença Sigaud, morto em 1999. O padre denunciou essa movimentação em suas redes e, imediatamente, passou a ser procurado para dar entrevistas sobre o assunto.

“Eu me surpreendi com toda essa repercussão dos últimos tempos”, diz ele, sentado no sofá de madeira de sua sala. “Mas é preciso estar antenado e às vezes criar situações para multiplicar a sua mensagem.” E enumera exemplos em que considera ter dado bem o seu recado. Participou dos atos organizados pelo Movimento do Passe Livre (MPL), que começaram protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo e viraram um caldeirão de demandas. Apareceu de braços dados com jovens da tática black bloc, o controverso grupo de ativistas que vai às ruas com máscaras e usa o vandalismo como forma de protesto. A certa altura, a Polícia Militar jogou bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão e o religioso se escondeu, com outros manifestantes, em uma lan house sem janelas.

“Todo mundo passou mal, ali achei que iria perecer”, relembra ele. Depois dessa, ganhou dos ativistas uma máscara antigás, com enormes filtros azuis, que passou a usar nas manifestações seguintes. “Eles não são nada perigosos, como dizem. São jovens que se manifestam e viram alvo fácil da polícia. Jesus, hoje, seria meio black bloc.” Na Copa do Mundo de 2014, a Pastoral de Rua criou um torneio entre os sem-teto que usaram camisetas com a frase: “Povo da rua, primeiro eliminado da Copa.” Em 2018, organizou a Via-Sacra de Jesus e do Povo da Rua, com uma carroça cheia de flores para entregar aos membros da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana que avistavam pelo caminho. “A ideia era dizer: Vocês atiram balas em nós, a gente responde com flores.” Nesses três casos, e em mais um punhado do gênero, o padre imediatamente virou notícia.

Em todo esse looping midiático, nada trouxe tanta autoridade para suas mensagens do que o surpreendente telefonema que recebeu, há oito meses, do papa Francisco. Convencido de que não viveria o suficiente para visitar o líder da Igreja Católica em Roma, o religioso cultivou por anos a ideia fixa de fazer chegar ao pontífice uma carta contando das dificuldades que encontra no trabalho pastoral. Em três tentativas, recebeu apenas respostas protocolares, escritas por assessores do Vaticano. Até que a quarta correspondência teve destino diferente. Em 2015, o padre Luiz Eduardo Pinheiro Baronto, cura da Catedral da Sé, em São Paulo, foi a Roma e conseguiu entregar ao papa um pacote enviado por Lancellotti, com fotos do povo da rua. Francisco foi olhando tudo e perguntando: “O que é isso aqui? O que eles estão fazendo? Cadê o padre?” Depois apontou o dedo e disse: “É essa a Igreja que eu quero!” Tocado, mandou seu solidéu branco de presente para as pessoas em situação de rua. O barrete está em exibição na sacristia da paróquia do padre Lancellotti. Protegido em uma caixa de acrílico transparente, parece flutuar, lembrando umas das ocas de Oscar Niemeyer. É chamado pelos desabrigados de “bonezinho do papa”.

O contato com o pontífice parecia destinado a ser só epistolar. Até que no sábado, 10 de outubro de 2020, às 14h15, o celular do padre Lancellotti tocou e, do outro lado, um homem se identificou: “Papa Francesco.” Admirado, o pároco soltou um animado: “Santità!!” A conversa, em italiano, fluiu no tom piedoso dos líderes católicos. Francisco o incentivou a continuar, como Jesus, do lado dos mais pobres, e afirmou: “Eu rezo por você.” Na manhã seguinte, durante o Angelus, na sacada do Vaticano, o sumo pontífice anunciou: “Ontem, consegui ligar para um idoso padre italiano [sic], missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando com os excluídos, com os pobres. E vive a sua velhice em paz, passou a sua vida com os pobres. Esta é a nossa Mãe Igreja. Este é o mensageiro de Deus que vai às encruzilhadas dos caminhos.” Para o padre Júlio Lancellotti, foi o paraíso na Terra, a cacifada das cacifadas. Um cavalo de pau surpreendente, considerando que ele, por ser meio gauche na vida, teve duas malsucedidas passagens por seminários – na primeira vez saiu correndo, horrorizado. Na segunda, foi expulso.

Na década de 1950, a vizinhança no bairro do Belenzinho achava que aquela criança era um dos capetas de pés virados. O pequeno Júlio chegou a colocar bombinhas em caixas de correio ou tungar charretes dos feirantes para dar uma volta. Quando os moradores da área souberam que, aos 12 anos, ele decidira estudar no seminário da Congregação dos Missionários do Verbo Divino, em Araraquara, a 300 km de São Paulo, o alívio foi tamanho que resolveram ajudar a bancar o enxoval: duas camisetas brancas, dois pares de meia e dois shorts azul-marinho com fitilhos costurados no avesso mostrando sua identificação – o número 21. A passagem pelo seminário durou seis meses. Júlio gostava dos colegas, das rezas em latim e das cantorias em voz altíssima. Mas o lugar era muito rígido. Apanhou com vara de bambu nas mãos e na batata das pernas, levou tabefes, ajoelhou aos pés da cruz por horas. No primeiro retorno de férias à casa da família, pediu para sair.

De volta à infância típica dos bairros proletários da Zona Leste de São Paulo, retomou pequenos luxos hoje impossíveis até para garotos bilionários, como sair de barquinho com uma tia para pescar lambari em um Rio Tietê límpido. O interesse religioso, no entanto, continuou. Todo domingo, vestia calça curta, paletó e gravata e saía, da escola até a Paróquia Cristo Rei, no Tatuapé, tocando um sino para chamar as crianças para a missa. Os amigos da rua reagiam jogando bolas de barro em suas meias brancas. Desde a infância encantou-se pelo catolicismo e pelo mundo habitado por freiras marcantes dos colégios religiosos nos quais estudou. Como a irmã Inezita, que usava óculos fundo de garrafa e lhe dava aulas de reforço em matemática. Ou a irmã Teófila que, de tão branquinha, parecia feita de açúcar e usava um hábito com o Imaculado Coração de Maria pintado no peito, um símbolo que misturava fogo, água, flores, cruz e espinhos – e, em sua psicodelia, o fascinava.

Quando terminou o ginásio, resolveu tentar a vida religiosa de novo. Partiu para o Seminário Santo Agostinho, em Bragança Paulista, a 100 km de São Paulo, onde concluiu o antigo nível médio e recebeu o hábito. O começo dessa segunda tentativa foi um idílio. Ele teve a ideia de usar duas tardes da semana, depois das aulas de grego e latim, para estudar enfermagem na Santa Casa de Bragança e em seguida montou uma enfermaria no seminário. Assim que avançou para o noviciado, chegou um novo mestre – rígido, conservador e com uma ideia peculiar de como se forma um bom sacerdote: educando a sua vontade, o que significava fazê-lo abrir mão de tudo aquilo que lhe dava prazer. O noviço gostava de cantar? Não cantava mais. De tocar violão? Que deixasse de lado. O inverso também valia. Não gostava de varrer? Ia varrer. O jovem foi proibido de tocar a enfermaria, de ler o que queria, de falar com os amigos que ainda não eram noviços e de dar respostas impertinentes ao mestre. Descumpriu todas as regras, especialmente a última. Nove meses depois, o superior o chamou em sua sala e decretou: “Você não serve para a vida religiosa.”

Aos 19 anos, agora ex-frei, ele foi colocado em um trem e despachado de volta para casa – deixando para trás uma confusão dos diabos no seminário, porque um grupo de padres se opôs à expulsão. Quando chegou a São Paulo, ouviu do pai outra frase de impacto: “Da primeira vez você saiu do seminário. Da segunda, foi expulso. Agora, vai trabalhar para pagar a faculdade.” Ele relembra: “E eu achei que aquilo também não era mais para mim.” Anos depois, todos os treze seminaristas de sua turma que foram ordenados padres haviam largado a batina.

Impedido de ser padre, foi estudar pedagogia, com influência profunda das ideias de Paulo Freire. Formado, passou a dar aulas em faculdades, que conciliava com uma carreira recém-iniciada na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), hoje Fundação Casa. Ali, conheceu a psicóloga Maria Cecília Soares Santos. Hoje, aos 67 anos, com seu jeito jovial de falar, ela ri para os lados enquanto puxa pela memória daqueles tempos. “Fui namorada do padre!”, diverte-se, jogando a cabeça para trás. Aos 25 anos, recém-formada, ela ia trabalhar nos trinques, com os longos cabelos soltos, maquiada e, às vezes, de salto alto. Em poucos dias, conheceu Júlio Lancellotti. Educado, meio lacônico, às vezes vestido com roupas estilo safári, o pedagogo causou ótima impressão na jovem psicóloga: “Olhei pra ele e pensei: Hum… nossa, que diferente…”

No fim da década de 1970, a Febem era formada por unidades que abrigavam crianças abandonadas e outras que mantinham jovens infratores sob custódia. Em plena ditadura militar, alguns desses lugares eram campos de concentração de crianças, com maus-tratos indizíveis. Jovem, idealista e recém-chegado, um grupo de funcionários arriscava o escalpo para apurar casos de torturas e depois denunciá-los – quase sempre com a ajuda das pastorais sociais da Igreja Católica montadas sob o guarda-chuva de dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo metropolitano de São Paulo, e de dom Luciano Mendes de Almeida, bispo auxiliar.

Depois de prestar exame de admissão, Júlio Lancellotti entrou na Febem como assessor técnico na Unidade de Triagem 6, que abrigava meninas abandonadas. Mas já conhecia a instituição por dentro. Seu pai, Milton, fora diretor de material do Serviço Social de Menores, precursor da Febem. Como funcionário de confiança, ganhou a deferência de morar com a família em uma casa antiga e espaçosa – tinha até lareira – dentro de uma unidade que se dedicava às crianças abandonadas. Júlio cresceu em uma Febem, brincando com os meninos de sua idade, e só saiu aos 20 anos, quando a família comprou o sobrado de dois andares onde ele mora até hoje.

Rapidamente, virou líder dos jovens funcionários que iniciaram denúncias em série, as quais, mais tarde, resultaram no fechamento de unidades e em demissões por justa causa de diretores – até a extinção total da Febem, em 2006. “Era perigoso, tenso. A gente recebia ameaças o tempo todo, um horror. Mas Júlio era de uma insistência impressionante”, lembra Maria Regina Cortes, que entrou na unidade escolar como professora de educação física e logo se juntou ao grupo.

