Em João Pessoa, na Rua Genésio Gambarra, pavimentada com blocos de paralelepípedos e ladeada por casinhas térreas com telhados coloniais de duas águas, os dias transcorrem serenos para Elizabeth Altino Teixeira, de 96 anos. Depois de atravessar um período muito turbulento, ela se mudou em 1985 para ali, onde passou a ter uma vida calma, mas nunca solitária. Além de familiares e amigos, costumava receber com frequência a visita de integrantes de movimentos sociais, pesquisadores acadêmicos e jornalistas que iam até o bairro Cruz das Armas para colher depoimentos dessa mítica ativista das Ligas Camponesas na Paraíba.
Desde março do ano passado, Teixeira está isolada em casa com a filha e o genro. Nunca sai à rua e não recebe mais visitas. “É um momento ruim. Ninguém visita ninguém. E a gente precisa das pessoas para conversar, contar as histórias”, ela reclama com sua voz tranquila, por telefone. A filha caçula, Anatilde Targino Alves, de 56 anos, explica: “Minha mãe tinha uma vida muito ativa, adorava receber, falar de sua luta no campo. Mas, para resguardá-la, não recebemos mais ninguém.”
Elizabeth Teixeira, aos 93 anos, ainda lúcida, mostrando registros históricos da sua luta pelos trabalhadores do campo no livro de Ayala Rocha — Foto: André Resende/G1
Filha de pequenos proprietários de terra, Elizabeth Altino desafiou a família para se casar com João Pedro Teixeira, lavrador negro e sem-terra, fundador da primeira Liga Camponesa do Estado da Paraíba, no município de Sapé. Organizações criadas pelo Partido Comunista Brasileiro, as Ligas Camponesas tinham como bandeira a melhoria das condições de vida no campo e a reforma agrária.
“João Pedro falava todo dia para mim que ele saía para lutar para ver implantada a reforma agrária no país”, ela conta. “Dizia que o certo era o trabalhador do campo ter a sua terra para garantir seu alimento. Quando casei com ele, eu não tinha conhecimento de nada da luta. Fui tomando conhecimento aos poucos, ia para todos os cantos com ele e entendi a importância.”
Em 2 de abril de 1962, João Pedro Teixeira foi assassinado com tiros de fuzil dados por dois policiais. Tinha 44 anos. Os mandantes do crime eram latifundiários de Sapé. Viúva, com onze filhos, Elizabeth Teixeira assumiu a liderança do movimento na cidade. Foi presa mais de uma vez, perseguida e ameaçada por proprietários de terras.
Na época do assassinato, o diretor Eduardo Coutinho, então com 28 anos, estava fazendo um documentário sobre os problemas sociais na Paraíba e conheceu a viúva. Em 1964, ele decidiu voltar à região para fazer um longa-metragem de ficção sobre o líder camponês e convidou a ativista para interpretar a si mesma. Em 1º de abril ocorreu o golpe militar e, no dia seguinte, as filmagens foram interrompidas. Os integrantes da equipe do longa foram denunciados nos jornais como subversivos, e Coutinho chegou a ser detido no Recife. Por sorte, os negativos de 35 dias de filmagem já haviam sido enviados para um laboratório no Rio. A ditadura militar foi implacável com os movimentos políticos no campo, e Elizabeth Teixeira passou a viver na clandestinidade, sob o nome de Marta Maria Costa. Sua família se fragmentou.
Cabra Marcado para Morrer estreou um ano antes, em dezembro de 1984. A casa em que Teixeira vive foi comprada por Coutinho, com parte do dinheiro arrecadado pelo documentário nas bilheterias. O diretor reencontrou a ativista quase vinte anos depois para mais um filme: A Família de Elizabeth Teixeira, lançado em 2014. “Foi um momento feliz entre os dois. Ele gostou de ver a casa conservada e melhorada”, disse Alves, que lembra também do pesar que a mãe sentiu ao saber da morte do cineasta em fevereiro de 2014. “Minha mãe sentiu uma dor muito grande.”
Elizabeth Teixeira reencontrou a sua prole em duas ocasiões: numa reunião da Comissão Estadual da Verdade, na Paraíba, e em seu aniversário de 90 anos, festejado no Memorial das Ligas Camponesas, instalado na mesma casa em que ela e João Pedro Teixeira viveram em Sapé. Além de Alves, outra filha, Maria José Maurício Teixeira vive em Cruz das Armas, o mesmo bairro de Elizabeth. Os demais filhos moram em Sapé, Mossoró (RN) e no Rio de Janeiro. Uma filha do casal suicidou-se, deprimida com o assassinato do pai e as prisões da mãe. Dois filhos homens foram mortos a mando de latifundiários, pouco depois do pai.
A piauí perguntou a Teixeira como ela vê a questão agrária hoje. Sua voz miúda ganhou fôlego: “A luta continua. O Brasil ainda precisa de muitas melhorias para que o povo pobre possa ter condições de viver dignamente. Sejam trabalhadores do campo, operários nas cidades e estudantes.” A filha caçula interveio: “A senhora faria tudo de novo?” “Não me arrependo de nadinha”, respondeu Teixeira.
No dia 19 de fevereiro, uma enfermeira chegou a sua casa para lhe aplicar a vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan. Sentada numa poltrona, vestida com um pijama claro de bolinhas, Teixeira apertou os olhos e soltou um sorriso quando a agulha furou seu braço. A segunda dose foi dada em 20 de março. “A vacina é importante para quê, dona Elizabeth? Para a cura?”, perguntou sua filha, que sempre estimula a memória recente da mãe. “Sim. Para a cura. E para prolongar os dias de vida.” A filha comenta: “Mesmo com o passado que teve, minha mãe não é uma pessoa triste, amargurada. Ela sempre tem uma expectativa de luta, de que se possa transformar o amanhã num lugar melhor.”
Tiago Coelho, Repórter da piauí e roteirista de cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário