domingo, 9 de junho de 2024

Dedo na Ferida - Jean Domarchi

(“Le fer dans la plaie”, Cahiers du Cinéma  N°63, pp. 18-28, outubro de 1956)

Tradução por Miguel Fernandes, 26 de maio de 2024

É preciso queimar “Kafka”? Lembraremos talvez da enquete conduzida pelo periódico progressista Action (hoje em dia extinto) sobre o papel nefasto do autor de Metamorfose na literatura contemporânea. Denunciavam deliberadamente a sua influência “deletéria”, a significação “pequeno-burguesa” e “contrarrevolucionária” de sua obra, de seu niilismo destrutivo. O processo contra ele visava apenas conduzi-lo de volta (com Dostoievski e alguns outros) ao inferno em que deviam queimar os “inimigos” do povo. Kafka, esse símbolo da podridão pequeno-burguesa, devia morrer uma segunda vez. Isso aconteceu, salvo engano, há pouco mais de dez anos [1]. O auto-de-fé não deu certo: Kafka permanece vivíssimo e um grande acontecimento abalou o mundo: a denúncia da “tirania stalinista” por Khruschev. Um novo personagem nasceu, muito mais passional que todos os heróis dos romances soviéticos; um monstro ao qual não estávamos habituados desde a antiguidade, um tipo de Proteu que combinaria a dubiedade de Tibério, o humor negro de Nero, o exibicionismo de Cômodo e a ferocidade de Constantino. Sim, Stalin era exatamente isso, e, no entanto, como era bom se curvar ante ele! Não poderíamos, não mais do que o sol, olhá-lo nos olhos, pois ele era Deus sobre a terra, pai e pastor de povos. Ele era aquele que sabia e cujo termo era lei. Temos de renunciar, porque nos é ordenado, à adoração dos “deleites do gênero humano”? Seria como pedir a um viciado que ele largasse o seu ópio sem aviso prévio. Stalin era, para os intelectuais comunistas, um admirável pretexto. Suas consciências culposas encontravam nele um salvador. Sob sua égide, podiam lavar-se dessa desgraça original – a inutilidade – e, mente apaziguada, converter-se em burocrata trabalhador forçado. Por que se privar do prazer de expiar uma culpa essencial? Não se dirá que, com uma simples ordem, devemos renunciar a esse prazer maior, que é a vontade de aniquilação.

Críticas marxista e stalinista

Mas por que esse exórdio? Que fazem Stalin e Kafka numa revista como esta? Por um momento eu havia pensado que a ofensiva de desestalinização faria circular uma corrente de ar fresco nas publicações comunistas e que os miasmas sufocantes e esterilizantes do conformismo se dissipariam. Eu havia pensado que os nossos católicos às avessas (digo, os intelectuais comunistas) se converteriam ao espírito crítico e adotariam, no que diz respeito aos produtos da civilização burguesa, uma atitude mais condizente com o próprio espírito do materialismo dialético e, portanto, isenta de toda religiosidade. Quando se dispõe de um método de reflexão tão eficaz quanto o marxismo, que necessidade há de recusar e rechaçar tudo o que não é marcado com o selo da mais estrita ortodoxia? Não é possível dar-se ao luxo da serenidade? Precisei me desiludir, infelizmente. Longe de resultar num abrandamento ideológico, é, desde o famoso discurso de Khruschev, a um enrijecimento que assistimos. A prova que basta é a adesão de Garaudy ao Gabinete Político do Partido Comunista. Deveríamos ficar surpresos? Creio que não, porque se o espírito da ortodoxia e da intolerância triunfam, é sinal de que nenhum dos membros da intelligentsia stalinista levou o materialismo histórico-dialético de Marx a sério. São, talvez, perfeitos comunistas e decerto execráveis marxistas. Não basta ajoelhar-se perante um retrato de Marx se não se conhece a inspiração profunda que anima obras como Miséria da Filosofia ou O Capital. Desafio qualquer um a me citar uma só crítica de arte ou de cinema feita realmente do ponto de vista materialista dialético. Em contrapartida, posso oferecer provas do espírito reacionário que anima os nossos stalinistas, mais particularmente no assunto do cinema, onde a ausência radical de reflexão materialista dialética é perceptível. Com efeito, não basta rechaçar um filme americano porque americano (dando-se ao luxo, uma vez a cada dez anos, de uma pequena exceção) para realizar uma obra de crítica marxista. Não há vantagem em bajular o último Yves Allégret ou Le Chanois. Menos ainda em exaltar os filmes soviéticos porque soviéticos.

Afirmo que há mais chances de sermos fieis à verdadeira inspiração do marxismo se adotarmos a atitude oposta, e, precisamente, os últimos filmes dos cineastas americanos que adoramos dão um exemplo bom demais para deixá-los escapar. Que não me acusem de paradoxal, e, sobretudo, que não me acusem de ilógico. Mais uma vez tenho vários exemplos em mente para me impressionar com os sarcasmos e sorrisos de piedade. Para um marxista, vários filmes americanos são pão benzido e, se não existissem, ter-se-ia que os inventar [2]. Continuo convencido de que Marx teria elogiado A Condessa Descalça como, no seu tempo, elogiou A Comédia Humana de Balzac e que um western de Anthony Mann não o teria fascinado menos que Les Mystères de Paris de Eugène Sue. Nossos stalinistas preferem queimar o cinema americano, como haviam queimado Kafka em nome do “otimismo proletário”. Ora, Hawks, Mankiewicz, Aldrich, Welles, Hitchcock, Minnelli e Lang são muito mais representativos das contradições do sistema capitalista do que Biberman, ou os nossos Daquin ou Allegret. É isso que tentarei demonstrar ao decorrer deste artigo, mas antes tenho de esmiuçar o mecanismo da crítica de cinema stalinista.

Os críticos stalinistas utilizam um esquema não variável, baseado nos três postulados a seguir:

1°) o postulado “maniqueista”: é bom o que é soviético, é ruim o que é americano. Percebo entretanto uma distorção deliberada nesse postulado: o cinema francês, por mais que burguês, tem direito a todas as complacências;

2°) o postulado sociológico: o único critério válido de apreciação de um filme é seu conteúdo social. É bom o que exalta o trabalho e as lutas da classe operária, o que descreve (de modo suavizado ou educativo) a sua vida cotidiana. É bom, também, o que denuncia a podridão da classe dominante. É ruim todo o resto (isto é: taxado de formalismo em nome do realismo revolucionário). Determina-se então o valor de um filme com base em seu conteúdo de classe;

3°) o postulado político (o mais importante): é bom tudo o que corresponde à linha política do partido, é ruim tudo o que a descarta ou a ignora. O julgamento estético, então, é subordinado a um simples critério de oportunidade tática, daí a indexação [3] de um filme que não contribui com o Partido na sua tarefa da luta contra a burguesia e da educação da classe trabalhadora.

Otimismo, realismo, moralismo, oportunidade, eis aí os quatro artigos da crítica stalinista. É muito fácil demonstrar a incoerência dessa nova “arte poética”. Há contradição, primeiro, entre o postulado I e o postulado II. Elogiar de qualquer jeito um filme soviético é renunciar ao ponto de vista de classe, porque certos filmes da era stalinista fazem apologia a generais czaristas em nome do ideal patriótico e ridicularizam a França e a Revolução Francesa (penso num certo General Suvorov, de desgradável lembrança). Por outro lado, condenar um filme americano a priori é impedir-se de determinar o conteúdo de classe, que, por ser implícito, deixa de existir. Mas não antecipemos. Ademais, há contradição entre o postulado II e III, porque o realismo revolucionário de um tal filme pode não coincidir de todo com os objetivos políticos do momento. Em todo caso, não há por que ser assim. No atual estado das coisas, não vejo nenhuma possibilidade a) de demonstrar os méritos desses postulados de outro modo que não por uma aceitação cega; b) de obedecer a um deles sem ipso facto corromper os outros dois.                    

Realismo revolucionário

O que é muito grave, na verdade, não é aderir a um imperativo crítico qualquer, mas condenar a si mesmo à incoerência perpétua. Seria bom, por outro lado, já que se pede um ponto de vista estético de classe, definir de vez a classe social. Ora, o próprio Marx, como sabemos, hesitou entre uma divisão bipartida (capitalistas e proletários) e uma divisão tripartida das classes (capitalistas, proletários e proprietários de terra). Não é possível, se não se tiver uma ideia clara e distinta da classe social, pensar em termos de conteúdo de classe. Daí as dificuldades aparecem toda vez que se tenta definir o realismo revolucionário. A definição mais frequente desse conceito central da estética marxista não se destaca por sua precisão. Estaria nos conformes do realismo revolucionário toda obra que descrevesse as lutas de um proletariado contra os exploradores feudais ou capitalistas. E citam com razão as obras-primas de Eisenstein e Pudovkin… para melhor rechaçar, em seguida, o cinema americano.

Acredito haver na base disso tudo um grande equívoco. A própria denominação do realismo revolucionário é contraditória porque o realismo implica, precisamente, uma objetividade na maneira de ver e descrever que a revolução exclui. Um artista revolucionário escolheu a causa do proletariado e renunciou à serenidade lúcida do narrador realista. Se teve êxito em sua obra (filme, quadro, poema, pouco importa), isso se deve justamente ao gênero épico. Ora, desde quando vemos uma obra épica dizer-se realista de outro modo que não pela precisão do detalhe? É impressionante o rigor clínico com que Homero descreve as feridas dos soldados da Ilíada. Tiveram por isso o direito de qualificar Homero como realista? Ele não o é mais que Eisenstein, e, vendo Alexander Nevsky ou Ivan, o Terrível (e mais ainda O Encouraçado Potemkin), nem sequer imagino em tratá-lo como realista.

Espelho para cotovias [4] 

É conhecida a célebre definição, dada por Saint-Réal e retomada por Stendhal, do romance: “Um espelho que se carrega ao longo da estrada”. Ela poderia convir a toda a estética realista e corresponderia bem a essa exatidão imparcial de que falávamos agora, a essa recusa de se pronunciar a favor ou contra algo ou alguém. Se aceitamos essa definição, a que obra ela corresponderia exatamente? Duvido que Stendhal, Balzac e Flaubert (bem na moda entre os nossos progressistas) tenham escrito romances que cumpram com esse programa. É que o realismo é um espelho para cotovias, um mito que nossos autores felizmente têm cuidado em levar ao pé da letra. Nenhum escritor, nenhum cineasta digno do nome pôde permanecer fiel a isso senão pela aparência, porque a essência do realismo é estrangeira à arte. Considerado estritamente, o programa realista tal como Sain-Réal o concebe consistiria em apresentar ao leitor ou ao espectador, desordenadamente, uma certa quantidade de comportamentos que lhe pouparia a necessidade de se explicar. Com efeito, não é permitido orientar o espelho nessa ou naquela direção, e se um moralista, um romancista ou um cineasta burguês não pôde, até aqui, manter essa aposta (por mais que estejam, consciente ou inconscientemente, do lado dos privilegiados), é difícil ver como um artista revolucionário cuja obra propõe a destruição de todo um mundo conseguiria isso.

O realismo na arte não existe, a menos que o entendamos num sentido evidentemente limitado (fala-se por exemplo em realismo de ideias, ou do realismo psicológico ou do realismo da cor local). Mas duvido que os nossos estetas o aceitariam seriamente como deles. É verdade que comemoraram os filmes de Autant-Lara, de Allégret ou de Grémillon, que só mantiveram o realismo em sua acepção menos perigosa, mas suponho que se trata aqui de uma simples questão de oportunidade política. De todo modo, eles traem o ideal que pensam defender ao elogiar tais produtos. Sei bem que, ao escrever isso, estarei indo na contracorrente de uma tendência profunda do movimento operário toda vez que este toma partido em questões artísticas; esse movimento é fascinado pelo desejo de encontrar em todo canto, sempre, a condição proletária na obra de arte. Que a descrição de uma vida de operário ou da atividade de uma usina não seja incompatível com a arte, disso estou plenamente convicto. A pintura desde o século XVI comporta um incalculável número de provas, que não deixa de nos mostrar pobres e deserdados de toda natureza. Mas trata-se de um realismo completamente teórico, porque o que é feio na vida passa a ser belo quando contemplado num museu. A fidelidade, a precisão do pintor conspiram em situar seu quadro nas antípodas da realidade.

É a história do coelho de Albert Dürer. Alguém pensaria em comover-se perante o coelho de Dürer, ou o caranguejo deste mesmo pintor? Que uma aquarela possa desnaturalizar a realidade a ponto de nos fazer admirar o que na natureza é apenas objeto de indiferença, até de desgosto, eis o paradoxo da arte realista, na verdade o mistério de toda a arte. Diria então aos nossos estetas stalinistas: retratem os operários o quanto quiserem, mas, se fornecerem apenas um simples duplicatum da realidade, há poucas chances de a arte ser proveitosa. No cinema como noutros cantos, a antinomia entre o real e o imaginário, entre a realidade e a verdade, é a fonte inesgotável de toda criação artística.

Escrevi acima que a própria noção de realismo revolucionário é contraditória; acrescentaria ainda que há não somente contradição entre um termo e outro (isto é, entre realismo e revolução), mas no interior do próprio conceito de realismo (porque ele existe apenas parcialmente na arte, com a condição de ser negado). Em seu significado autêntico (o de Saint-Réal), ele exclui o universo artístico (a objetividade é uma qualidade alheia à arte); em seu significado limitado (o que é tomado normalmente pelos críticos literários e críticos de arte), ele se presta à contradição. Basta então que o artista seja consciente o bastante dessas contradições para superá-las e, como dizia Hegel, se encontrar “no elemento da Verdade”.

O pecado da abstração 

Penso que os argumentos precedentes bastam para sentir que só se pode abordar de forma conveniente os problemas da estética criando uma mentalidade dialética. Não é proibido usar noções como “realismo revolucionário”, “arte das massas” ou “otimismo proletário”, contanto que se façam aparecer-lhes o lado enganoso e ilusório. Examinando qualquer uma dessas noções um pouco mais de perto, surge uma “ninhada de contradições” que deve nos tornar céticos quanto ao emprego habitual desses termos. Vou adiante. Falar em conteúdo de classe de um romance ou de um filme é mostrar-se totalmente alheio ao espírito próprio da dialética e, sobretudo, da dialética materialista e histórica. Fazê-lo, com efeito, é isolar arbitrariamente um elemento da realidade em detrimento de todos os outros. Ignorar a complexidade de uma obra para reter apenas seu conteúdo de classe é recusar-se justamente a analisar as forças contraditórias que a fizeram nascer. Que resta por exemplo dos Demônios de Dostoiévski (essa obra “repugnante mas genial”, segundo o termo de Lênin) quando se limita a determinar seu conteúdo de classe? Percebe-se que a obra está ligada a uma ideologia contrarrevolucionária sem se dar conta de que ela ilustra os conflitos que opunham os membros da intelligentsia russa dos anos 1860 tal como Dostoiévski os vivenciou. Pouco importa que o romancista tenha solucionado a oposição da ciência e da fá em prol desta última. O que interessa ao marxista é o próprio conflito e, por trás dele, as contradições internas da sociedade czarista da qual ele é o reflexo – difuso, sem dúvida, mas singularmente revelador. Ainda, limitar-se ao mero conteúdo de classe é cometer o pecado (imperdoável a um marxista) da abstração. A arte de fato, por seu direito, é dialética em sua própria essência. Que essas tensões refletem e reproduzem simbolicamente as contradições da sociedade, que elas dependem, por um lado, dos conflitos de classe que a dilaceram, isso eu não nego de modo algum. O que peço aos nossos stalinistas é que respeitem o pensamento que eles reivindicam e que tão deliberadamente distorcem; eles deveriam (o que não fazem nunca) determinar as mediações pelas quais se passa do mundo real (definido pelas determinadas relações de produção e um determinado estado de forças produtivas) ao mundo imaginário do romancista, do pintor ou do cineasta.

Essas mediações são complexas, sim, mas é uma precisa análise delas que permite mostrar em que medida Esplendores e misérias das cortesãs [5] é, a um só tempo, a reprodução alienada e autêntica da sociedade francesa sob a Monarquia de Julho, e também a expressão de um trágico que supera em muito as condições materiais e sociais que regiam a França burguesa da época de Louis-Philippe. O trágico é o da alienação e poderia se dizer, sem exagero, que toda a Comédia Humana é uma fenomenologia da consciência alienada. Que esses termos imputados ao jargão filosófico não assustem o leitor, pois eles cobrem realidades bastante simples e as caracterizam de maneira conveniente. De resto, darei uma explicação forçosamente breve, e portanto infiel, e, se eu o fizer, é unicamente para justificar minha proposta (segundo a qual o cinema americano é justificável de cabo a rabo por uma reflexão dialética) e não para transformar os Cahiers num anexo da Revista de Metafísica e Moral ou da Revista Internacional de Filosofia.

“O longo e árduo caminho”

É a Hegel que devemos a introdução da alienação no vocabulário filosófico. Sabe-se talvez que, na Fenomenologia do Espírito, Hegel intentava descrever o “longo e árduo caminho” pelo qual a consciência deve passar antes de acessar o saber absoluto. Antes de se tornar uma série de “formas” ou “figuras”, ela assume cada uma dessas formas realizando um tipo de experiência em que a consciência descobre a cada vez que o que ela tinha como verdade não era senão ilusão. É preciso então superar o momento abstrato em que a consciência-de-si busca alcançar um ideal inacessível e situar-se ao nível do espírito, onde o mundo como razão realizada não mais se opõe à consciência-de-si [6]. A primeira figura de uma fenomenologia propriamente histórica será o espírito imediato, ou o reino da “bela vida ética”, onde se realiza a “unidade de si e da substância”, isto é, do singular (o Si como caráter ético) e do universal (a substância como essência universal). Mas o momento da vida ética não pode sobreviver, e a cidade grega que a materializa historicamente é rompida por uma divisão entre a lei humana (o universal) e a lei divina (o singular). Com efeito, não é possível conciliar as exigências das leis políticas e sociais e as da família e do culto destinado aos mortos. A Creonte – defensor da ordem pública, expressão da vontade comum dos cidadãos – Antígona, que representa os direitos do clã. A tragédia, então, nasce do conflito do direito contra o direito, e esse conflito é insolvível. A cidade grega, portanto, representaria aos olhos de Hegel – bem como aos de Goethe ou Hölderlin – um mundo harmonioso, uma terra que, segundo a expressão de Goethe, seria preciso “descobrir com os olhos da alma” (“Das Land der Griechen mit der Seele suchen”).