Certa vez, internos de uma das unidades fizeram chegar até eles a denúncia de que, embora não tivessem marcas no corpo, eram continuamente espancados com cassetetes. O grupo foi até a sala onde estariam guardados os instrumentos de tortura. Lancellotti precisou se exaltar para que os funcionários abrissem o armário. Quando a porta enfim se escancarou, dezenas de pedaços de madeira enrolados em panos caíram sobre eles. “O Júlio pegou aquilo tudo em uma braçada, foi até a sala do diretor e, transtornado, jogou tudo na mesa dele”, lembra Cecília Santos, a antiga namorada.

Enquanto a convivência se estreitava, Santos pensava: “Será que ele também me olha de um jeito diferente?” Os dois engataram um namoro discreto e pouco convencional. “Nos fins de semana, minhas amigas iam para discotecas com os namorados. A gente pegava um trem e ia para a Febem fazer atividades pedagógicas com os menores.” Ele escrevia longas cartas para ela e a enchia de presentes – como um pote de madeira entalhado e um pulôver com apliques que pareciam renda. Observando os casais no seu entorno, ela, às vezes, achava tudo isso incomum.

Por causa das denúncias que faziam, Lancellotti e seu pequeno grupo conviviam com reações internas que se alternavam entre ameaças explícitas, armadilhas veladas e tentativas de cooptação. Ao longo dos anos, a situação foi ficando insuportável. “Eu vi meninas com corpos massacrados por torturas, vi jovens em filas, de joelhos, um tendo que urinar no outro. Ou colocados em solitárias com mais quarenta, onde só cabiam dez”, lembra ele. Em 1979, jogou a toalha e avisou que pediria demissão. Dom Luciano Mendes de Almeida soube e conseguiu que ele fosse transferido, como comissionado, para a Pastoral do Menor. Ali, rapidamente chamou a atenção da cúpula da Igreja Católica. Em 1980, logo depois da comoção geral criada com a passagem do papa João Paulo II pelo Brasil, dom Luciano perguntou: “Quando você vai virar padre?” Lancellotti enxergou de novo a sua vocação, piscando diante de seus olhos.

Só faltava contar para a namorada. “Eu tive que dizer: Olha, vou voltar para a teologia… Ela achou um absurdo”, lembra ele. Santos dá mais detalhes: “Fiquei revoltada, me rebelei contra a Igreja. Reclamava que se pastores podiam casar, padres deveriam poder também. Pensava: Será que dom Luciano não tem mais o que fazer? Juntei tudo o que o Júlio me deu, bati na porta dele pra devolver. Ele não quis pegar, aí rasguei as cartas e doei o resto.”

Quatro anos depois, Santos comprou uma saia nova para assistir à celebração em que o ex-namorado seria nomeado diácono e prometeria obediência ao bispo. “No meio da cerimônia, saí da igreja correndo para vomitar lá fora. Foi como um expurgo.” Os dois seguiram trabalhando juntos e viraram grandes amigos. Anos depois, apaixonadíssima, ela engravidou do namorado, e o padre foi a segunda pessoa para quem ela contou a novidade. Lancellotti enfeitou a capela da Universidade São Judas Tadeu, a 600 metros de sua paróquia, para celebrar o casamento lotado da ex e brincou: “Cecília, não sei se as pessoas vão vir aqui pra ver você ou pra ver a minha cara!”

Ordenado aos 35 anos, virou padre diocesano, categoria que responde diretamente à Arquidiocese e não pertence a uma ordem religiosa. Receber a batina depois de uma formação de quatro anos em teologia, sem precisar de outra passagem pelo seminário, foi uma exceção aberta por dom Luciano Mendes de Almeida para ele e outros três colegas com comprovada vivência religiosa. Entre eles, Fernando Altemeyer Junior, hoje chefe do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Chegamos para dom Luciano e falamos: ‘Olha, essa coisa de seminário, de instituição total, parece Exército. Isso forma iguais e não queremos ser padres assim.’ Ele era um jesuíta gigante, poliglota, doutor em filosofia e tão lúcido que falou: ‘Vocês fiquem fora do seminário, já são maiores do que ele. É botar vocês lá dentro para estourarem tudo!’ Isso já nos fez malditos de cara diante de todo o clero, éramos outsiders que podiam estudar e trabalhar”, lembra Altemeyer, que acabou deixando a batina em 2000 e hoje é casado, pai de um filho e uma filha.

Lancellotti nasceu no Belenzinho, descende de italianos. Altemeyer é da Vila Prudente, também na Zona Leste de São Paulo, e vem de uma família de espanhóis e alemães. Ambos têm origem na classe popular, são meio iconoclastas e receberam homenagens das comunidades de suas paróquias no dia em que foram ordenados, em festas tão lotadas que acabaram acompanhadas pela imprensa. A única diferença marcante na formação dos dois era dona Wilma, a mãe de Lancellotti, que destoava das donas de casa do entorno e era figura forte na família: poliglota, curiosa, devorava livros e havia sido secretária executiva de um grande escritório de advocacia antes de casar. Lancellotti e Altemeyer viraram grandes amigos.

