sexta-feira, 9 de abril de 2021

Marçal Aquino

Confinado, Marçal Aquino lança romance para matar a saudade da rua: 'Literatura é liberdade'

Em "Baixo esplendor", primeiro livro inédito desde 2005, o escritor e roteirista revisita a São Paulo bandida que conheceu quando era repórter policial

Ruan de Sousa Gabriel, O Globo, 09/04/2021

O escritor Marçal Aquino e a cadela Teresa, em São Paulo. Ele não sai de casa há um ano e ela passeia com o vizinho Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Marçal Aquino está com saudade da rua. Há mais de um ano, o escritor e roteirista de 63 anos está preso em casa, escondendo-se do coronavírus. Não sai nem para caminhar com a cadela. Tereza agora passeia com o vizinho. Para aliviar a saudade, Aquino dedicou os meses de confinamento a concluir uma história em que uma exótica frota automobilística — Fuscas, viaturas policiais, jipes do exército — transporta os personagens das zonas boêmias do Centro à extrema periferia de uma cidade inspirada na São Paulo que Aquino conheceu nos anos 1980, quando era repórter policial e tinha fontes quentes no submundo do crime — entre 1986 e 1990, ele bateu ponto no "Jornal da Tarde".
Na hora de ficcionalizar as ruas sem lei de seus tempos de repórter, Aquino recuou um pouco mais de uma década e localizou a trama durante a ditadura, para "examinar como era a bandidagem daquela época".  "Baixo esplendor", que chega hoje às livrarias, se passa entre 1973 e o final da década — no último capítulo, há uma referência à novela "Dancin' Days", exibida entre 1978 e 1979.
— Dependo das ruas para escrever, de pegar metrô e ouvir conversa alheia. É isso que move a minha ficção — diz Aquino ao GLOBO, por Zoom. — Pode parecer bobagem poética, mas, para falar da rua sem poder ir para a rua, tive que resgatar aquelas do meu tempo de jornalista.


'Protocolos inegociáveis'


Aquino também incluiu uma referência velada àquilo que o afastou das ruas do presente. Ao descrever os cuidados que o casal protagonista toma para se amar, o narrador diz que eles "cumpriam rotinas rígidas e protocolos inegociáveis, como se a cidade padecesse de uma peste contagiosa e precisassem se resguardar".

Capa de "Baixo esplendor", novo romance de Marçal Aquino (Companhia das Letras) Foto: Reprodução / Divulgação

Sem lançar nada inédito desde "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios", de 2005, Aquino não se decide se seus livros são novelas ou romances e prefere chamá-los de "dramas criminais". "Baixo esplendor” acompanha o drama criminal e afetivo de um policial infiltrado num bando de contrabandistas que acaba na cama com a irmã do chefe da quadrilha. Ele se apresenta aos bandidos como Miguel, é viciado em romances de espionagem e diz que aprendeu a amar assistindo a filmes franceses.
Descontadas as referências explícitas à década de 1970 (Roberto Carlos cantando "Detalhes", Sônia Braga na TV, notícias censuradas, tortura), "Baixo esplendor" passa por um romance contemporâneo.
— Não é de hoje que política e polícia saem no mesmo caderno no jornal — diz Aquino. — Ao falar da realidade, é inevitável roçar a política. Certamente alguns leitores vão traçar paralelos entre "Baixo esplendor", que se passa num tempo repressivo, com o que vivemos hoje. É incomodamente semelhante.


Parcerias no cinema e TV


Embora não veja como colocar a política de lado, Aquino prefere não fazer ficção em cima de assuntos muito quentes, como, por exemplo, a atuação das milícias.
— Recorro a esse tipo de material mais imediato quando escrevo séries, para dar uma oxigenada. Prefiro pensar que tenho carnes mais nobres para servir à mesa da literatura — diz.


Aquino mantém uma parceria audiovisual sólida com o cineasta Beto Brant e com o também escritor e roteirista Fernando Bonassi. Brant já levou para as telas quatro obras de Aquino: "Os matadores" (conto), "Ação entre amigos" (manuscrito abandonado), "O invasor" (manuscrito retomado após a filmagem) e "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios". Aquino já roteirizou livros de Daniel Galera e Sérgio Sant’Anna para Brant e de Lourenço Mutarelli para Heitor Dhalia.
Com Bonassi, ele já escreveu quatro séries policiais: três para a TV Globo ("Força-Tarefa", "O caçador" e "Supermax") e uma para o Globoplay ("Carcereiros", inspirada no livro de Drauzio Varella). Quando trabalham juntos, Aquino e Bonassi se reúnem todos os dias às 9h para discutir os episódios. Recentemente, eles submeteram uma ideia para uma nova série e aguardam a resposta. Aquino prefere não adiantar detalhes do projeto. Diz apenas que se trata de um "policial contemporâneo".
— Escrever série de TV era a experiência que me faltava — diz. — Apesar dos prazos e da pressão, é uma vivência riquíssima.


Cinema em casa


Embora o afaste das ruas que movem sua literatura, a pandemia reaproximou Aquino do cinema. Nos últimos meses, ele reviu boa parte de sua coleção de mais de dois mil DVDs. Revisitou a filmografia de Sergio Leone, Abel Ferrara e Bernardo Bertolucci. Até mandou alguns planos dos primeiros filmes de Bertolucci para Brant estudar. Também reviu "Corações loucos", de Bertrand Blier, filme que adorava e, desta vez, achou excessivamente machista.
— Esse tipo de revisão faz parte da interação orgânica com a obra de arte — acredita Aquino, cujos livros são cheios de amor carnal.
Ele afirma que os novos tempos, nos quais "a ironia foi abolida", não o obrigaram a pensar duas vezes antes de escrever sobre sexo. No entanto, ele chegou a colocar de lado um romance satírico e libertino, chamado "Felicidade genital", porque não queria explicar as piadas e dar satisfações sobre o excesso de sacanagem.
— Eu teria que fazer um livro com bula, o que seria odioso. Para mim, a literatura é o reino da liberdade — diz Aquino, que não descarta uma publicação póstuma da obra, onde aparece até um cãozinho chamado Botox. — Já tem gente querendo ler o livro. O que é proibido gera interesse, né?


Serviço:
"Baixo esplendor"
Autor: Marçal Aquino. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 264. Preço: R$ 49,90.

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