De todo modo, essa harmonia seria, para Hegel, efêmera, e é na tragédia grega (Sófocles e Ésquilo) que se exprimem justamente as contradições do mundo grego clássico concebido como “espírito imediato”. Ao primeiro mundo do espírito sucederá portanto o mundo da alienação e da cultura, mundo fragmentado, dividido, onde o espírito torna-se estrangeiro a si próprio. Ao momento da oposição implícita, em que o Si exprime-se ingênua e contraditoriamente como singularidade e universalidade da vida ética, sucede o momento em que o Si aliena a sua certeza imediata e torna-se, por essa própria alienação, substância. Mas ao mesmo tempo essa substância se lhe torna estrangeira. Se pela cultura ele havia alcançado o Universal, o conteúdo próprio dessa substância universal lhe escapa progressivamente: a vida ética com a qual ele coincidia espontânea e ingenuamente lhe parece – agora que ele se apropriou – uma realidade extremamente opaca, o mundo se tornou o “negativo da consciência-de-si”. Alienando seu ser natural, o Si tornou-se não somente estrangeiro ao mundo do qual ele se apropriou, mas estrangeiro a si próprio.

Tentemos agora colocar em linguagem comum o que Hegel coloca em linguagem filosófica. Diremos: ao negar o estado de natureza, ao civilizar-se, o homem sem dúvida adquiriu maior força, mas esse mundo que ele pensava dominar lhe escapa; ele se transforma numa realidade objetiva exterior, e portanto opressiva, a quem o havia concebido. O Estado e a Riqueza, que são produtos da atividade humana, tornam-se tanto mais realidades hostis porque estrangeiras, entidades literalmente indiferentes. O Estado e a Riqueza definem dois momentos de uma dialética que é precisamente a da consciência alienada. No momento exato em que o Estado torna-se universal e abstrato (a monarquia absoluta), o nobre que, antes, considerava uma honra servir o Estado, passa a esperar apenas vantagens materiais, títulos e pensões. Ao sentimento de honra sucede a bajulação, pois não há outro modo de obter tais vantagens que não seja por agradar ao rei. À consciência nobre opõe-se a consciência vil. Trocando sua honra pelo dinheiro, a consciência se apropria do Estado porque é da essência própria do poder do Estado recompensar seus servidores, remunerar seus funcionários. Mas, ao fazê-lo, a consciência o nega, porque reteve ela apenas uma aparência material do dinheiro. Ao poder do Estado sucederá então o poder do dinheiro; à obediência ao Soberano a submissão à Riqueza. Alienando-se na bajulação e pela bajulação, a consciência se torna estrangeira ao Estado, cuja substância ela incorpora mas cuja significação universal e abstrata ela reverte a um simples eu singular (o Monarca Absoluto), reduzido ao papel de puro distribuidor de privilégios. Do mesmo modo ela própria se aliena numa coisa – o dinheiro, negação do Estado – e no anonimato da vida econômica. A riqueza torna-se aqui universal, transforma as relações humanas em relações objetivas e abstratas, em relações de objeto para objeto.

Oferta e demanda

Marx conhecia muito bem essa dialética da alienação e da cultura. Propôs, aliás, um comentário genial sobre a Fenomenologia do Espírito no seu Manuscrito Econômico-Filosófico de 1844. De todo modo, parecia-lhe que Hegel não havia realizado uma superação efetiva da alienação burguesa. Com efeito, essa superação em Hegel é puramente especulativa: o saber absoluto suprime apenas ideologicamente a alienação e é, portanto, ele próprio alienação. É que, para Marx, não se poderia superar o mundo da riqueza a partir duma atividade puramente espiritual, nem que fosse ela a do “puro saber do Si para-si”. Por quê? Porque a dialética da Riqueza e do Estado não é a expressão de uma dialética da consciência-de-si, mas a reprodução ideal de uma dialética real: a da sociedade mercantil e, mais particularmente, a da sociedade capitalista. Assim, Marx substitui a noção idealista de alienação (Entfremdung) pela noção materialista de reificação (Verdinglichung). Nas sociedades capitalistas, com efeito, as relações pessoais tornam-se relações de objetos para objetos, de compradores com vendedores. Tudo se troca, tudo por um preço: o amor, a inteligência, a dignidade etc… O código da submissão e da honra da sociedade cede o lugar à lei da oferta e demanda da sociedade capitalista. É o reino do fetichismo da mercadoria, ou então da abstração universal, e é evidente que, se se concebe a história não mais como história do espírito e sim como história real de relações de produção e troca, a única maneira de suprimir a alienação real (a reificação) é destruir efetivamente as relações por uma atividade prática (a revolução), em vez de idealmente, pelo saber absoluto.

O materialismo histórico-dialético de Marx consiste, então, em conceber a história do homem como história natural de relações materiais de produção de consumo e troca. À fenomenologia hegeliana – que descrevia o devir como “o calvário da história, sem o qual o espírito seria solidão sem vida alguma” – sucede a história da exploração do homem pelo homem, à qual somente a sociedade sem classes pode dar fim. Mas o desdobramento dessa opressão perpétua, e a luta contra essa opressão perpétua – só é possível compreendê-los dialeticamente. O mundo capitalista sendo o mundo da abstração absoluta e universal, trata-se de substituir a dialética do espírito pela dialética do capital e estudar as metamorfoses do capital como Hegel estudara as metamorfoses do espírito. Daí o caráter esotérico e abstrato do Capital, que, para um leitor não iniciado, parece tão enigmático e incoerente quanto a Fenomenologia de Hegel.

Peço uma vez mais ao leitor que desculpe esse desenvolvimento brusco, mas era preciso ter uma noção do papel desempenhado pelo conceito de alienação e da versão materialista que Marx propõe desde o primeiro capítulo do Capital.

Hollywood, microcosmo

Posso agora, se o leitor teve a paciência de me seguir até aqui (no que eu gostaria de crer!), dizer no que consiste, para mim, a originalidade essencial dos filmes dos grandes metteurs en scène americanos. Eles têm sido mais ou menos conscientemente obcecados pelo caráter “reificado” da sociedade americana. Todos eles tentaram de certa forma trazer à tela a degradação do homem americano. Revelaram, em consequência disso, o lado mistificador do american way of life e denunciaram com extrema violência o fetichismo do dinheiro. Mostraram-nos o homem perseguido, cercado pelas exigências do sucesso, do ganho, da ascensão social, da defesa dos interesses adquiridos. E a nostalgia da pureza, da autenticidade (ousemos esta palavra apesar do emprego duvidoso que Montherlant fizera dela) que anima os maiores deles, não é senão o inverso dessa crítica passional ou irônica à boa consciência americana, mercantilizada ao extremo.

Acrescentaria ainda o seguinte: é no momento em que parece que sua proposta está o mais distante de uma preocupação social qualquer que a sua crítica tem maior alcance, que ela toca o nervo sensível desse novo Leviatã que é a sociedade capitalista americana.

Querem mais provas? Em primeiro lugar, todo um conjunto de filmes que, de um modo ou de outro, tem Hollywood como centro de interesse: The Bad and theBeautiful de Minnelli, A Star is Born de Cukor, The The Barefoot Contessa de Mankiewicz, The Big Knife de Robert Aldrich. Em segundo lugar, uma parte importante da obra de Welles (Citizen Kane e Lady from Shanghai), de Hawks (Monkey Business, Gentlemen Prefer Blondes), de Fritz Lang (While the CitySleeps) e de Hitchcock, particularmente o extraordinário Strangers on a Train. Apesar da aparente diversidade das suas histórias, todos esses filmes tratam do mesmo assunto: a impossibilidade, no atual estado das coisas, de uma moral efetiva e autêntica, ou, se preferir, a incompatibilidade entre a moral (outra que não a do poder público) e a sociedade capitalista. Se o comitê hollywoodiano fosse inteligente, os metteurs en scène que acabo de citar é que seriam retirados de seus ofícios, e não metteurs en scène como [Jules] Dassin, [Joseph] Losey ou [John] Berry, decerto admiráveis, mas infinitamente menos perigosos [7]. Ao lado desses destruidores, que decerto não teriam escapado ao fogo da inquisição espanhola, muito pouco nocivos me parecem [Elia] Kazan, [George] Stevens e [Laslo] Benedek, isto para não dizer de [Delbert] Mann.                                                                                  

Penso que vale a pena entrar em detalhes. Não é por acaso que Hollywood e os acontecimentos de agora sejam tão frequentemente estudados pelos metteurs en scène americanos. Antes de tudo, por um motivo que salta aos olhos: nossos atores sabem do que falam, conhecem melhor que ninguém a situação, às vezes pouco invejável, de realizador na hierarquia hollywoodiana (cf. Harry Dawes em The Barefoot Contessa). Tiveram todo o tempo para desmontar as engrenagens dessa sociedade que parece encaminhar-se rumo a um regime de castas. Daí a total falta de indulgência e a crueldade que sobressaem de seus retratos, tanto mais implacável porque recusa a ênfase e o excesso.

Então porque Hollywood é um microcosmo que reproduz, acrescidos mil vezes, os defeitos da sociedade americana. É o capitalismo elevado à potência N, a manifestação de um monstruoso crescimento do “pesadelo climatizado” de que fala H. Miller cada vez que faz alusão aos EUA. O próprio Minnelli, o “precioso” Minnelli, terá experimentado um movimento de humor, e este se traduz pelo magistral The Bad and the Beautiful, filme ignorado e cujo sentido irei sempre me recriminar por ter compreendido tão tardiamente. Trata-se – lembremos – de um produtor que apoquenta a todos com suas exigências, com sua maneira de tratar seus colaboradores mais próximos e queridos como objetos, em função de sua utilidade no momento. Ele é culpado? Sim e não – mas, como veremos, não se trata de uma resposta incerta. Servindo, sem dúvida, de exemplo, ele é um “promotor” (em toda a força do termo), um descobridor, e nesse sentido ele é admirável; mas se Minnelli deixa pairar uma dúvida sobre o destino que o espera (não sabemos nunca se ele é ou não admitido de volta a Hollywood após seu exílio) é porque talvez sua responsabilidade seja um tanto atenuada. Parece mesmo, e é o que o retrato incisivo do nosso autor dá a entender, que o sistema é que é o responsável e que, ao fim de tudo, nosso produtor não faz senão aplicar as inumanas regras do jogo, as quais, para além de Hollywood, dizem respeito aos EUA inteiro. Minnelli, admirável moralista, denuncia uma facticidade essencial dos meios hollywoodianos, e – o que eu mais admiro – com extrema sutilidade e destreza. Quem teria pensado que Minnelli (que, sem dúvida, ficaria surpreso) aproxima-se do filósofo existencialista Martin Heidegger, quando este descreve em Ser e Tempo a existência do Ser-aí, isto é, o indivíduo a quem toda autenticidade é estrangeira? Aqui os stalinistas se incomodam. O fascista Heidegger! Mas esquecem apenas que, neste caso, Heidegger se limita pura e simplesmente a traduzir, em seu “analítico essencial”, as descrições de Hegel e Marx.

É essa denúncia da facticidade que encontramos mais amarga em The Big Knife e Kiss Me Deadly de Robert Aldrich, sobre os quais terão de me escusar por ser breve. Notarei apenas que a alienação, ou a reificação, atinge em certos personagens um ponto tal que o simples respeito pela vida do outro já não tem para eles sentido algum. É com toda a tranquilidade, sem hesitar, que eles decidem a morte de um ser indefeso. Trata-se de gente perfeitamente honrável. Smiley Coy, o public relation do produtor Stanley Hoff, decide calmamente a morte de uma estrela cuja indiscrição põe em risco a reputação dum ator cuja cota no box-office assegura à sua firma lucros consideráveis. Estamos mesmo num ambiente regulado pela compra e venda. E, no entanto, Mr. Smiley Coy foi major na Air Force e – detalhe importante – ele é recebido pelo célebre compositor de Show-Boat e Roberta, Jerome Kern. Não poderia ser mais suspeito que a esposa de César.

Com Cukor e A Star is Born, parece que se trata de coisa completamente diversa: a vida de um casal. Na verdade, é o problema da rentabilidade da star que é levantado. Pouco importa, ao final, que as excentricidades do ator Norman Maine o coloquem numa inevitável decadência. O que importa é que ele é cada vez menos eficaz, que ele capta cada vez menos dinheiro. Torna-se um peso morto e então… sem desculpas! Que a ascensão de sua esposa Vicky Lester lhe faça entrever sua queda, e que a recusa de sua piedade, mesmo imbuída de amor, o leve ao suicídio – isso é apenas parte da história. Trata-se também da destruição de toda vida pessoal, da análise do star system como princípio de toda relação humana. Trata-se da aniquilação do ser em prol exclusivo da aparência.

O ator, como o financiador ou o magnata de imprensa, existe para o outro. Ele pode se comprazer (como o Charlie Kane de Orson Welles), ou deplorá-lo, mas não é isso que importa; qualquer que seja o estado das coisas, ele existe apenas para o olhar do outro; ele é o símbolo carnal de todo o poder do dinheiro que se aliena ao olhar anônimo da multidão e na qual a multidão, por sua vez, se aliena. Essa alienação recíproca substitui relações pessoais concretas por relações objetivas: a estrela é objeto de um culto; o financiador, objeto de ódio; o político, objeto de desgosto. E, como tais, eles pertencem à multidão, livre para avaliá-los como bem quiser, livre para reconsiderar sua avaliação inicial.

De Marx a Minnelli

É ainda sob outra luz que Mankiewicz aborda All About Eve e sobretudo The Barefoot Contessa. Este último filme foi um dos únicos a escapar da vendeta dos stalinistas, mas receio que as razões pelas quais eles o elogiaram não sejam as melhores. Tal como em Five Fingers, Mankiewicz nos propôs um tema que permite inesgotáveis variações e presta-se justamente a uma formulação dialética. Por trás do argumento do filme, vê-se com efeito que o que interessou Mankiewicz foi o conflito do real e da aparência. A Condessa morre por ter crido numa realidade que é somente aparência para escapar à facticidade de sua existência enquanto estrela: os contos de fada de sua infância pobre, aos quais ela apega em desespero, não têm mais consistência que a sua vã existência desde que conheceu a glória. Ela encontra, sem dúvida, um charmoso príncipe verdadeiro, mas esse belo rapaz simboliza a esterilidade e a impotência. Seu não-conformismo sexual (ela dorme com outros homens de classe inferior à sua) é, sem dúvida, uma recusa de facticidade, mas também sintoma de uma inadaptação radical, de uma incapacidade de afrontar o presente. Sua morte é a consequência lógica de sua covardia, ou, melhor, de uma certa inconsequência muito feminina e cativante. Onde está então a verdade? Nem nos contos de fadas das eternas garotinhas, nem sequer na vida mundana. Ela se encontra numa certa lucidez desencantada da qual Harry Dawes, o antigo metteur en scène da Condessa, é o sedutivo representante. Encontra-se também no trabalho, e precisamente nos filmes (como os que Mankiewicz realiza enquanto produtor independente) que darão da realidade uma visão mais profunda que a dos “filmes baratos” (talvez os de Gregory La Cava) adorados por nossa Condessa. Maria Vargas, Condessa Torlato-Favrini, vítima do mau cinema tão nocivo quanto a vida mundana – porque tão factício quanto. A moral deste filme admirável é extremamente severa: o caminho que leva à autenticidade é um caminho difícil sobre o qual Harry Dawes trepidou e no qual Maria Vargas não pôde seguir até o final (Harry Dawes deixando o túmulo de Maria para voltar ao seu trabalho ilustra-o perfeitamente). Poder-se-ia ter o receio de que um tema tão difícil quanto o do conflito do real e da aparência fosse tratado com secura. Não é: as variações nele enxertadas são de alta qualidade. Mankiewicz, num deslumbrante diálogo, opõe duas concepções, duas atitudes acerca da riqueza: o espírito de acumulação e o espírito de prodigalidade e pompa.                                                                                  

Essa insistência com que os cineastas mais importantes da geração jovem descrevem as diferentes modalidades da consciência alienada, nós a encontraríamos nos autores mais antigos, como Hawks (menciono de memória o papel de Marilyn Monroe em Gentlemen Prefer Blondes).

Em Hitchcock, o problema é abordado no interior de uma dialética que é a da consciência criminal, dialética existencial que só adquire seu sentido em referência à sociedade capitalista americana. Se o criminoso só pode se afirmar na concepção do outro, é que não lhe é possível realizar-se nos valores universais, que não existem mais porque o sistema os destruiu desde há muito. O medo da polícia, que pode dar o que pensar aos medíocres, não faz senão recuar os indivíduos fora-de-série que literalmente fascinaram, tanto quanto repugnam, Hitchcock.                                                              

Talvez teremos admitido que o caminho que leva de Marx a Minelli, Mankiewicz e alguns outros é menor do que parece. E por que condenar autores que se portam como fiadores de uma gravíssima crise do sistema de valores puramente materiais da economia americana? Que eles propõem apenas soluções evasivas, isso eu enxergo. O fato é que eu ainda anseio por testemunhos tão lúcidos e graves da decomposição da nossa civilização.

 

                                                                                                          Jean DOMARCHI

 

[1] “Faut-il brûler Kafka ?” (“É preciso queimar Kafka?”), texto de Maurice Merleau-Ponty, foi publicado em 1946. [Nota do tradutor]

[2] Paráfrase do famoso ditado de Voltaire: “Si Dieu n’existait pas, il faudrait l’inventer” (“Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo”). [N. do T.]

[3] Relativo a “índex”, expressão que remete ao Índice de Livros Proibidos da Igreja Católica. [N. do T.]

[4] Tradução literal de miroir aux alouettes. Diz respeito a algo enganoso. [Nota do tradutor]

[5] Romance de Honoré de Balzac, 1847. [N. do T.]

[6] Hegel acaba de analisar justamente as formas últimas da consciência empírica nas quais esta se descobre como razão. O Si, referido nos capítulos sobre o Espírito, é o sujeito engajado numa comunidade histórica e a alienação é a parte do sujeito no objeto. [Nota do autor.]

[7] Domarchi se refere à lista negra de Hollywood. Nesta lista, no período do macartismo – período marcado por ações anticomunistas e sensação de caça às bruxas –, compilavam-se atores, diretores e demais membros da indústria de Hollywood que supostamente tinham aspirações e simpatias comunistas. O objetivo era negar-lhes a oportunidade de emprego. [Nota do tradutor]

 


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