É para Altemeyer que o padre Júlio recorre quando está na pior. “Ele liga quando dá aqueles curtos-circuitos dele lá. As lutas são árduas, então às vezes cai em depressão e fica meio Dom Quixote em busca do Sancho Pança. É um homem solitário, óbvio, pela função de padre. E não vai telefonar pros arcebispos e bispos, que estão em outra, são de outro modelo eclesial. Ele optou por trabalhar com o subterrâneo do subterrâneo, com os descartados, e isso lhe cobra muito. Todos nós colocamos uma máscara psicanalítica para dizer: ‘Opa! Até aqui eu vou, depois eu não aguento.’ O Júlio vai. Mesmo que isso o rasgue inteiro.” Os dois amigos têm ainda outro fio que os une: são herdeiros puro-sangue de uma Teologia da Libertação que transformou a Igreja Católica urbana de São Paulo – e explica em tudo o mergulho do padre Júlio entre os sem-teto, sobretudo em plena pandemia.

Teólogo, filósofo, escritor e professor, o catarinense Leonardo Boff tem 82 anos e mora em uma casa cercada pela reserva ecológica de Araras, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. O núcleo duro do lugar é uma imensa sala com uma mesa, sofás de madeira e estantes de alumínio que formam um corredor e abrigam cerca de 30 mil livros. Deles, mais de sessenta foram escritos por Boff.

Apontado com frequência como grande formulador da Teologia da Libertação, Boff fica mais à vontade para situá-la no espírito de um tempo – o do clamor por liberdade que se alastrou no fim da década de 1960 e inspirou multidões de jovens nas sociedades ocidentais. “Ela surgiu nesse ambiente. Não caiu do céu, nem foi inventada por algum teólogo inspirado. No início, foi pensada por teólogos em quatro lugares diferentes: aqui no Brasil; no Peru, com Gustavo Gutiérrez; no Uruguai, com Juan Luis Segundo, e na Argentina, com Enrique Dussel. E nenhum de nós se conhecia!”

A Teologia da Libertação tem cinco décadas de existência e certidão de nascimento fincada na América Latina. Em um texto escrito quando ela completou 40 anos, Boff explica que, grosso modo, é uma corrente teológica que encara de um modo diferente a tarefa de emancipar os pobres da pobreza e da opressão. Uma estratégia eclesial e política possível interpreta o pobre como “aquele que não tem” e mobiliza os que têm para ajudá-lo, em uma lógica bem-intencionada, mas que gera assistencialismo e paternalismo. Outra entende o pobre como “aquele que tem”: força de trabalho, capacidade de aprendizado, habilidades. Então forma o pobre para que ele seja integrado ao processo produtivo, mas não faz reparos ao sistema social e, portanto, mantém a desigualdade. E uma terceira estratégia interpreta o pobre como “aquele que tem força histórica” para transformar o sistema em um outro modelo, mais igualitário e participativo. “É essa terceira estratégia, libertária, que a Teologia da Libertação ajudou a formular”, escreve ele.

Rapidamente, ela se transformou em corrente dominante no episcopado brasileiro, uma hegemonia que foi da década de 1970 até 1990. “De todos os bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, só uns três ou quatro eram contrários”, diz o teólogo, em entrevista pelo Zoom. Com vento a favor, Boff sentia-se não apenas contando com apoio total da cúpula da Igreja, mas também como um organizador das ideias que ela defendia.

Em Roma, no entanto, deu ruim. Em 1981, Boff escreveu o livro Igreja: Carisma e Poder, conjunto de ensaios que esmiuçava as teses da Teologia da Libertação. A obra alvoroçou o Vaticano, tomado por um incômodo acerca dos perigos da politização da fé e da disseminação pouco crítica das teorias marxistas. Três anos depois, Boff foi obrigado a, como ele define, “sentar na cadeirinha de Galileu Galilei” – em alusão ao astrônomo italiano que, em 1633, foi condenado por heresia e teve que renegar suas ideias diante do Tribunal da Santa Inquisição. Mais de três séculos depois, Boff foi chamado diante da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, comandada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, o futuro papa Bento XVI.

Foi um constrangimento danado. Teólogo de mente afiada, Ratzinger era amigo de Boff. Ambos trabalharam como editores da Concilium, revista internacional de teologia publicada em sete línguas. Durante cinco anos passaram juntos a semana do Pentecostes, discutindo teologia e elaborando temas para a publicação. Depois continuaram em contato, trocando cartas. Até que Ratzinger foi feito cardeal, virou presidente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e assumiu a missão de julgar o amigo. “Ele me disse: ‘Olha, Boff, esse julgamento não deve romper nossa amizade. Estou na missão ingrata como funcionário da Igreja de te interrogar, mas, como pessoas, continuamos como era.’”

Deu-se um forrobodó no Vaticano. Como tinha respaldo do episcopado brasileiro, Boff, na época frade franciscano, chegou lá acompanhado por dois cardeais: dom Paulo Evaristo Arns e dom Aloísio Lorscheider. Pela maneira como resume o episódio, enfileirando diálogos como se contasse uma parábola, Boff hoje parece até se divertir um pouco com o que viu:

“Dom Paulo foi lá pra dizer: ‘Como cardeais, nós queremos testemunhar que, se essa teologia tiver erros, devemos corrigir juntos. Mas ela é boa para o nosso povo.’ Aí o Ratzinger reagiu: ‘De jeito nenhum! É inaudito que cardeais venham aqui acompanhar o processo.’ Dom Paulo ameaçou: ‘Semana que vem estarei na Alemanha e vou denunciar as injustiças que vocês estão cometendo contra os pobres do mundo inteiro!’ Aí o papa João Paulo ii se rendeu: ‘Bom… então o julgamento terá duas fases, primeiro com o cardeal Ratzinger fazendo perguntas. Depois vocês falam.’”

Boff continua: “A primeira pergunta que o Ratzinger me fez foi: ‘Nas Comunidades Eclesiais de Base, vocês estão distribuindo armas?’ Eu respondi: ‘Como? Armas??’ E ele disse: ‘Sim, vocês sempre perguntam uns para os outros: Como vai a luta?’ Então eu tive que explicar: ‘É uma expressão brasileira pra perguntar como é que vai a vida!’ Era esse o nível de incompreensão que nós enfrentamos!”

O julgamento de Boff acabou no que ele interpreta como a melhor jogada para o tabuleiro de xadrez à disposição no momento. “Roma queria atacar não a mim, queria a CNBB. Mas bispo não come bispo, ela não pôde pegar toda uma conferência e foi no principal assessor. O episcopado aqui logo entendeu e disse: ‘Boff, aceite logo todas as condenações pra que você preserve a Igreja dos pobres, as comunidades de base que eles querem condenar.’ Eu me submeti a tudo porque sabia o que estava em jogo.”

Boff foi condenado ao silêncio obsequioso, em que não poderia publicar o livro e dar entrevistas. “Por pressão de dom Paulo, esse silêncio caiu depois. Mas o que importa é que nos anos seguintes pudemos continuar fazendo uma boa teologia. Não foi fácil, porque a Igreja em Roma era conservadora, voltada para dentro como um castelo fechado, contra a cultura moderna, e enxergava o comunismo por todos os lados. Mas avançamos”, avalia. Em termos práticos, deve-se a esse ideário a opção da Igreja Católica de São Paulo pelo trabalho imersivo com a população pobre. Sob o comando de dom Paulo, foram criadas 461 Comunidades Eclesiais de Base na periferia da cidade e 25 pastorais sociais. Entre elas, a Pastoral do Menor, com importância fundamental na criação de mecanismos de proteção como o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 – e território onde o padre Júlio formou seu modo de enxergar o trabalho pastoral.

Nas décadas dos pontificados conservadores dos papas João Paulo II e Bento XVI, a teologia militante que fez a cabeça de jovens sacerdotes latino-americanos foi se esvaziando. Agora, voltou ao coração do Vaticano com a chegada do papa Francisco, que também bebeu dessa influência quando trabalhava nas periferias de Buenos Aires – e dia desses enviou para Boff uma fotografia em que ambos aparecem juntos em 1973, jovens e com sorrisos abertos, depois de darem uma palestra na capital argentina. Hoje, a CNBB tem perfil moderado. “Mas a maioria dos jovens padres não fez opção pelos pobres. Querem casa, carro, andar com clergyman [gola branca no pescoço, indicando que é padre] e privilégios clericais. São de grupos que estão fazendo resistência ao papa Francisco”, reclama Boff.

Em 1992, Boff deixou a batina – e depois passou a dedicar-se à ecoteologia. “Dizem que eu era vermelho e depois fiquei verde”, brinca. Por causa dessa militância ambiental, desde o início da pandemia atende a todos os pedidos de live que recebe, do mundo inteiro, porque acha importante alertar: “É preciso falar mais do contexto de onde esse vírus veio, do Antropoceno, de um capitalismo que continuamente devasta a natureza.” Nesse esforço, perdeu 10 kg de massa muscular e ganhou a recomendação médica de não ficar muito tempo diante de telas. Mas todo domingo de manhã, ele e sua companheira de décadas, a educadora Marcia Maria Monteiro de Miranda, param tudo para assistir à homilia do padre Júlio, transmitida ao vivo.

Boff acompanha os sermões dominicais do pároco por identificar neles uma combinação de referências teóricas e capacidade de comunicação, e, também, porque quem está no púlpito é uma cria incontestável da Teologia de Libertação, hoje um bicho raro. “De um jeito simples, ele usa frases de um exegeta e quem tem formação nisso compreende. Mas, além da reflexão, ele tem a prática, como estamos vendo pelo mergulho dele nessa pandemia com a população que não tem onde colocar a cabeça. Por isso, a imagem que ele representa hoje irradia pelo Brasil inteiro”, analisa.

Convocado para comentar a eloquência sagrada do amigo nas missas dominicais, Fernando Altemeyer Junior explica em seus termos: “Há uma arte para fazer sermão chamada homilética. Os padres têm quatro anos para aprender isso no curso de teologia, mas a grande maioria não sabe e fica na Igreja fazendo moralismo, xingando quem não foi à missa. O Júlio se prepara muito, põe a Bíblia em cima daquele altarzinho e vai. Tem leitura heurística, que é a chave que abre a porta, tem carinho e competência histórica. É um discurso sapiencial também muito bem dominado pelo papa Francisco e que, hoje no Brasil, só uns três fazem bem. Às vezes, claro, ele exagera e leva chumbo do arcebispo, mas faz parte”, conclui.

Pouco antes de ser ordenado, Lancellotti ouviu de dom Luciano uma frase que se revelaria premonitória: “A sua vida não vai mudar muito depois que você virar padre.” Realmente, ele seguiu cutucando autoridades, transitando em ambientes barras-pesadas e usando a tática de gritar para ser ouvido. Primeiro, quando seguiu como elo entre a Pastoral do Menor e os bastidores de uma Febem em chamas. Depois, quando começou a se dedicar à população de rua.

O período Febem, sozinho, rende tomos de histórias aterrorizantes. No final de 1999, estourou uma grande rebelião no Complexo Imigrantes, um conjunto de pavilhões que abrigava até 1,2 mil menores. Quatro internos tiveram os corpos carbonizados. A cabeça de um deles foi jogada aos pés das autoridades que negociavam a rendição dos amotinados. Depois desse levante, o governo de São Paulo decidiu transferir os infratores com mais de 18 anos para outros presídios e cadeias da Febem, onde ficariam sob custódia até completar 21 anos. “Tínhamos uma parceria para conversar com esses internos e denunciar casos de tortura. Às vezes a gente saía dos presídios e encontrava bilhetes colocados por funcionários no para-brisa do carro: ‘Defensores de bandido.’ Alguns gritavam das janelas: ‘Vão morrer, desgraçados!’ Xingavam o padre, me xingavam”, lembra o advogado Ariel de Castro Alves que, à época com 19 anos, começou a trabalhar como assessor na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo e entrou para o grupo que acompanhava a Pastoral nas visitas. Nesse período, a Promotoria da Infância e Juventude colheu depoimentos de menores dizendo que eram espancados com pedaços de pau com a inscrição “Padre Júlio”. “Os funcionários da Febem batiam e diziam: ‘Protegidinho do padre’”, conta Castro Alves.

O episódio de maior voltagem aconteceu em março de 2001, quando estourou uma rebelião na Unidade 30, em Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo. Era uma espécie de presídio adaptado para ser Febem depois do fechamento do Complexo da Imigrantes, dois anos antes. O motim começou quando três visitantes armados tentaram resgatar dois menores presos. Batoré, apelido de um interno acusado de matar policiais, foi apontado como um dos líderes da rebelião, ao lado de outros menores que o padre Júlio e Castro Alves conheciam de suas visitas periódicas. Um dos monitores foi morto, outros foram jogados de cima do telhado. Durante as negociações, Batoré avisou que só se entregaria na presença do pároco, de Castro Alves, da presidente da Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar) e de promotores de Justiça da Infância e Juventude. Todos foram chamados pelo governo estadual, todos toparam ir.

Castro Alves seguiu para a unidade conflagrada em um carro da Assembleia Legislativa de São Paulo. Foi recebido com pedras atiradas por alguns funcionários, revoltados com a morte do colega. O padre chegou logo depois. “Quebraram o carro onde ele estava, arrancaram o crucifixo, deram um soco no rosto dele. Ele ficou todo ensanguentado”, lembra o advogado. Quando todos conseguiram entrar, com a ajuda de funcionários menos exaltados, foram levados para uma das torres do presídio e as negociações começaram. No momento em que Batoré aceitou entregar as armas que estavam com os internos, a tropa de choque da Polícia Militar invadiu o lugar. “Virou uma confusão. O mesmo grupo de funcionários que nos agrediu na entrada atirou em direção à cabine onde estávamos. Pulamos no chão, os vidros estouraram na nossa cabeça. Ficamos cercados até que os promotores conseguiram ligar para o procurador-geral de Justiça.” O grupo acabou saindo às escondidas, dentro de uma ambulância do Corpo de Bombeiros, em uma tensa operação de resgate improvisada pelo governo.

Anos antes, em 1993, de repente e sem aviso, dom Paulo Evaristo Arns já havia afastado o padre Júlio Lancellotti da coordenação da Pastoral do Menor. “Houve muita pressão interna da Igreja e do governo. Eles ficavam incomodados porque eu estava sempre na porta das rebeliões e acabava entrando no teatro de operações. Achavam, e acham até hoje, que a minha posição é de muito confronto, que bato de frente com autoridades. É verdade, mas é por causa dos absurdos que eu vivencio”, conta o padre. Meses depois do afastamento, na tradicional Missa de Natal celebrada para os sem-teto na Catedral da Sé, dom Paulo saiu-se com outra surpresa. Do nada, anunciou: “Está criado o Vicariato Episcopal para Pastoral do Povo da Rua! E o vigário é Júlio Lancellotti!” A igreja irrompeu em palmas. “Para consertar, de certa forma, a decisão de me tirar da Pastoral do Menor, ele me colocou em outra posição, ainda maior”, conta Lancellotti.

Em uma tarde de agosto de 2007, Luiz Eduardo Greenhalgh – ex-vice-prefeito de São Paulo e ex-deputado federal que acabara de voltar ao seu escritório de advocacia, no Centro de São Paulo – recebeu uma visita esbaforida. Era o padre Lancellotti. Seu contato estreito com o universo dos menores infratores virara uma areia movediça que, por pouco, não o engoliu para sempre. “Ele, muito angustiado, me disse que vinha sendo vítima de extorsão por parte de um ex-interno da Febem. Eu aconselhei: ‘Ô, padre, o senhor tem que romper com isso! O extorsionário só se sacia extorquindo, ele não vai parar. Vamos fazer um boletim de ocorrência.’” Ambos procuraram uma delegacia, o pároco prestou queixa e contou que o ex-interno Anderson Marcos Batista e sua mulher, Conceição Eletério, ameaçavam fazer acusações de pedofilia contra ele se não recebessem dinheiro.

Dois meses depois, o caso vazou, virou um redemoinho em volta do padre e voltou-se contra ele. O advogado do ex-interno passou a dar entrevistas afirmando que o religioso iniciara um relacionamento com seu cliente quando ele ainda era menor de idade. Depois, disse que o padre passava para o rapaz dinheiro desviado da Bompar, uma das mais relevantes instituições assistenciais mantidas pela Igreja Católica em São Paulo. Apesar de a denúncia ter sido feita pelo próprio Júlio Lancellotti, ele virou o alvo a ser escrutinado. A casa onde mora foi cercada pela imprensa, amigos se afastaram, transeuntes nas ruas o hostilizavam. A Bompar teve convênios suspensos – o padre, então, precisou se afastar de seus quadros.

Anderson Batista, sua mulher e outros dois homens acusados pelo padre de participarem da extorsão foram todos presos. Mas sete meses depois foram absolvidos e soltos. Em 2010, três anos após o caso ter vindo a público, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a absolvição dos quatro acusados. “Os desembargadores acharam que era uma palavra contra a outra, que não havia provas da extorsão. Foi um dos piores dias da minha vida. Fui dar a notícia e o padre ficou me olhando, mortificado”, lembra Greenhalgh. “Mas acabei dizendo: ‘O senhor fique atento, porque esse rapaz vai voltar.’”

Sete meses depois, o rapaz voltou. O pároco acordou Greenhalgh às seis e meia da manhã com um telefonema. Contou que Anderson Batista acabara de abordá-lo na saída de casa, exigindo dinheiro e ameaçando matá-lo com um tiro na cabeça. “Pedi para ele ir imediatamente fazer outro boletim de ocorrência e fui encontrá-lo.” Na delegacia, os investigadores e Greenhalgh resolveram percorrer a rua onde o religioso mora, em busca de câmeras de segurança que pudessem ter registrado a cena. Acharam uma, requisitaram as imagens e estava tudo lá: o rapaz esperando, o padre saindo de casa, o rapaz atravessando a rua, o padre andando, o rapaz indo atrás, o padre se encolhendo, o rapaz fazendo um gesto de arma com as mãos, o padre tentando parar um táxi. A versão de que jamais havia intimidado o religioso desmoronou. Green-halgh abriu outro processo, Batista foi preso e, em 2011, ele e a mulher foram condenados a sete anos e três meses de detenção.

Ela cumpriu parte da pena em regime aberto e hoje trabalha como auxiliar de limpeza. Ele, que já respondia a processos anteriores – um deles por matar um homem durante uma briga de bar –, acabou condenado, no total, a 17 anos, 2 meses e 24 dias de prisão. Em setembro do ano passado, ganhou o direito de migrar para o regime aberto. O relatório social que integra o pedido de progressão de pena afirma que ele demonstrou bom comportamento, teve trabalho formal na prisão – costurava bolas e reciclava materiais plásticos –, fez cursos profissionalizantes, virou evangélico e se arrependeu de seus crimes. No relatório psicológico, ele diz que se envolveu na extorsão contra o padre por ganância e influência de más companhias, mas garante que teve um relacionamento com Lancellotti. O padre, além de denunciar a extorsão, sempre negou qualquer relacionamento.

Da primeira denúncia à polícia até a condenação dos réus, o rolo durou cinco anos. “Minha vida foi revirada pelo Ministério Público, pela Polícia Civil, pela Igreja Católica, pela imprensa. Eu me considero um sobrevivente, porque não era pra eu ter sanidade mental, se é que eu tenho”, diz Lancellotti. Na época da crise, sua mãe ainda estava viva. Os dois irmãos do religioso, o mais velho e o mais novo, morreram por problemas cardíacos nesse período. “Ficávamos, eu e minha mãe, sentados aqui nesse sofá, imaginando o que mais poderia acontecer”, diz ele.

De vez em quando, o tema vira artilharia para novos ataques contra o padre. Em maio passado, depois de receber a visita do ex-presidente Lula na Casa da Oração do Povo da Rua, no bairro da Luz em São Paulo, ele foi chamado por Jair Bolsonaro de “Padre Pajero”. Era uma referência maldosa ao fato de que, além de dinheiro vivo, o padre, sob extorsão, chegou a dar um carro Pajero para o ex-interno e sua mulher. No ano passado, às vésperas da eleição para a Prefeitura de São Paulo, o assunto também veio à tona – sempre pelas mãos de algum bolsonarista. O segundo deputado estadual mais votado do estado e, na época, candidato à Prefeitura de São Paulo, o youtuber Arthur do Val, conhecido como “Mamãe Falei”, disse em entrevista ao canal TV Democracia: “Vou revelar aqui em primeira mão, e confesso que fiquei atônito com o que aconteceu. Recebi uma denúncia muito grave sobre o Júlio Lancellotti, de pedofilia. Uma denúncia, inclusive, com vídeos. Vou me preservar agora, estou consultando meus advogados e fui ao Ministério Público para ver como resolvo este problema.”

Arthur do Val não tratou mais publicamente do assunto. Mas, no dia 9 de outubro do ano passado, uma testemunha que se identificou apenas como uma jornalista chamada Maria das Dores – e pediu confidencialidade para todo o resto – apresentou requerimento na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Paulo pedindo que o padre fosse investigado pelo crime de pedofilia. Na denúncia, anexava um vídeo de catorze minutos em que, segundo afirmava, o religioso era visto trocando imagens de cunho sexual com um perfil do Facebook atribuído a um garoto de 14 anos.

As investigações preliminares mostraram que o perfil atribuído ao adolescente de 14 anos era falso e fora criado a partir de um provedor não identificado de Montevidéu, no Uruguai. A descoberta derrubou a denúncia, que acabou sendo arquivada. No mês seguinte, uma versão de 44 segundos do mesmo vídeo apareceu durante alguns dias numa plataforma de conteúdo pornográfico sob o título “Padre Julio Lanceloti (sic) praticando ped@filia”.

Até 1955, a cidade de São Paulo contava com apenas um albergue para dar algum tipo de assistência à população de rua que aumentava a olhos vistos, na esteira da intensificação dos movimentos migratórios. Mas, nos anos seguintes, freiras do grupo da Fraternidade das Oblatas de São Bento, um braço da Organização do Auxílio Fraterno (OAF), começaram a abrir casas para receber mães solteiras e crianças de rua. O trabalho delas era basicamente receber essas pessoas, com banho e cama limpa.

Em 1979, aconteceu algo de radical nessa assistência. Dom Paulo Evaristo Arns pediu que as irmãs reformulassem a maneira como a Igreja Católica lidava com os sem-teto. No embalo das ideias do educador Paulo Freire e da Teologia da Libertação, elas fecharam todas as casas de acolhimento e se lançaram nas ruas. Foram dormir embaixo dos viadutos, morar em cortiços e casarões abandonados, catar lixo, trabalhar como vendedoras ambulantes de café e de bolo. Foi uma imersão total em um mundo paralelo, formado por códigos próprios e muitas desconfianças, inclusive em relação às intenções dos representantes da Igreja.

Vasculhando por dentro as necessidades e o jeito de pensar do povo da rua, essas freiras lançaram as bases do que, mais adiante, seria um pedaço da estratégia da Igreja Católica nesse ambiente: ajudar os sem-teto a se organizar para produzir bens e, depois, denunciar o sistema que os excluiu. Do trabalho de mulheres como as irmãs Regina Maria Manoel e Dalva Ivete de Jesus, na Baixada do Glicério, no Centro de São Paulo, por exemplo, nasceu em 1989 a Cooperativa de Catadores de Papel e Papelão e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare), a primeira de milhares de organizações do gênero que depois se espalharam pelo Brasil.
Quando assumiu o Vicariato do Povo da Rua, o padre Lancellotti seguiu adiante com esse plano estratégico – agora encorpado por seu carisma midiático, trânsito entre autoridades e, sobretudo, disposição para comprar briga.

Em 2003, quando Lula assumiu a Presidência da República, o pároco foi levado por um amigo para visitá-lo em Brasília. Era para ser um breve aceno em um evento público, mas Lancellotti acabou chamado para almoçar com ele e a primeira-dama, Marisa Letícia. Ali mesmo, convidou o então presidente para um encontro com um grupo de desabrigados, organizado todos os anos na semana do Natal pela Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo. Lula topou – e o almoço natalino com os sem-teto entrou para a sua agenda oficial por oito anos. Desses encontros, saíram uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para cooperativas de catadores de materiais recicláveis, a ideia de fazer marchas da população de rua em Brasília (“Foi a primeira vez que eles foram recebidos no Palácio do Planalto”, exulta o padre) e, em 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que reúne diretrizes que os municípios não são obrigados a seguir.
E é aí que entra a atual grande briga do padre. “No âmbito municipal, as respostas são muito institucionais. É tudo muito devagar”, queixa-se. Independente da filiação partidária do prefeito da vez, ele mete o sarrafo nos abusos do rapa, como é chamada a operação dos fiscais que vão às ruas apreender mercadorias ilegais de camelôs e levam também os bens dos sem-teto. Critica duramente os excessos da Guarda Civil Metropolitana e, também, o modelo dos albergues. “Nesses lugares, há um regime em que as pessoas são destituídas de qualquer vontade, como se fossem incapazes de gerir seu cotidiano da maneira que precisam. É uma regra única para todos. O modelo de locação social, com aluguel de lugares para pequenos grupos que administram a própria rotina, é mais barato, mais eficiente, mais viável para tirar as pessoas da rua. Mas é o tipo de solução que não entra na cabeça dos burocratas.” É tanta queixa que, na gestão do petista Fernando Haddad, de 2013 a 2016, o caldo entornou – e ele e o padre romperam por um tempo.

Mais magro, cansado e apreensivo com uma pandemia cujos efeitos desabam com força maior sobre a cabeça dos sem-teto, o padre promete briga, como se vê quase toda semana. Dom Paulo Evaristo Arns costumava explicar por que razão o escolheu para ser o vigário do Povo da Rua nos seguintes termos: “Eu perguntei para dom Luciano e ele me disse: ‘O Júlio morde nos dentes, mas não larga! Ele vai até o fim!’”

Angélica Santa Cruz
Jornalista, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo