segunda-feira, 24 de junho de 2024

A expansão do Ensino Superior no Brasil

A expansão do ensino superior no Brasil: mudanças e continuidades (1)

Dermeval Saviani (2)

Resumo:

A  expansão  do ensino  superior  no  Brasil,  iniciada  em  1808  com  os  cursos superiores criados por D. João VI, portanto, por iniciativa oficial, tiveram continuidade no  Império  com  a  criação  das  faculdades  de  direito.  Uma  mudança  aconteceu  na Primeira República quando a expansão ocorreu por meio da criação de instituições ditas livres,  portanto,  não  oficiais  sendo,  via  de  regra,  de  iniciativa  particular.  Uma  nova mudança  se  processou  a  partir  da  década  de  1930  com  a  retomada  do  protagonismo público  que  se  acentuou  nas  décadas  de  1940,  1950  e  início  dos  anos  60  por  meio  da federalização   de   instituições   estaduais   e   privadas   e   com   a   criação   de   novas universidades  federais,  entre  elas  a  Universidade  Federal  de  Goiás  instituída  em dezembro  de  1960.  Em  todo  esse  período  que  se  estendeu  até  a  Constituição  de  1988 detecta-se  uma  continuidade  representada  pela  prevalência  do  modelo  napoleônico  de universidade na organização e expansão do ensino superior no Brasil. A partir da década de  1990,num  processo  que  está  em  curso  nos  dias  atuais,emerge  nova  mudança caracterizada  pela  diversificação  das  formas  de  organização  das  instituições  de  ensino superior alterando-se o modelo de universidade na direção do modelo anglo-saxônico na versão norte-americana.
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(1) Conferência proferida no campus de Catalão da Universidade Federal de Goiás, em 16/09/2010.

(2) Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq e Coordenador Geral do HISTEDBR.

Artigo recebido em setembro de 2010
Poíesis Pedagógica - V.8, N.2 ago/dez.2010;  pp.4-17
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A expansão do Ensino Superior no Brasil

Embora alguns dos colégios jesuítas no período colonial mantivessem cursos de filosofia  e  teologia,  o  que  dá  respaldo  à  tese  de  que  já  existia  ensino  superior  nessa época no Brasil, os cursos superiores propriamente ditos começaram a ser instalados no Brasil  a  partir  de1808  com  a  chegada  de  D.  João  VI.Surgiram,  então,  os  cursos  de engenharia da Academia Real da Marinha (1808) e da Academia Real Militar (1810), o Curso de Cirurgia da Bahia (1808), de Cirurgia e Anatomia do Rio de Janeiro (1808), de Medicina  (1809),  também  no  Rio  de Janeiro,  de  Economia  (1808),  de  Agricultura (1812), de Química (química industrial, geologia e mineralogia), em 1817 e o Curso de Desenho Técnico (1818). Vê-se que se tratava de cursos superiores isolados, isto é, não articulados no âmbito de universidades.

Após a independência, por decreto de D. Pedro Ide 11 de agosto de 1827, foram criados  os  Cursos  de  Direito  de  São  Paulo  e  de  Olinda  sendo  que  este  último  foi transferido para Recife em 1854. Esse dois cursos vieram a constituir, respectivamente, a  Faculdade  de  Direito  do  largo  de  São  Francisco,  em  São  Paulo,  e  a  Faculdade  de Direito  do  Recife.Em  1934,  com  a  fundação  da  Universidade  de  São  Paulo,  a Faculdade de  Direito  do  Largo de  São Francisco  a  ela  foi  incorporada o  mesmo  tendo ocorrido  com  a  Faculdade de  Direito  do  Recife  que  se  incorporou  à  Universidade Federal de Pernambuco, criada em 1946.

De  modo  geral  aos  cursos  criados  por  D.  João  VI  e  às  duas  mencionadas faculdades  se  resume  o  ensino  superior  no  Brasil  até  o  final  do Império.  Duas características  são comuns a todos eles: trata-se de cursos ou faculdades isoladas e  são todos eles públicos mantidos, portanto, pelo Estado.

Mas já  no final do império ganhou força o movimento pela desoficialização do ensino, que era uma bandeira dos positivistas, e pela defesa da liberdade do ensino, uma bandeira  dos  liberais,  à  qual  se  associou  o  “ensino  livre”,  proclamado  no  decreto  da chamada  Reforma  Leôncio  de  Carvalho, de  1879.  Com  o  advento da  República,  sob influência  do  positivismo  essa  tendência  foi  ganhando  espaço,  o que  se  evidenciou  na visão mais radical como a de Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, cuja Constituição suprimiu  o  ensino  oficial  decretando  a  liberdade  das  profissões.  E  mesmo  o  governo federal, ainda que sob a influência mais moderada de Benjamin Constant, não deixou de advogar as faculdades livres.

Vemos  assim  que  nas  primeiras  décadas  republicanas  arrefeceu-se  a  iniciativa oficial e surgiram  faculdades e também esboços de universidades no âmbito particular. Uma delas foia Universidade do Paraná que, fundada em 1912, iniciou seus cursos em 1913 e em 1920, por indução do governo federal, foi desativada e passou a funcionar na forma de faculdades isoladas (Direito e Engenharia, reconhecidas em 1920 e Medicina, reconhecida  em  1922) até  ser  reconstituída em  1946 e  federalizada  em  1951,  dando origem à atual Universidade Federal do Paraná.

Essa  “Universidade  do  Paraná”,  fundada  em  1912  pertence  ao  grupo  que  Luiz Antonio Cunha denominou de “universidades passageiras” (CUNHA, 1986, p. 198-211) no qual  se   incluem,  também,  a  Universidade  de  Manaus,  criada  em  1909,  e  a Universidade   de   São   Paulo,   fundada   em   1911.   A   de   Manaus,   surgida   com   a prosperidade  da  borracha  foi  dissolvida  em  1926  com  a  crise  econômica  representada pelo  esgotamento  do  ciclo  da  borracha.  Das  faculdades  que  a  integravam  sobreviveu apenas  a  Faculdade  de  Direito,  que  foi  federalizada  em  1949  e  depois  incorporada  à Universidade  do  Amazonas,  criada  por  lei  federal  de  1962  e  instalada  em  1965.  A  de São  Paulo cessou  suas  atividades  por  volta  de  1917  não  persistindo  nenhuma  de  suas faculdades.

Já a Universidade Federal do Rio Grande do Sul remonta à Escola de Farmácia e Química,  criada  em  1895 e  à Escola  de  Engenharia,  fundada  em  1896.  A  essas  se seguiram em  1900as  faculdades  de  medicina e  de  direito.  Em  1934  essas  escolas, acrescidas das Faculdades de Agronomia e Veterinária, de Filosofia, Ciências e Letras e do Instituto de Belas Artes,constituíram a Universidade de Porto Alegre transformada, em 1947, na Universidade do Rio Grande do Sul que foi federalizada em 1950.

A de Minas Gerais surgiu em 1927 por iniciativa privada contando com subsídio do   governo   estadual,   vindo   a   ser   federalizada   em   1949   dando   origem   à   atual Universidade Federal de Minas Gerais.

A  Universidade  da  Bahia  foi  constituída  em  1946  incorporando  a  Escola  de Cirurgia,  criada  em  1808,  Farmácia  (1832),  Odontologia  (1864),  Academia  de  Belas Artes (1877), Direito (1891) e Politécnica (1896), acrescidas da Faculdade de Filosofia, Ciências  e  Letras  criada  em  1941.  Em  1950  ela foi  federalizada  transformando-se  na atual Universidade Federal da Bahia.

A  Universidade  do  Rio  de  Janeiro  foi  constituída  em  1920  pela  reunião  da Faculdade de Medicina originária da Academia de Medicina e Cirurgia fundada por D. João VI em 1808, da Escola Politécnica, cuja origem remonta a1792com a fundação da Real  Academia  de  Artilharia,  Fortificação  e  Desenho,e  da  Faculdade Nacional de Direito,   criada   em   1882   e   restabelecida   em   1891   às   quais   foram   acrescidas posteriormente  a  Faculdade  Nacional  de Belas  Artes  e  a  Faculdade  Nacional  de Filosofia. Em 1937 ela passou a se chamar Universidade do Brasil e em 1965 recebeu o nome atual de Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foi  após  a  Revolução  de  1930  que  se  retomou  o  protagonismo  do  Estado nacional  naeducação  com  a  criação,  já  em  outubro  desse  ano,  do  Ministério  da Educação  e  Saúde  Pública  e  com  os decretos  da chamada  Reforma  Francisco  Campos em  1931,  entre  os  quais  se  situam  o  que  estabeleceu  o  Estatutodas  Universidades Brasileiras  e  o que  reformou a  Universidade do Rio  de Janeiro.  Na  sequência  ocorreu, em 1934, a fundação da Universidade de São Paulo, mantida pelo governo do estado de São  Paulo,  e em  1935,  a  criação da  Universidade  do  Distrito  Federal,  mantida  pelo governo da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país.A partir do final da década de 1940 e ao longo da década de 1950 vão ocorrer as federalizações estendendo-se pelasdécadasde 1960 e 1970 o processo de criação das universidades federais, de modo geral nas capitais dos estados federados.

Esboçando  uma  visão  de  conjunto  podemos  dizer  que  no  Brasil  o  ensino superiorteveorigem a partir de 1808 na forma dos cursos avulsos criados por iniciativa de D. João VI, sendo somente no primeiro quartel do século XX que aparecem algumas iniciativas,  ainda  isoladas  e  pouco  exitosas  de  organização  de  universidades.  Estas  só começaram a se caracterizar mais claramente a partir do Decreto 19.851, de 11 de abril de 1931 que estabeleceu o Estatuto das Universidades Brasileiras, seguido do Decreto n. 19.852,  da  mesma  data,  dispondo  sobre  a  organização  da  Universidade  do  Rio  de Janeiro. Nesse contexto foi criada, em 1934, a Universidade de São Paulo e, em 1935, a Universidade  do  Distrito  Federal,  por  iniciativa  de  Anísio  Teixeira,  que  teve  duraçãoefêmera, tendo sido extinta pelo Decreto n. 1063 de 20 de janeiro de 1939, ocasião em que seus cursos foram incorporados à Universidade do Brasil que havia sido organizada pela Lei n. 452, de 5 de julho de 1937 por iniciativa do ministro da educação, Gustavo Capanema.  Ainda  na  década  de  1930  se  organizava  o  movimento  estudantil  com  a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1938. Em 1941 surgiria a PUC do Rio  de Janeiro  e,  em 1946,  a  PUC  de  São Paulo. Na  década de 1950  a  rede  federal  se amplia especialmente com a “federalização” de instituições estaduais e privadas.

Obviamente, se o próprio ensino secundário, como indicava o Decreto-lei 4244, de 9 de abril de 1942, tinha como finalidade “formar as individualidades condutoras”, o acesso  ao  ensino  superior  estava  restrito  às  elites.  No  entanto,  com o desenvolvimento da  sociedade  brasileira  em  direção  ao  padrão  urbano-industrial,  as  pressões  populares subverteram aquela finalidade do ensino secundário, ampliando-se a demanda por vagas no ensino superior que ganhava grande visibilidade com a figura dos excedentes, isto é, os jovens que obtinham a nota mínima de aprovação nos exames vestibulares,mas que não  podiam ingressar  no ensino superior por falta de vagas. A  visibilidade decorria  do fato  de que,  tendo  sido  aprovados,  esses  jovens  consideravam  que  haviam  adquirido o direito  de  cursar  a  universidade  e  montavam  acampamentos  à  frente  dos  prédios  das instituições, exigindo a abertura de vagas para a efetivação  de suas matrículas. Junto a essa  pressão  pelo  acesso  à  universidade  por  parte  dos  jovens  das  camadas  médias  em ascensão, o início dos anos 60 assistiu a uma crescente mobilização, sob a liderança da UNE,  pela  reforma  universitária   inserida,  sob  a  égide  da  ideologia  nacionalista-desenvolvimentista,  no  âmbito  das chamadas  “reformas de base”.  Com  isso,  a  questão da  universidade  assumia  uma  dimensão  de  ordem  social  e  política  bem  mais  ampla, sendo  um  dos  componentes  da  crise  que  desembocou  na  queda  do  governo  João Goulart, com a consequente instalação do regime militar.

O  advento  do  golpe  militar   em  1964,  por  um  lado,  procurou  cercear  as manifestações  transformadoras  mas,  por  outro,  provocou  no  movimento  estudantil  o aguçamento dos  mecanismos  de  pressão  pela  reforma universitária.  O  movimento  pela reforma ganhou  as  ruas  impulsionado  pela  bandeira  “mais  verbas  e  mais  vagas”  e culminou com a ocupação, em 1968, das principais universidades pelos estudantes que instalaram comissões paritárias e cursos-piloto, ficando no controle das escolas durante o mês de julho e todo o segundo semestre. Nesse contexto resultou necessário efetuar o ajuste do sistema de ensino à nova situação decorrente do golpe militar.

O  ajuste  foi  feito  pela  Lei  n. 5.540/68,  aprovada  em  28  de  novembro  de 1968, que reformulou o ensino superior e pela Lei n. 5.692/71, de 11 de agosto de 1971, que alterou  os  ensinos  primário  e  médio  modificando  sua  denominação  para  ensino  de primeiro  e  de  segundo  grau.  Com  isso os  dispositivos  da  Lei  de  Diretrizes  e  Bases  da Educação    Nacional    (Lei    4.024/61)    correspondentes    às    bases    da    educação consubstanciadas  na estrutura do ensino primário, médio e superior foram revogados e substituídos pelas duas novas leis, permanecendo em vigor os primeiros títulos da LDB de  1961  (Dos  fins  da  educação,  do  direito  à  educação,  da  liberdade  do  ensino,  da administração  do  ensino  e  dos  sistemas  de  ensino)  que  enunciavam  as  diretrizes  da educação nacional.

O  projeto  de  reforma  universitária  (Lei  n.5.540/68)  procurou  responder  a  duas demandas contraditórias: de um lado, a demanda dos jovens estudantes ou postulantes a estudantes  universitários  e  dos  professores  que  reivindicavam  a  abolição  da  cátedra,  a autonomia  universitária  e  mais  verbas  e  mais  vagas  para  desenvolver  pesquisas  e ampliar o raio de ação da universidade; de outro lado, a demanda dos grupos ligados ao regime instalado com o golpe militar  que buscavam vincular mais fortemente o ensino superior  aos  mecanismos  de  mercado  e  ao  projeto  político  de  modernização  em consonância com os requerimentos do capitalismo internacional.

O  Grupo  de  Trabalho  da  Reforma  Universitária  buscou  atender  à  primeira demanda proclamando  a  indissociabilidade  entre  ensino  e pesquisa,  abolindo  a  cátedra que  foi  substituída pelo departamento,  elegendo  a  instituição universitária  como  forma preferencial de organização do ensino superior e consagrando a autonomia universitária cujas  características  e  atribuições  foram  definidas  e  especificadas.  De  outro  lado, procurou  atender  à  segunda  demanda  instituindo o  regime  de  créditos,  a  matrícula por disciplina, os cursos de curta duração, a organização fundacional e a racionalização da estrutura e funcionamento

.Aprovada a lei pelo Congresso, os dispositivos decorrentes da primeira demanda que não se coadunavam com os interesses do regime instaurado com o golpe de 64, em especial  aqueles  que  especificavam  as  atribuições  relativas  ao  exercício  da  autonomia universitária,  foram  vetados pelo presidente  da  República.  E, por  meio do  Decreto-Lei 464/69, ajustou-se melhor a implantação da reforma aos desígnios do regime.

Por  outro  lado,  na  prática,  a  expansão  do  ensino  superior  reivindicada  pelos jovens postulantes à universidade se deu pela abertura indiscriminada, via autorizações do  Conselho  Federal  de Educação, de  escolas  isoladas privadas,  contrariando  não  só o teor  das  demandas  estudantis,mas  o  próprio  texto  aprovado.  Com  efeito,  por  esse caminho inverteu-se o enunciado do artigo segundo da Lei 5.540 que estabelecia como regra a organização universitária admitindo, apenas como exceção, os estabelecimentos isolados; de fato, estes se converteram na regra da expansão do ensino superior.

A Constituição de 1988 incorporou várias das reivindicações relativas ao ensino superior.  Consagrou  a  autonomia  universitária,  estabeleceu  a  indissociabilidade  entre ensino   pesquisa   e   extensão,   garantiu   a   gratuidade   nos   estabelecimentos   oficiais, assegurou o ingresso por concurso público e  o regime  jurídico único. Nesse contexto a demanda  dos  dirigentes  de  instituições  de  ensino  superior  públicas  e  de  seu  corpo docente  encaminhou-se  na  direção  de  uma  dotação  orçamentária  que  viabilizasse  o exercício  pleno  da  autonomia  e,  da  parte dos  alunos  e  da  sociedade,  de  modo  geral,  o que se passou a reivindicar foi a expansão das vagas das universidades públicas.

Em  síntese,  podemos considerar que,  no  Brasil,  desde  a  criação  dos  cursos superiores por D. João VI a partir de 1808 e, especialmente, com a instituição do regime universitário por ocasião da reforma Francisco Campos em 1931, prevaleceu o modelo napoleônico, reiterado sucessivamente,inclusive na reforma instituída pela Lei n. 5.540 de 28 de novembro de 1968.

 Com efeito, podemos identificar três modelos clássicos de universidade, a saber, o modelo napoleônico, o modelo anglo-saxônico e o modelo prussiano. Este último teve sua  configuração  definida  com  a  fundação  da  Universidade  de  Berlim  por  Humboldt, em 1810. A origem desses modelos se assenta  nos elementos básicos constitutivos das universidades   contemporâneas:   o   Estado,   a   sociedade   civil   e   a   autonomia   da comunidade  interna  à  instituição.  Esses  elementos  nunca  aparecem  de  forma  isolada. Conforme   prevaleça   um   ou   outro,   tem-se   um   diferente   modelo   institucional.   A prevalência  do  Estado  dá  origem  ao  modelo  napoleônico;  prevalecendo  a  sociedade civil tem-se o  modelo  anglo-saxônico;  e  sobre  a autonomia  da  comunidade  acadêmica se funda o modelo prussiano (PIZZITOLA. In: DE VIVO E GENOVESI, 1986, p. 146).

No Brasil, apesar da tendência à privatização que se esboçou no final do império e  ao  longo  da  Primeira  República,  até  a  Constituição  de 1988  prevaleceu  o  modelo napoleônico caracterizado pela forte presença do Estado na organização e regulação do ensino superior, em especial no caso das universidades.

A partir da década de 1980 começou a se manifestar uma tendência a alterar esse modelo,  operando-se  um  deslocamento  no  padrão  de  ensino  superior  no  Brasil.  Esse deslocamento tem origem na distinção entre universidades de pesquisa e universidades de ensino introduzida em 1986 pelo GERES (Grupo Executivo para a Reformulação do Ensino Superior) criado pelo então Ministro da Educação, Marco Maciel. Essa distinção veio,  desde  aí,  frequentando  documentos  sobre  o  ensino  superior  mas,  na  gestão  de Paulo  Renato  Souza  à  frente  do  MEC,  foi  assumida  como  idéia-força  da política  a  ser implementada   relativamente   ao   ensino   superior.   Tal   orientação   acabou   sendo consagrada  no  Decreto  2.306,  de  19  de  agosto  de  1997  que  regulamentou  o  sistema federal  de  ensino  em  consonância  com  a  nova  LDB.  Esse  decreto  introduz,  na classificação   acadêmica   das   instituições   de   ensino   superior,   a   distinção   entre universidades ecentros  universitários.Em  verdade,  os  centros  universitários  são  um eufemismo das universidades de ensino, isto é, uma universidade de segunda classe, que não  necessita  desenvolver  pesquisa,  enquanto  alternativa  para  viabilizar  a  expansão,  e, por consequência, a "democratização" da universidade a baixo custo, em contraposição a um pequeno número de centros de excelência, isto é, as universidades de pesquisa que concentrariam  o  grosso  dos  investimentos  públicos,  acentuando  o  seu  caráter  elitista. Por  esse  caminho  o  modelo  napoleônico,  que  marcou  fortemente  a  organização  da universidade  no  Brasil,  vem  sendo  reajustado  pela  incorporação  de  elementos  do modelo anglo-saxônico em sua versão norte-americana.Nesse modelo a prevalência da sociedade  civil  enseja  um  maior  estreitamento  dos  laços  da  universidade  com  as demandas do mercado. 

É  essa  a  situação que  estamos  vivendo  hoje  quando  vicejam  os  mais  diferentes tipos  de  instituições  universitárias oferecendo  cursos  os mais  variados  em  estreita simbiose  com  os  mecanismos  de  mercado.  Aprofunda-se,  assim,  a  tendência  a  tratar  a educação  superior  como mercadoria  entregue  aos  cuidados  de  empresas  de  ensino  que recorrem a capitais internacionais com ações negociadas na Bolsa de Valores.

Nesse novo contexto  a  via  aberta  após a  entrada  em  vigor  da  Lei  5.540/68 que estimulou a instalação de instituições  isoladas privadas  de ensino superior mediante as autorizações do  Conselho  Federal de  Educação,  se  consolida com o  surgimento  de um conjunto cada vez mais amplo e diversificado de universidades privadas entre as quais se  incluem  as  chamadas  “universidades  corporativas”.  Estas  são  organizadas  pelas próprias  empresas acreditando  “fervorosamente  que  a  chave  do  seu sucesso  e  de  suas vantagens  competitivas  no  mercado  está  em  oferecer  aos  funcionários  maior  acesso  à atualização de seu conhecimento e de suas qualificações” (MEISTER, 1999, p. xxviii). 

Mas tais  instituições não se limitam aos próprios funcionários. Seu público-alvo é bem mais  amplo.  Elas  visam  treinar  seus  clientes  criando  “departamentos  de  educação  do consumidor”  por   meio   dos  quais todos,   revendedores,  distribuidores,   atacadistas, fornecedores e clientes são levados a conhecer a “filosofia da empresa” e colocá-la em prática  no  mercado.  E  conforme  a  previsão  de  César  Souza,  vice-presidente  da Odebrecht of America sediada em Washington, na Apresentação da edição brasileira do livro de  Jeanne  C.  Meister,  “Educação  corporativa”,  as  universidades  corporativas  que em  1999  eram  mil  e  oitocentas  nos  Estados  Unidos,  crescendo  no  mesmo  ritmo ultrapassariam,  em  2010,  as  cerca  de  quatro  mil  instituições acadêmicas de  ensino superior existentes naquele país. No Brasil as informações disponíveis dão conta de que essa  modalidade  de  educação  universitária  chegou  no  final  da  década  de  1990.  Se  em 1999 as universidades corporativas no Brasil não chegaram a dez, em 2004 seu número já se aproximava de quinhentos.

Conclusão:

Tentemos,   então,   identificar   as   mudanças   e continuidades   na   história   da expansão do ensino superior no Brasil.

A referida expansão, iniciada em 1808 com os cursos superiores criados por D. João VI, portanto, por iniciativa oficial, tiveram continuidade no Império com a criação das  faculdadesde  direito.  Uma  mudança  aconteceu na  Primeira  República  quando  a expansão ocorreu por meio da criação de instituições ditas livres, portanto, não oficiais sendo, via de regra, de iniciativa particular. Uma nova mudança se processou a partir da década de 1930 coma retomada do protagonismo público que se acentuou nas décadas de 1940, 1950 e início dos anos 60 por meio da federalização de instituições estaduais e privadas  e  com  a  criação  de  novas  universidades  federais,  entre  elas  a  Universidade Federal  de  Goiás instituída em  dezembro  de  1960. Em  todo  esse  período  que  se estendeuaté  a  Constituição  de  1988  detecta-se  uma  continuidade  representada  pela prevalência  do  modelo  napoleônico  de  universidade  na  organização  e  expansão  do ensino superior no Brasil. A partir da década de 1990 num processo que está em curso nos  dias  atuais  emerge  nova  mudança  caracterizada  pela  diversificação  das  formas  de organização  das  instituições  de  ensino  superior  alterando-se o  modelo de universidade na  direção  do  modelo  anglo-saxônico  naversão  norte-americana.  Em  consequência dessa   mudança   freou-se   o   processo   de   expansão   das   universidades   públicas, especialmente  asfederais,  estimulando-se  a  expansão  de  instituições  privadas  com  e sem  fins  lucrativos  e,  em  menor  medida,  das  instituições estaduais.Essa  foi  a  política adotada nos oito anos do governo FHC, o que se evidenciou na proposta formulada pelo MEC para o Plano Nacional de Educação apresentada em 1997.

Nessa    proposta admitiu-se    o    déficit do    ensino    superior    brasileiro comparativamente  aos  demais  países  concluindo-se  que,  para  se  chegar  ao  estágio  já atingido,  por  exemplo,  pela  Argentina, seria necessário  triplicar  a  porcentagem  da população  com  idade  entre  19  e  24  anos  que  tem  acesso  ao  Ensino  Superior.Isso porque,  enquanto  na  Argentina  36% da população  na  faixa  etária  de  19  a 24  anos  têm acesso ao ensino superior,no Brasil esse índice não chegavaa 12%.Para viabilizar esse objetivo previa-se a ampliação da oferta de ensino público em igual proporção, ou seja, um  aumento de 200% tanto das  vagas  privadas  como das  vagas  públicas  nos dez  anos seguintes. No  entanto,  não  se  previu  nenhum  investimento  público  adicional. Como, então, o governo pretendia atingir a mencionada meta de triplicar as vagas públicas? A resposta  que aparece  na  proposta  deixa  clara  a  mudança  de  modelo  em  direção  à  via anglo-saxônica na versão americana:

“A  expansão — diz a proposta — dependerá de uma racionalização no uso dos recursos  que  diminua  o  gasto  por  aluno  nos  estabelecimentos  públicos,  da  criação  de estabelecimentos  voltados  mais  para  o  ensino  que  para  a  pesquisa,  da  ampliação  do ensino  pós-médio  e do  estabelecimento  de parcerias  entre  União,  Estado  e  instituições comunitárias  para  ampliar,  substancialmente,  as  vagas  existentes”  (BRASIL,  1997, p.39).   Tal   orientação   se   fez   presente   na   meta 5, “oferecer   apoio   e   incentivo governamental para as instituições comunitárias”(p.40) ena meta 9,“diversificação do modelo IES, com vistas a ampliar a oferta do ensino”(p.40). É por esse caminho que se pretendeu disseminar  os  “centros  universitários”  enquanto  escolas  superiores  que  se dediquem apenas ao ensino sem pesquisa institucionalizada e os cursos pós-secundários, isto é, “formação de nível superior de menor duração”(p.38). Essa mesma orientação se expressa  também  na  meta  12, “estabelecer  um  amplo  sistema  de  educação  à  distância utilizando-o, inclusive, para ampliar o ensino semipresencial” (p.40).

Ao   longo   do   governo   Lula,   se   por  um   lado   se   retomou   certo   nível   de investimento nas universidades federais promovendo a expansão de vagas, a criação de novas  instituições  e a  abertura de  novos campi no  âmbito do  Programa  “REUNI”,  por outro lado deu-se continuidade ao estímulo à iniciativa privada que acelerou o processo de  expansão  de  vagas  e  de  instituições  recebendo  alento  adicional  com  o  Programa “Universidade para todos”, o PROUNI, um programa destinado à compra de vagas em instituições  superiores  privadas,  o  que  veio  a  calhar  diante  do  problema  de  vagas ociosas enfrentado por várias dessas instituições.

O  avanço  avassalador  da  privatização  da  educação  superior está expresso  nos índices quantitativos  das  instituições  e  do  alunado  como  se  pode  ver  numa  simples comparação dos dados iniciais e  finais da década abrangida pelo último quinquênio do século XX e pelo primeiro do século XXI.

Em  1996  nós  tínhamos  922  instituições  de  nível  superior,  sendo  211  públicas (23%)  e  711  privadas  (77%). Em  2005  o  número  total  das  instituições  se  elevou  para 2.165 com 231 públicas (10,7%) e 1.934 privadas (89,3%). Por sua vez, no que se refere ao  alunado  nós  tínhamos,  em  1996,um  total  de  1.868.529  alunos,  sendo  725.427(39,35%)em instituições públicas e 1.133.102 (60,65%) em instituições privadas. Já em 2005 a relação foi a seguinte: Total de alunos 4.453.156, sendo 1.192.189(26,77%) no âmbito público  e 3.260.967(73,23%)  no  âmbito  privado.  Observe-se,  por  fim,  que  em 2007, primeiro ano do segundo mandato do governo  Lula, o percentual dos alunos nas instituições  públicas  continuou  caindo  tendo  chegado  a25,42%  em  contraste com  o número  das  instituições  privadas  que  passou  para  74,58%  atingindo,  portanto,  dois terços do alunado.

Em  suma,  é  preciso  reverter  essa  tendência  fazendo  com  que  a  primazia  passe das instituições privadas para as públicas, da forma isolada para a forma universitária e dos  cursos  de  curta  duração  para  os  de  longa  duração. Essa  mudança  é  importante porque, como se sabe, as universidades públicas são responsáveis por cerca de 90% da ciência produzida no Brasil. Seus cursos possuem, pois,qualidade nitidamente superior aos  das  instituições  particulares. Assim,  a  expansão  das  vagas  nas  universidades públicas,   se   acompanhada   proporcionalmente   da   ampliação   das   instalações,   das condições  de  trabalho  e  do  numero  de  docentes,acarretará  a formação  de  um  número maior  de  profissionais  bem  qualificados.  E,  atendidos  esses requisitos,  haverá uma expansão   da   produção   científica,   o   que   é   de   fundamental   importância   para   o desenvolvimento do país.

Inversamente,  com  políticas  de  expansão  centradas  em  cursos  que  não  exigem uma  formação  mais  sólida, como  as  que  vêm  sendo  adotadas,  todoo  ensino  superior estará  sendo  rebaixado,  circunscrevendo-se  a  formação intelectual  propriamente  dita  a alguns  nichos  de  excelência, limitados  a  poucas  universidades  e  cursos  de  pós-graduação, relegando o  conjunto  a  padrões  menos  exigentes  de  qualidade.  Ao  fazer-se isso,o papel específico do ensino superior, que é o desenvolvimento dacultura superior e  a formação de intelectuais de alto nível, fica descaracterizado. E as possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico do país resultam ameaçadas. Só na medida em que o  Brasil mantiver um  sistema  de  ensino  superior  de  alto  padrão  de qualidade buscando expandi-lo  amplamente  é  que  ele  terá condições de  formar  quadros  e selecionar   os   cientistas   de   ponta,   que   vão,   de alguma   forma,   liderar   o seu desenvolvimento científico e tecnológico. Sem isso ele ficará em posição subalterna em relação aos demais países.

Procedendo  da  maneira  indicada,  estaremos  articulando  o  ensino  à  pesquisa. Mas,   como  prevê   a   Constituição   Federal,   as   universidades   se   caracterizam   pela indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Consequentemente, além do ensino superior   articulado   à   pesquisa,   cujo   objetivo   é   formar   profissionais   de   nível universitário, isto é, a imensa gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnólogos de  diferentes  matizes,  impõe-se  a  exigência  da  organização  da  cultura  superior  com  o objetivo de possibilitar a toda a população a difusão e discussão dos grandes problemas que  afetam  o  homem  contemporâneo.  Terminada  a  formação  comum  propiciada  pela educação básica, os jovens têm diante de si dois caminhos: a vinculação permanente ao processo produtivo por meio da ocupação profissional ou a especialização universitária.

Isto posto, em lugar de abandonar o desenvolvimento cultural dos trabalhadores a um processo difuso, trata-se de organizá-lo. É necessário, pois, que eles disponham de organizações culturais pelas quais possam participar,em igualdade de condições com os estudantes  universitários,  da  discussão,  em  nível  superior,  dos  problemas  que  afetam toda  a  sociedade  e, portanto, dizem  respeito  aos  interesses  de  cada  cidadão.  Com  isto, além    de    propiciar    o clima    estimulante    imprescindível    à    continuidade    do desenvolvimento  cultural  e  da  atividade  intelectual  dos  trabalhadores,  tal  mecanismo funciona  como  um  espaço  de  articulação  entre  os  trabalhadores  e  os  estudantes universitários, criando a atmosfera indispensável para vincular de forma indissociável o trabalho intelectual e o trabalho material.

Destaque-se que essa proposta coloca a função  de extensão da universidade em novo patamar diferenciando-a claramente da atual extensão universitária. Isso quer dizerque não se trata de estender à população trabalhadora, enquanto receptora passiva, algo próprio da atividade universitária. Trata-se, antes, de evitar que os trabalhadores caiam na passividade intelectual, evitando-se, ao mesmo tempo, que os universitários caiam no academicismo.   Com   efeito,   Gramsci   imaginava   que   tal   função   viesse   a   ser desempenhada exatamente pelas Academias que, para tanto, deveriam serreorganizadas e  totalmente  revitalizadas  deixando  de  ser  os  “cemitérios  de  cultura”  a  que  estão reduzidas atualmente.

REFERÊNCIAS

BRASIL,  MEC,  INEP, Proposta para o  Documento:  Roteiro  e  Metas para  Orientar o Debate sobre o Plano Nacional de Educação. Brasília, 1997, 61 p.

CUNHA,  Luiz  Antônio  Constant  Rodrigues. A  universidade  temporã,  2ª  ed.  revista  e ampliada. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1986.

DE  VIVO,  Francesco  e  GENOVESI,  Giovanni  [a  cura  di].Cento  anni  di  università. Napoli, Ed. Scientifiche Italiane, 1986.

MEISTER, Jeanne C. Educação corporativa.São Paulo: Makron Books, 1999.

domingo, 23 de junho de 2024

O ensino superior no Brasil na era das trevas

Universidades têm obras inacabadas há 16 anos enquanto Lula promete novos campi.

Instituições observaram orçamento minguar nos últimos dez anos; após pressão, governo anunciou pacote de investimento.

Isabela Palhares & Bruno Lucca, FSP, 23/06/2024

Campus Quitaúna da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em Osasco, está em obras há 16 anos - Rafaela Araújo/Folhapress

O campus de Unaí da UFVJM (Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri), em Minas Gerais, completou dez anos de existência na última quinta-feira (20). No período, a unidade formou quase mil profissionais em cinco cursos de graduação, mesmo sem todas as instalações prometidas na época de sua criação.

Dezenas de universidades federais de todas as regiões do país acumulam obras paradas ou atrasadas e projetos abandonados em razão da queda de orçamento que viveram nos últimos anos

Eleito tendo como uma das promessas a retomada de investimentos no ensino superior, o presidente Lula (PT) anunciou no início de junho um PAC de R$ 5,5 bilhões para parte dessas obras inacabadas, além de uma nova ampliação da rede federal. O anúncio ocorreu em meio à greve de professores e servidores, em uma tentativa de esvaziar o movimento.

Conforme mostrou a Folha, parte do recurso anunciado já estava previsto desde agosto do ano passado. Reitores afirmam que os valores liberados ainda são insuficientes para retomar os projetos e abarcar os investimentos necessários.

Como é que é? | Por que as universidades federais estão em crise? 

Apesar de concordarem com a necessidade de expansão das universidades federais, como quer o governo, os gestores afirmam ser ainda mais necessário aumentar o financiamento, já que não há recurso suficiente nem mesmo para o pleno funcionamento das instituições existentes.

"Nossa expansão ocorreu às vésperas do processo de subfinanciamento das universidades. Nossos dois novos campi nasceram e dois anos depois veio o teto de gastos do governo Temer e a queda de orçamento. O que nos sobrou? Um espólio de obras paradas", diz Heron Bonadiman, reitor da UFVJM. Considerando apenas as mais estratégicas, diz, são 19 obras que não saíram do papel.

Quando o campus de Unaí foi planejado, era prevista a construção de três prédios. Até este mês, apenas um deles foi concluído. A universidade também não conseguiu recursos para terminar a urbanização do campus. "Até agora a unidade está na terra, não temos dinheiro para fazer calçamento, arborizar o entorno", relata o reitor. Sem a infraestrutura adequada, a universidade nunca conseguiu ofertar todas as vagas previstas na unidade. O plano era que o campus abrisse 200 oportunidade ao ano. São oferecidas 100.

A situação de carência atinge das menores às maiores instituições do país. Na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), por exemplo, a construção do campus Quitaúna, em Osasco, é realizada há 16 anos e tem seu cronograma atrasado há cinco. Desde 2020, a instituição não recebeu repasses para obras, segundo sua reitora, Raiane Assumpção.

A UFU (Universidade Federal de Uberlândia) também faz obras desde 2012 para a construção do campus de Patos de Minas no Triângulo Mineiro. Por falta de recursos e problemas burocráticos, o atraso faz com que os cursos funcionem de forma provisória em uma faculdade particular alugada, com custo de quase R$ 1 milhão ao ano para a instituição.

Na UFG (Universidade Federal de Goiás), mais antiga universidade pública do Centro-Oeste, o orçamento de capital — utilizado para investimento em infraestrutura— foi de R$ 173 milhões, corrigidos pela inflação, em 2014, para R$ 1,2 milhão neste ano, uma redução de 99%. A instituição diz ter uma "enorme demanda de obras reprimidas."

Já o orçamento de custeio —que paga o dia a dia—, no mesmo período, passou de R$ 192 milhões para R$ 115 milhões, 40% a menos. Além de financiar a operação da UFG, o montante paga pelo aluguel de um prédio na cidade de Goiânia, usado para sanar a demanda por salas de aula.

No mesmo estado, a Ufcat (Universidade Federal do Catalão), criada em 2018, não tem orçamento para construir laboratórios, salas de aula, prédio para os cursos de licenciatura e um parque tecnológico, necessários para o pleno funcionamento dos cursos. Lá, ainda há outro problema. "A situação quanto à verba de custeio é caótica, tendo em vista que o recurso destinado para todo o ano de 2024 se encerrará no presente mês de junho", afirma a reitoria.

Caso semelhante é o da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afundada num déficit de R$ 380 milhões. A maior federal do país enfrenta um "processo inexorável de degradação de sua infraestrutura", expôs seu conselho, e pede socorro financeiro ao governo.

Crise nas universidades federais

Reitor da UFBA diz que universidade precisa sanar problemas antes de expansão anunciada por Lula 

Unifesp só tem dinheiro para funcionar até setembro, diz reitora  

UFRJ diz estar 'respirando por aparelhos' e pede socorro ao governo  

Governo Lula reembala medidas e usa recursos já previstos em pacote de R$ 5,5 bi para universidades  

Professores de universidades federais começam a abandonar greve, contrariando sindicato  

Sobre repasses, há casos ainda piores. A UnB (Universidade de Brasília) recebeu R$ 1 para custear suas obras neste ano. Em 2014, foram R$ 46 milhões. Isso deixa a instituição sem capacidade de concluir obras importantes, casos do novo prédio da faculdade de agronomia e medicina veterinária (previsto para 2023) e do novo prédio do instituto de física.

A reitora da universidade, Márcia Abrahão, diz que as 69 universidades federais têm demandas históricas por melhoria da infraestrutura, ampliação de prédios e equipamentos. Ela é também presidente da Andifes (associação dos reitores das federais). "Temos universidades antigas, de 100 anos, que precisam fazer a manutenção da sua infraestrutura física, precisam também ampliar a infraestrutura", diz Abrahão.

"As universidades mais jovens precisam ainda completar a sua infraestrutura física, muitas têm prédios alugados que precisam construir ou adquirir novos espaços e todas as universidades têm que ter um parque tecnológico que se renova continuamente. Tudo isso necessita de recurso de investimento", continua.

Algumas universidades relatam não ter recursos nem mesmo para obras necessárias para garantir a segurança dos estudantes e funcionários. São os casos de UFTPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) e Unifal (Universidade Federal de Alfenas), sem dinheiro para reparos urgentes de prevenção e combate a incêndio. Mesmo com todas as dificuldades, porém, a reitora defende ampliação de vagas no ensino superior. Ela lembra que o país segue longe de atingir as metas do PNE (Plano Nacional de Educação) com relação ao acesso de estudantes para cursos de graduação nas universidades públicas.

O plano, que vence neste ano, estabelece que o país deveria chegar ao fim de 2024 com ao menos 33% da população de 18 a 24 anos matriculada ou já tendo concluído um curso de graduação. Segundo o IBGE, em 2023 a proporção alcançou apenas 26,3%.

"Até agora a unidade está na terra, não temos dinheiro para fazer calçamento, arborizar o entorno" Heron Bonadiman, reitor da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri

O plano também estabelece a ampliação do acesso ao ensino superior priorizando a rede pública. O movimento que se viu na última década, no entanto, foi na direção contrária — apenas 7,4% das novas matrículas desde 2013 são dessa modalidade.

"Uma universidade é um projeto que não se conclui nunca, está em constante processo de ampliação. Por isso, não podemos esperar que todas se concluam para criar novas. Mas essa expansão precisa ser feita com planejamento e previsão de recursos suficientes para as já existentes e as novas", diz Gustavo Balduíno, consultor em ensino superior.

Reitores defendem que o governo federal crie uma lei que estabeleça um valor fixo a ser destinado as universidades anualmente. Hoje, os valores são definidos conforme a prioridade de cada gestão. O modelo desejado é o das universidades paulistas, que recebem um percentual fixo do que o governo estadual arrecada com ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), dando segurança e previsibilidade orçamentária às instituições.

Fernando Haddad, ministro da Fazenda, se comprometeu a estudar a proposta.

Em 2022: Rede Privada com 7.367.080 matrículas, Rede Pública com 2.076.577 e Rede Federal com 1.344.835. A partir de 2000 um visível crescimento da Rede Privada em contraste com a estagnação da Rede Pública. (NB deste Blog)

Enquanto isso, a Ufob (Universidade Federal do Oeste da Bahia) precisa de R$ 200 milhões para realizar todas as obras urgentes de infraestrutura. Neste ano, o repasse do governo foi de R$ 1, assim como na UnB. A universidade foi criada em 2013, por desmembramento da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e ainda não possui todas as suas instalações físicas planejadas, mesma situação relatada por outras instituições mais novas.

A reportagem procurou mais de 50 instituições de todo o país. Todas as que responderam relataram necessidades estruturais e problemas financeiros. Muitas, em razão da greve, não atenderam aos contatos. Em resposta aos problemas apresentados, o MEC (Ministério da Educação) disse que, no início de 2023, as universidades tiveram seu orçamento ampliado em quase 30%.

Já neste ano, continua a pasta, foram totalizados créditos suplementares para a recomposição orçamentária no valor de R$ 347 milhões, sendo R$ 242 milhões para as universidades e R$ 105 milhões para os institutos. "Recentemente, em 10 de junho de 2024, o Governo Federal anunciou nova ampliação do orçamento, na ordem de R$ 279,3 milhões para as universidades federais", segue, em nota.

sábado, 22 de junho de 2024

Morte desejada

'Minha mãe estava muito feliz por poder morrer como desejava'

Raquel era membro da Dignitas há mais de 15 anos 

Cynthia Araújo, FSP, 20/06/24

Raquel (nome fictício) tinha duas filhas, estava aposentada e morava em um bairro nobre de São Paulo. Ela tinha uma doença chamada ateromatosa, que é uma forma de arteroesclerose, doença vascular crônica em que o processo de envelhecimento das artérias e vasos leva à obstrução desses canais. Se isso acontecer no coração, levará a um infarto; se acontecer no cérebro, a um acidente vascular cerebral.

Raquel preferia morrer a perder a lucidez e se sentia segura por saber que, se não tivesse plena consciência, seus últimos desejos estavam registrados em um envelope guardado no seu armário. Inclusive o de não ser mantida viva a qualquer custo. "Não me sinto uma suicida, jamais pularia da janela. Apenas quero morrer dormindo".

Raquel não queria estender uma vida em sofrimento.

Já faz algum tempo que acredito que subestimamos a dor. A nossa dor, a dor alheia. Ninguém sabe quanto custa para outra pessoa se submeter a uma cirurgia, aos efeitos colaterais de medicamentos tóxicos, à sensação de cansaço, ao sono impeditivo. Defendo que ninguém deve ser obrigado a terapias desgastantes pela tentativa de viver mais um pouco.

Mas interromper a vida é outra coisa. Vejo algumas matérias tratarem a suspensão dessas medidas de combate a uma doença ou de tentativa de prolongamento da vida como equivalentes à eutanásia: não são. Obstinação terapêutica não é antônimo de eutanásia. Dá para continuar vivendo por um tempo – e, na medida do possível bem, em muitos casos – suspendendo-se tratamentos. E isso não é encerrar precocemente a vida.

Em 2010, a Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre a Dignitas – To live with dignity – to die with dignity, uma sociedade sem fins lucrativos que conscientiza pessoas sobre o fim da vida e que opera desde 1998 em acordo com as leis suíças, conforme sua própria descrição. A organização tem atividades diversas como a prevenção ao suicídio e o acompanhamento de pacientes no fim da vida, inclusive para uma morte medicamente assistida. É uma das únicas instituições no mundo que recebe estrangeiros para realizarem suicídio assistido.

Segundo os dados da reportagem, de 1998 a 2009, 1041 pessoas haviam morrido com ajuda da instituição, que tinha, entre seus membros, sete pessoas brasileiras.

Um desses membros era Raquel. Em entrevista para a Revista Época (n. 736), em 2012, Raquel contou que, aos 68 anos, tinha feito muita coisa: "aproveitei minha juventude, peguei muito sol, viajei pelo mundo, namorei, casei, tive duas filhas maravilhosas, me divorciei e trabalhei duro".

E ela pretendia recorrer ao suicídio assistido se chegasse a hora.

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Yun Tianming e sua eutanásia [1]

(...) Ele poderia ir em paz. Às dez, entrou sozinho no quarto de eutanásia, tão calmo como se estivesse indo para a consulta do dia. Ele era a quarta pessoa da cidade a realizar o procedimento, então não havia muito interesse da mídia. Só cinco pessoas estavam dentro do quarto: dois tabeliães, um diretor, uma enfermeira e um administrador do hospital. O dr. Zhang não estava lá.

A seu pedido, o quarto não havia sido decorado. À sua volta, só as paredes brancas simples de um quarto hospitalar como qualquer outro. Ele se sentiu à vontade. Explicou ao diretor que conhecia o procedimento e não precisava dele. O diretor assentiu e foi para trás da parede de vidro. Os tabeliães terminaram as pendências com Tianming e o deixaram a sós com a enfermeira. A enfermeira já não exibia a ansiedade e o medo que tivera que superar na primeira vez. Ao penetrar a veia dele com a agulha, seus movimentos foram firmes e delicados.

Tianming sentiu um vínculo estranho com a enfermeira: afinal, ela seria a última pessoa ao seu lado neste mundo. Lamentou não saber quem havia feito seu parto vinte e nove anos antes. Aquele obstetra e essa enfermeira faziam parte do pequeno grupo de pessoas que genuinamente haviam tentado ajudá-lo ao longo da vida. Ele queria agradecer a elas.

— Obrigado.

A enfermeira sorriu para ele e saiu com os passos silenciosos de um gato.

Você deseja dar fim à sua vida? Para sim, aperte 5. Para não, aperte 0.

(...) Ele apertou 5.

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Por volta de 10 anos depois, com a saúde bastante deteriorada, Raquel estava cansada. Cansada de viver com tantas limitações. Mas ela não preenchia os requisitos para realizar o suicídio assistido na Dignitas. E isso era motivo de profunda tristeza. Então, algo aconteceu: Raquel recebeu o diagnóstico de Alzheimer e descobriu que a doença era elegível para a morte medicamente assistida. Foi um alívio.

Um estado de espírito incrível

Reconheço que, se sou grande defensora da autonomia do paciente em relação a todas as decisões sobre o que fazer ou não em relação a sua saúde e suas doenças, não encaro com a mesma naturalidade a ideia de interromper a vida. Não falo das questões objetivas, como a de que a dignidade da morte medicamente assistida depende de pleno acesso a necessidades básicas e, em caso de doenças ameaçadoras da vida, a cuidados paliativos – com o máximo de garantia possível de que alguém não está disposto a encerrar a própria vida por não conhecer ou alcançar as medidas que aliviariam o sofrimento que lhe faz querer morrer.

O meu desconforto particular vem de outro lugar. E eu sei que o lugar de onde ele vem é errado. Não é porque o sofrimento de alguém não parece intolerável para mim que ele não é absolutamente intolerável para quem o suporta. Minha primeira conversa com a Mariana (nome fictício), uma das filhas de Raquel, aconteceu poucos dias depois da morte da mãe, na Suíça, em outubro de 2023.

Depois de descobrir que poderia morrer na Dignitas, Raquel ficou feliz como há muito as filhas não a viam. O sentimento de não aguentar mais o esforço de viver deu lugar à alegria de poder pôr fim a sua vida em seus próprios termos. Raquel havia pensado sobre o assunto por mais de vinte anos. E isso fez com que Mariana pensasse também. "É injusto ficar vivo contra a própria vontade estando certo de que se deseja morrer. Minha mãe entendia que sua vida tinha valido, que ela tinha feito muita coisa. Mas não queria continuar viva com tantas limitações".

Mariana diz que conversar sobre a morte sempre foi algo natural na sua família, ao menos desde que a avó, mãe de sua mãe, era viva. E, por isso, não foi uma surpresa quando a mãe falou sobre a Dignitas pela primeira vez.

Ela conta que, no ano passado, quando o processo junto à instituição para permitir o suicídio assistido de Raquel foi iniciado, mãe e filhas conseguiram aproveitar muito a presença de cada uma. E que isso só aconteceu sob o horizonte da consciência de que o fim de sua vida em conjunto estava se aproximando. Raquel tinha, nas palavras da filha, "um estado de espírito incrível".

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Você deseja dar fim à sua vida? Para sim, aperte 2. Para não, aperte 0.

Apertou 2.

(...)

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Morrer com dignidade

Qualquer membro da Dignitas com capacidade decisória e mobilidade física suficiente para administrar sozinho a dose letal de barbitúrico pode solicitar a realização de um suicídio assistido na instituição. Para que o pedido seja aceito, a pessoa solicitante precisa ter uma doença terminal, uma deficiência incapacitante intolerável ou dor incontrolável e insuportável, comprovados por relatórios médicos antigos e recentes. Uma taxa (atualmente no valor de 2.500 francos suíços, aproximadamente 15.300 reais) também é exigida.

O requerimento feito pelo membro é avaliado por médicos suíços que cooperam com a instituição, a partir da documentação encaminhada. Se eles concordarem em auxiliar, o membro é informado de que tem uma "luz verde" provisória, ou seja, o consentimento preliminar para morrer na Dignitas de forma assistida. Mas a decisão final só acontece depois que a pessoa é avaliada pelo médico.

A advogada Luciana Dadalto, referência brasileira em estudos sobre autonomia no fim da vida, esteve na instituição em 2017. Para ela, apesar da fama, a Dignitas representa muito mais do que um lugar onde pessoas podem morrer por suicídio assistido; trata-se de um projeto sério de conscientização e discussão sobre liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida e morte. Ela lembra que a instituição é bastante rigorosa na viabilização da morte assistida em suas dependências e que o processo para estrangeiros é bem burocrático. Além disso, um aspecto que chamou sua atenção na visita à Dignitas foi o questionamento sobre o limite da dignidade possível para a morte que ocorre em outro país, com outro idioma, outra cultura, longe de pessoas queridas, em uma cama desconhecida.

Verdade. No mundo ideal, teríamos, perto de casa, acesso a cuidados paliativos que aliviassem nosso sofrimento desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida e condições de a encerrar quando ele, ainda assim, fosse irremediavelmente intolerável. No mundo real, no entanto, estamos vivendo dias infernais e morrendo em absurdo sofrimento, sem nem um pouco de morfina na veia, no leito frio e isolado de uma UTI.

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Você deseja dar fim à sua vida? Para sim, aperte 4. Para não, aperte 0.

Apertou 4.

(...)

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A morte de Raquel

Com a luz verde definitiva, Raquel fez sua última viagem para a Suíça, acompanhada das duas filhas. Mariana diz que foi tudo bem melhor do que elas imaginavam, com muito tempo de qualidade juntas, apesar de todo o sofrimento envolvido. A mãe estava realmente feliz por conseguir fazer as coisas do jeito que queria. "Todas as pessoas na Dignitas foram incríveis, muito empáticas e cuidadosas. Eles nos acolheram, nós nos sentimos calmas, o ambiente é maravilhoso, tem um lugar com um jardim lindo. Você faz tudo no seu tempo e, se quiser mudar de ideia, é seu direito. Tudo acontece para que a pessoa se sinta o mais confortável possível".

Embora estivesse muito tranquila sobre a decisão da mãe, os meses seguintes foram muito difíceis para Mariana. Em nossa última conversa, ela contou que, mais de seis meses depois, é que está conseguindo sair de um momento complicado do seu luto e olhar para frente.

No círculo mais próximo, quase todo mundo exaltou a coragem e a beleza da decisão de Raquel, mas houve quem não a entendesse. Para Mariana, preceitos religiosos impedem que algumas pessoas aceitem a ideia de suicídio assistido. Mesmo assim, o amor pela pessoa que deseja realizá-lo e a realidade do declínio da sua saúde acabam levando à aceitação, mesmo com muita tristeza.

Morrer

Lembro-me que, na obra "In Love: A Memoir of Love and Loss", Amy Bloom fala do peso que a informação de que alguém está prestes a morrer por suicídio assistido tem nos outros. Como contar para alguém que você conhece há tanto tempo o que está indo fazer na Suíça? Está indo esquiar? Passear?

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Você deseja dar fim à sua vida? Para sim, aperte 1. Para não, aperte 0.

Apertou 1.

(...)

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Morrer.

O assunto tem ganhado os jornais com mais frequência e, vez ou outra, é retratado no cinema e na literatura. Eu já tinha assistido a outros filmes que abordam o suicídio assistido, quando cheguei ao famoso "Como eu era antes de você" (2016). Ali tinha algo diferente. Em Mar Adentro (2004), por exemplo, eu de alguma forma conseguia acessar a ideia da dor do protagonista, acamado e totalmente dependente há anos. Eu sentia que, no seu lugar, provavelmente teria desejado a mesma coisa: encerrar aquele sofrimento com o fim da minha vida. Mas, na história de Will e Louisa, alguém que dançava feliz com um grande amor ainda assim gostaria de morrer em seguida. E eu não conseguia alcançar a sua dor. É fácil aceitar uma decisão quando ela também teria sido a nossa. Mas não é isso que deve ser considerado quando pensamos no direito de morrer em nossos próprios termos.

Há algum tempo, li um suspense meia-boca em que, inesperadamente, discute-se o fato de que há mais de vinte anos, era bem mais difícil morrer de forma assistida do que hoje. Essa dificuldade me causou aquela surpresa que sentimos quando lembramos que, para certas coisas, o tempo passou. E, ainda bem, mesmo que só um pouco, a sociedade avançou. Apesar dos meus sentimentos ambíguos, tecnicamente, eu já sabia que era favorável à eutanásia e ao suicídio assistido.

Mas algo de muito diferente aconteceu comigo ouvindo Mariana sobre a história da sua mãe. Raquel viu na vida que antecedia a morte em seus próprios termos uma beleza que não via mais. E que talvez nunca mais visse não fosse o respeito à resolução que tomou. O respeito a sua autonomia.

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Você deseja dar fim à sua vida? Esta é a última consulta. Para sim, aperte 3. Para não, aperte 0.

Apertou 3.

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Sei que é difícil pensar nisso quando não estamos submetidos às dores que outras pessoas consideram intoleráveis. Sei que é difícil escapar à tentação de pensar em que bom teria sido se Raquel pudesse sentir por mais tempo a alegria que a tomou de volta apenas quando soube que poderia morrer em seus próprios termos. Mas, muitas vezes, e não somente quando falamos em suicídio assistido, é diante da compreensão de que o tempo está realmente acabando que a possibilidade de se entregar por completo ao presente e às possibilidades de afeto e comunicação acontece.

Demorei algum tempo para elaborar este texto, na esperança de transmitir o sentimento de Mariana com a maior fidelidade possível. Espero ter conseguido.

[1] Cixin Liu, O fim da morte, tradução: Leonaro Alves, 1ª edição, pp. 50 - 56,  Suma, 2019


quinta-feira, 20 de junho de 2024

A trilogia (ficção científica) de Cixin Liu

O problema dos três corpos (vol. 1), A floresta sombria (vol. 2) e O fim da morte (vol. 3)

Posfácio, pelo autor Cixin Liu (p. 313, vol. 1)

Até hoje tenho nítida na memória uma noite da minha infância: eu estava do lado de um lago perto de um povoado no distrito de Luoshan, na província de Henan, onde várias gerações de meus antepassados haviam vivido. Estava cercado por muita gente, adultos e crianças. Juntos, estávamos olhando para o céu noturno sem nuvens, onde uma estrelinha minúscula deslizava sem pressa pelo firmamento escuro. Era o primeiro satélite artificial lançado pela China: Dongfanghong I (“O Oriente É Vermelho I”).
Era 25 de abril de 1970, e eu tinha sete anos.

Fazia treze anos desde que Sputnik havia sido lançado, e nove desde que o primeiro cosmonauta saíra da Terra. Fazia só uma semana desde que a Apollo 13 voltara de uma perigosa viagem à lua.
Mas eu não sabia de nada disso. Enquanto olhava aquela estrelinha voadora minúscula, meu coração se encheu de uma curiosidade e um anseio indescritíveis. E, tão nítida quanto essas emoções, minha memória registrou também a sensação de fome. Naquela época, a região em que ficava o meu povoado era extremamente pobre. A fome era uma companheira constante de toda criança. Eu até podia me considerar sortudo, porque estava com os pés calçados. Quase todos os meus amigos estavam descalços, e alguns dos pezinhos ainda não tinham terminado de cicatrizar as geladuras do inverno anterior. 

Atrás de mim, a luz fraca de lamparinas de querosene vazava pelas frestas nas paredes dos casebres decadentes de palha — o povoado só foi receber eletricidade nos anos 1980.
Os adultos à minha volta disseram que o satélite era diferente de um avião porque voava fora da Terra. Na época, a fumaça e a fuligem das indústrias ainda não haviam poluído o ar, o céu estrelado estava muito limpo e dava para ver com clareza a Via Láctea.

Na minha cabeça, as estrelas que preenchiam o céu não estavam muito mais distantes do que o satélite voador minúsculo, então eu achava que ele voava entre elas. Até fiquei com medo de que ele batesse em uma quando passasse pelos aglomerados estelares densos.
Meus pais não estavam comigo, porque trabalhavam em uma mina de carvão a mais de mil quilômetros de distância, na província de Shanxi. Alguns anos antes, quando eu era ainda menor, a mina tinha sido uma zona de combate das guerras civis entre as facções da Revolução Cultural. Eu me lembrava do barulho de tiros no meio da noite, de caminhões passando cheios de homens com armas e braçadeiras vermelhas… Só que eu era muito pequeno naquela época e não sei se essas imagens são lembranças de verdade ou miragens criadas mais tarde. Mas uma certeza eu tenho: como a mina era muito insegura e meus pais tinham sido afetados pela Revolução Cultural, eles foram obrigados a me mandar para o vilarejo antigo da minha família em Henan. Quando eu vi Dongfanghong I, já estava morando lá havia mais de três anos.

Demorou mais alguns anos até eu entender a distância entre aquele satélite e as estrelas. Nessa época, eu estava lendo uma coleção famosa de livros básicos de ciência chamada Shi Wan Ge Weishenne [Cem mil por quês]. No volume sobre astronomia, aprendi o conceito de ano-luz. Antes, eu já sabia que a luz levava só um segundo para percorrer uma distância equivalente a sete vezes e meia a circunferência da Terra, mas nunca havia considerado a distância assustadora que algo poderia atravessar nessa velocidade durante um ano inteiro.
Imaginei um raio de luz passando pelo silêncio gelado do espaço a trezentos mil quilômetros por segundo, e foi difícil visualizar a vastidão e a profundidade arrepiantes. Senti um terror e um fascínio imensos e, ao mesmo tempo, fiquei com uma euforia quase narcótica.

A partir desse momento, percebi que eu tinha um talento especial: escalas e existências que eram muito superiores aos limites da percepção sensorial humana — tanto no nível macro quanto no micro — e que, para outras pessoas, pareciam só números abstratos, para mim ganhavam uma forma concreta. Eu conseguia encostar nelas, senti-las, assim como outros conseguiam encostar em árvores e pedras.

Até hoje, quando referências aos quinze bilhões de raio de anos-luz do universo e a “cordas” que são infinitamente menores que quarks já não significam muita coisa para a maioria das pessoas, os conceitos de ano-luz ou nanômetro ainda geram imagens vívidas e grandiosas na minha mente e despertam em mim um sentimento indescritível, religioso, de admiração e choque. Não sei se tenho sorte ou azar em comparação com a maior parte da população que não tem essa sensação. Mas, com certeza, essas emoções me transformaram, primeiro em um fã de ficção científica e, depois, em um escritor de ficção científica.

Naquele mesmo ano em que fiquei fascinado pela primeira vez pelo conceito de ano-luz, aconteceu uma enchente (conhecida como a Grande Enchente de Agosto de 1975) no meu vilarejo. Em um dia, choveu um volume recorde na região de Zhumadian, em Henan. Cinquenta e oito barragens de tamanhos variados cederam, uma atrás da outra, e 240 mil pessoas morreram no dilúvio subsequente. Pouco depois que as águas recuaram, voltei ao vilarejo e vi um cenário cheio de refugiados. Achei que estava olhando para o fim do mundo.

E assim, satélite, fome, estrelas, lamparinas de querosene, a Via Láctea, as guerras civis das facções da Revolução Cultural, um ano-luz, a enchente… todos esses elementos, aparentemente sem relação entre si, misturaram-se e formaram a primeira parte da minha vida, e também moldaram a ficção científica que escrevo hoje.

Na condição de escritor de ficção científica que começou como fã, eu não uso minha ficção como um modo mascarado de criticar a realidade do presente. Acho que o maior atrativo da ficção científica é a criação de diversos mundos imaginários fora da realidade. Sempre tive a impressão de que as melhores histórias da humanidade, as mais bonitas, não eram cantadas por bardos itinerantes, nem escritas por dramaturgos e romancistas, mas relatadas pela ciência. As histórias da ciência são muito mais magníficas, grandiosas, complexas, profundas, empolgantes, estranhas, aterrorizantes, misteriosas e até sentimentais, em comparação com as histórias contadas pela literatura tradicional. Só que essas histórias maravilhosas estão presas em equações frias que poucas pessoas sabem ler.

Os mitos de criação dos vários povos e religiões do mundo são ínfimos diante da glória do Big Bang. Os três bilhões de anos de história da evolução da vida desde moléculas capazes de se reproduzir até a civilização contêm reviravoltas e romances que vão muito além de qualquer mito ou épico. Existe também a visão poética do espaço e do tempo na relatividade, o mundo subatômico esquisito da mecânica quântica… Todas essas histórias maravilhosas da ciência exercem uma atração irresistível. Por meio da ficção científica, eu só pretendo usar o poder da imaginação para criar meus próprios mundos e apresentar a poesia da natureza nesses mundos, contar as lendas românticas que se desenvolveram entre o Homem e o Universo.

Mas não posso fugir e abandonar a realidade, do mesmo modo como não posso abandonar a minha sombra. A realidade impõe sobre cada um de nós sua marca indelével. Cada era prende grilhões invisíveis nas pessoas que as viveram, e eu só posso dançar com minhas correntes. Na ficção científica, muitas vezes a humanidade é descrita como um coletivo. Neste livro, um indivíduo chamado “humanidade” confronta um desastre, e tudo o que ele demonstra diante da existência e da aniquilação definitivamente tem origem na realidade que eu vivi.

O incrível da ciência é que, diante de certas configurações hipotéticas de mundo, ela é capaz de transformar aquilo que em nossa realidade é mal e sombrio em algo virtuoso e iluminado, e vice-versa. Este livro e as duas continuações tentam fazer exatamente isso, mas, por mais que a realidade seja distorcida pela imaginação, ela nunca desaparece.
Sempre achei que uma inteligência extraterrestre será a maior fonte de incerteza do futuro da humanidade. Outras grandes transformações, como mudanças climáticas e desastres ecológicos, têm certo processo de progressão e períodos inerentes de ajuste, mas o contato da humanidade com alienígenas pode acontecer a qualquer momento.

Talvez, daqui a dez mil anos, o céu estrelado diante da humanidade continue vazio e silencioso. Porém, talvez amanhã descubramos uma nave espacial alienígena do tamanho da lua orbitando o planeta. O aparecimento de uma inteligência extraterrestre vai obrigar a humanidade a confrontar o Outro. Antes disso, a humanidade como um todo nunca terá conhecido uma contraparte externa. O surgimento desse Outro, ou o mero conhecimento de sua existência, vai produzir impactos imprevisíveis em nossa civilização.

A ingenuidade e a bondade demonstradas pela humanidade diante do universo revelam uma contradição curiosa: na Terra, os seres humanos podem entrar em outro continente e, sem pensar duas vezes, destruir pela guerra e pela doença a civilização irmã que encontrarem. Mas, quando olham para as estrelas, eles ficam sentimentais e acreditam que, se inteligências extraterrestres existirem, devem ser civilizações dotadas de uma moral nobre, universal, como se valorizar e amar formas de vida diferentes fizessem parte de um código de conduta universal evidente.

Acho que devia ser exatamente o contrário: que a bondade que exibimos para as estrelas seja voltada para os membros da raça humana na Terra, e que sejam estabelecidas a confiança e a compreensão entre os diversos povos e civilizações que fazem parte da humanidade. Mas, para o universo além do sistema solar, deveríamos manter vigilância constante e estar preparados para atribuir as piores intenções a qualquer Outro que possa existir no espaço. Para uma civilização frágil como a nossa, sem sombra de dúvida esse é o meio mais responsável.

Como fã de ficção científica, minha vida foi moldada pelo gênero. Saber que diversos leitores agora podem apreciar meu livro me deixa ao mesmo tempo feliz e animado. A ficção científica é uma literatura que pertence a toda a humanidade. Ela descreve circunstâncias que interessam a todos e, portanto, deveria ser o gênero literário mais acessível para leitores de diversas nações.

Muitas vezes, a ficção científica descreve um dia em que a humanidade formará um todo harmonioso, e acredito que não será preciso esperar a vinda de extraterrestres para que esse dia possa chegar.

Cixin Liu (劉慈欣), 28 de dezembro de 2012

Cixin Liu, O problema dos três corpos, tradução: Leonardo Alves, 1ª edição, Suma, 2016 (316 páginas)

Sumário

Parte I - Primavera silenciosa
1. Os anos de loucura - China 1967 (p. 09)
2. Primavera silenciosa Dois ano depois, cordilheira Khingan (20)
3. Costa Vermelha I (35)

Parte II - Três corpos

4. Fronteiras da ciência - Mais de quarenta anos depois (45)
5. Uma partida de sinuca (58)
6. O franco - atirador e o criador de aves (63)
7. Três corpos: o rei Wen de Zhou e a longa noite (80)
8. Ye Wenjie (94)
9. O universo pisca (100)
10. Da Shi (108)
11. Três corpos: Mo Zi e chamas flamejantes (116)
12. Costa Vermelha II (126)
13. Costa Vermelha III (135)
14. Costa Vermelha IV (142)
15. Três corpos: Copérnio, Futebol universal e dia trissolar (147)
16. O problema dos três corpos (154)
17. Três corpos: Newton, Von Neumann, o primeiro imperador e Sizígia trissolar (169)
18. Encontro (184)
19. Três corpos: Einstein, o monumento do pêndulo e o grande rasgo (189)
20. Três corpos: expedição (198)

Parte III - O ocaso da humanidade

21. Rebeldes da Terra (203)
22. Costa Vermelha V (209)
23. Costa Vermelha VI (219)
24. Rebelião (225)
25. A morte de Lei Zhicheng e Wang Weining (230)
26. Ninguém se arrepende (234)
27. Evans (246)
28. Segunda base Costa Vermelha (254)
29. Movimento Terra - Trissolaris (256)
30. Dois prótons (260)
31. Operação Guzheng (266)
32. Trissolaris: o ouvinte (279)
33. Trissolaris: sófon (287)
34. Insetos (308)
35. Ruinas (311)
Posfácio (313)
 

Trechos do livro - vol. 1

Graças a esses dois sucessos, as opiniões de Pan Han a respeito de questões sociais tinham cada vez mais peso. Ele acreditava que o progresso tecnológico era uma doença da sociedade. A explosão do desenvolvimento tecnológico era análoga ao crescimento de células cancerígenas, e os resultados seriam os mesmos: o esgotamento de todas as fontes de nutrição, a destruição dos órgãos e, por fim, a morte do organismo. Ele defendia o fim de tecnologias nocivas, como combustíveis fósseis e energia nuclear, em favor da manutenção de tecnologias menos agressivas, como energia solar e energia hidrelétrica de pequena escala. Pan acreditava na descentralização gradual das metrópoles modernas mediante a distribuição mais eficiente das populações em cidades e vilarejos menores. Com base nas tecnologias mais avançadas, construiria uma nova sociedade agrícola. (vol. 1, p. 72)
...
“Certa vez o astrofísico soviético Nikolai Kardashev propôs uma possível divisão das civilizações em três tipos, com base na quantidade de energia que são capazes de dominar para… digamos que para propósitos de comunicação.
Uma civilização de Tipo 1 é capaz de manipular uma quantidade de energia equivalente à energia total produzida pela Terra. Com base nas estimativas dele, a produção energética da Terra é  de cerca de 1015 a 1016 watts. Uma civilização de Tipo 2 pode dominar uma quantidade de energia equivalente à produção de uma estrela média: 1026 watts. Já a energia de comunicação de uma civilização de Tipo 3 pode chegar a 1036 watts, aproximadamente o mesmo que a produção energética de uma galáxia. A atual civilização da Terra corresponde a mais ou menos um Tipo 0,7, nem sequer um Tipo 1 completo. E as transmissões da Costa Vermelha consumiam apenas cerca de um décimo de milionésimo da quantidade de energia que a Terra era capaz de gerar. Nossa ligação era como um zumbido
de mosquito no céu. Ninguém ia escutar.”
— Mas, se as civilizações de Tipo 2 e 3 de Kardashev existem mesmo, nós
deveríamos ser capazes de escutar as mensagens delas.
— Nunca ouvimos nada durante os vinte anos de operação da Costa Vermelha.
— Entendo. Considerando a Costa Vermelha e o Seti, será que no fim das
contas todos os nossos esforços só provaram que, no universo inteiro, apenas a
Terra possui vida inteligente?
Ye suspirou de leve.
— Teoricamente, talvez nunca haja resposta definitiva para essa pergunta.
Agora, a minha impressão, e a de todo mundo que passou pela Costa Vermelha, é de que é isso mesmo.
(pp. 143 e 144, vol. 1)
...
“De vez em quando, eu (Ye Wenjie) olhava para as estrelas depois de um turno à noite e
pensava que elas pareciam um deserto luminoso e que eu não passava de uma pobre criança abandonada nessa imensidão… Eu achava que a vida era realmente um acidente entre tantos acidentes no universo. O universo era um palácio vazio, e a humanidade, a única formiga no palácio inteiro. Esse tipo de pensamento me levou a passar a segunda metade da minha vida em dúvida: às vezes eu achava que a vida era preciosa e tudo era muito importante. Já em outros momentos eu achava que os seres humanos eram insignificantes e que nada valia a pena. Enfim, passei muitos dias acompanhada dessa sensação estranha e, quando vi, já estava velha…”
(pp. 145 e 146, vol. 1)
...
A essa altura, eu (Wei Cheng) estava farto de tudo. Fiz as malas e fui para um templo
budista perdido nas montanhas em algum lugar no Sul da China.
Ah, não fui para virar monge. Preguiça demais para isso. Eu só queria ir morar por algum tempo em um lugar realmente pacífico. O abade lá era um velho amigo do meu pai — um grande intelectual, que se tornou monge depois de idoso. Pelo que meu pai me contou, na situação dele, era a única opção. O abade me convidou para ficar.
— Eu quero achar um jeito pacífico de deixar correr o resto da minha vida — respondi.
— Este lugar não é pacífico de verdade. Recebemos muitos turistas e também muitos peregrinos. Quem é realmente calmo consegue encontrar a paz até em uma cidade efervescente. Para alcançar esse estado, você precisa se esvaziar.
— Já sou bastante vazio. Fama e fortuna não significam nada para mim. Muitos monges neste templo são mais sofisticados do que eu. O abade balançou a cabeça e respondeu:
— Não, o vazio não é o nada. O vazio é um tipo de existência. Você precisa usar esse vazio existencial para preencher a si mesmo.
(p. 157, vol 1)
...
* O movimento de três corpos, influenciado mutuamente pelas atrações gravitacionais de cada um, é um problema tradicional da mecânica clássica que surgiu como um questionamento natural no estudo da mecânica celeste. Muitos pensadores trabalharam nele desde o século XVI. Euler, Lagrange e pesquisadores mais recentes (com o auxílio de computadores) encontraram soluções para casos específicos do problema dos três corpos. Mais tarde, Karl F. Sundman provou a existência de uma solução geral para o problema dos
três corpos na forma de uma série convergente infinita, mas essa série converge a um ritmo tão lento que é praticamente inútil. (N. A.)
** Poincaré demonstrou que o problema dos três corpos apresentava uma dependência sensível em condições iniciais, algo que hoje consideramos que seja característica de um comportamento caótico.
(p. 158, vol. 1)
...
Como astrofísica, Ye era extremamente contra armas nucleares. Sabia que esse poder devia pertencer apenas às estrelas. E sabia também que o universo tinha forças ainda mais terríveis: buracos negros, antimatéria e mais. Em comparação com essas forças, uma bomba termonuclear era só uma vela minúscula. Se os seres humanos dominassem qualquer uma daquelas forças, o mundo talvez fosse vaporizado em um instante. Diante da loucura, a
racionalidade era impotente.
(p. 220, vol. 1)
...
Porém, nesse dia, Ye viu algo estranho com a forma de onda na tela. Até especialistas tinham dificuldade para identificar a olho nu se uma onda possuía alguma informação. Mas Ye estava tão acostumada com o ruído do universo que conseguiu perceber algo a mais na onda que se deslocava diante de seus olhos. O sobe e desce da curva fina parecia ter uma alma. Ye tinha certeza de que aquele sinal de rádio fora modulado por alguma inteligência. (p.221, vol. 1)
...

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Cixin Liu, A floresta sombria, tradução: Leonardo Alves, 1ª edição, Suma, 2017 (470 páginas)

Sumário

Prólogo ( p. 07)


Parte I - Barreiras
Ano 3, Era da Crise (21)
Parte II - O feitiço
Ano 8, Era da crise (173)
Ano 12, Era da crise (218)
Parte III - A floresta sombria
Ano 205, Era da crise (283)

Trechos do livro - vol. 2

A personagem viva
- Ela está viva, não é?
Ele (Luo Ji) assentiu com a cabeça e se sentou.
- Rong (Bai Rong), eu achava que a personagem de um livro era controlada pelo criador, que ela seria o que o autor desejasse e que faria tudo o que ele mandasse, que nem Deus faz com a gente.
- Ledo engano... - respondeu ela, levantando-se e começando a andar pelo quarto. - Agora você percebe que estava errado. Essa é a diferença entre um escritor e um artista. Uma criação literária atinge o nível mais alto quando as personagens ganham vida na mente do autor, que não tem nenhum controle e talvez nem consiga prever o gesto seguinte delas. O máximo que podemos fazer é observar, fascinados, e registrar os mínimos detalhes da vida das personagens, como um voyeur. É assim que nasce um clássico.
- Então, no fim das contas, a literatura é um ato de perversão.
- Era assim para Shakespeare, Balzac e Tolstói, pelo menos. As imagens clássicas que esses gênios criaram nasceram do ventre mental. Mas as pessoas que praticam literatura hoje em dia perderam essa criatividade. A mente delas só é capaz de gerar fragmentos arruinados e monstrengos, cujo cujos breves sopros de vida não passam de espasmos incompreensíveis destituidos de razão. Depois elas jogam todos esses fragmentos dentro de um saco e fecham com um rótulo de "pós-modernidade" ou "desconstrucionismo" ou "simbolismo" ou "irracionalidade".
(pp. 77 e 78, vol. 2)
...
Eu me tornei a morte
- Eu me tornei a morte, o destruidor dos mundos! - exclamou Allen
- O que?! - Rey Diaz virou a cabeça de repente, como alguém tivesse disparado em suas costas.
- Oppenheimer proferiu essas palavras quando viu a primeira explosão nuclear. Acho que é uma frase do Bhagavad Gita.
O disco no leste se expandiu rapidamente, lançando uma teia dourada de luz sobre a Terra. O mesmo Sol estava presente naquela manhã em que Ye Wenjie sintonizara a antena da Costa Vermelha, e antes, muito antes, o mesmo Sol havia iluminado a poeira baixando após a primeira explosão nuclear. Os australopiteco de um milhão de anos atrás e os dinossauros de cem milhões de anos atrás haviam voltado seus olhos ignorantes para o mesmíssimo Sol, e antes, muito antes, a luz difusa que havia penetrado a superfície do oceano primitivo e fora sentida pela primeira célula viva fora emitida pelo mesmo Sol.
- E então - continuou Allen - um homem chamado Bainbridge rebateu a declaração de Oppenheimer com outra, que não tinha absolutamente nada de poética: "Agora nós somos todos uns filhos da puta".
(p. 135, vol. 2)
...
A forma do mundo surgiu
Escuridão. Antes da escuridão não havia nada além do nada, e o nada não tinha cor. Não havia nada no nada. A escuridão indicava que, pelo menos, havia espaço. Logo apareceram agitações na escuridão do espaço, penetrando tudo como uma brisa suave. Era a sensação do passar do tempo, pois não havia tempo no nada, mas agora o tempo tomava forma em um descongelamento glacial. Só muito mais tarde houve luz, no início apenas uma mancha luminosa amorfa e, após outra longa espera, a forma do mundo surgiu gradualmente.
(p. 283, vol. 2)
...
Na verdade, a principal razão para a Terra Internacional e a Frota Internacional decidirem enviar um ser humano até a sonda não era para uma inspeção. Quando o mundo viu a sonda pela primeira vez, todos ficaram fascinados pelo exterior magnífico. A gota de mercúrio era lindíssima, uma forma extremamente simples, mas produzida com extraordinária maestria. Cada ponto de sua superfície parecia perfeitamente posicionado, e ela tinha um elegante dinamismo, como se a cada instante gotejasse sem parar na noite cósmica, inspirando a sensação de que artistas humanos, mesmo se tentassem criar a forma mais lisa possível, jamais conseguiriam chegar perto daquilo. A sonda transcendia toda e
qualquer possibilidade.
Nem na República de Platão havia uma forma tão perfeita: mais reta que a linha mais reta, mais circular que um círculo perfeito, um golfinho espelhado que saltava de um mar de sonhos, a cristalização de todo o amor do universo… Como a beleza sempre foi associada ao bem, se de fato havia alguma separação entre o bem e o mal no universo,
aquele objeto só poderia pertencer ao lado do bem.
Assim, logo surgiu uma hipótese: o objeto talvez nem fosse uma sonda. Observações posteriores confirmaram essa hipótese, de certa forma. A princípio, as pessoas perceberam a superfície externa, o extraordinário acabamento liso que fazia com que a sonda fosse
completamente reflexiva. A frota realizou um experimento no alvo com uma grande quantidade de equipamentos de monitoração: a superfície toda foi irradiada com ondas eletromagnéticas de alta frequência e comprimentos variados, e a refletância foi medida. Para espanto geral, descobriu-se que em todas as frequências, inclusive a luz visível, a reflexão era de praticamente cem por cento. Não se detectou nenhuma absorção, o
que indicava que a sonda não era capaz de detectar nenhuma onda de alta frequência — ou, em termos leigos, que ela era cega. Um objeto cego devia trazer algum significado especial. A suposição mais razoável era de que se tratava de um gesto de boa-fé de Trissolaris para com a humanidade, expresso pelo design não funcional e pela beleza da forma. Uma demonstração genuína do desejo de paz.
Desse modo, a sonda recebeu um nome novo em homenagem à forma: “gota”. Tanto na Terra quanto em Trissolaris, a água era a origem da vida e um símbolo de paz.
(vol. 2 p. 370)
...
— A frota! Evacuar a frota!
Mas era tarde demais. Uma potente interferência já havia eliminado os canais de comunicação. A imagem transmitida da Mantis desapareceu, e a frota não conseguiu ouvir o último apelo do capitão de fragata.
Uma aura azul surgiu na ponta da gota, a princípio pequena, mas muito intensa, lançando um manto azul ao redor. Então se expandiu drasticamente, indo do azul
para o amarelo e, por fim, para o vermelho. Quase parecia que a aura não estava sendo produzida pela gota, e sim abrindo caminho de dentro dela. A aura foi perdendo luminosidade conforme se expandia e, ao atingir um diâmetro duas vezes maior do que o lado mais largo da gota, sumiu. No mesmo instante, uma segunda aura pequena surgiu na ponta. Como a primeira, ela se expandiu, mudou de cor, perdeu luminosidade e logo
desapareceu. As auras continuaram surgindo da ponta para a cauda a cada dois ou três segundos e, movida por esse impulso, a gota passou a avançar e acelerou rapidamente. No entanto, os quatro integrantes da expedição não chegaram a ver a segunda aura, porque a primeira foi acompanhada de uma temperatura ultra-alta semelhante à do núcleo do Sol, vaporizando-os instantaneamente.
O casco da Mantis brilhou, vermelho, como o lado de fora de uma lanterna chinesa cuja vela tivesse acabado de ser acesa. A estrutura de metal derreteu feito cera, mas, assim que começou a derreter, a nave explodiu dispersando-se pelo espaço como um líquido
incandescente, sem quase nenhum vestígio sólido.
(vol. 2 p. 384)
...
A destruição de toda a força espacial da humanidade foi realizada por apenas uma sonda trissolariana. Dentro de três anos, outras nove chegariam ao sistema solar. A soma das dez juntas não chegava nem a um décimo de milésimo do tamanho de uma única belonave, e
Trissolaris ainda tinha uma frota de mil a caminho do sistema solar.
“E se te destruo, o que podes fazer?”
(vol. 2 p. 398)

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Cixin Liu, O fim da morte, tradução: Leonaro Alves, 1ª edição, Suma, 2019 (583 páginas)


TABELA DE ERAS

Era Comum: Dias atuais - 201X E.C.
Era da Crise: 201X - 2208
Era da Dissuasão: 2208 - 2270
Era Pós-Dissuasão: 2270 - 2272
Era da Transmissão: 2272 - 2332
Era da Casamata: 2333 - 2400
Era da Galáxia: 2273 - indeterminado
Era do Domínio Negro para o Sistema DX3906: 2687 - 18.906.416
Cronologia para o Universo 647: 18.906.416 - ...

Sumário

Trecho extraído do prefácio de um passado além do tempo ( p. 09)

Parte I

Maio 1453 E.C. A morte do Mago (13)
Era da crise, Ano 1 A escolha da vida (26)
Trecho extraído de um passado além do tempo Infantilismo no início da crise (41)
Era da crise, Ano 4 Yun Tianming (45)
Era da crise, Ano 1 a 4 Cheng Xin (57)
Trecho extraído de um passado além do tempo Hibernação: pela primeira vez o ser humano atravessa o tempo (70)
Era da crise, Ano 1 a 4 Cheng Xin (72)
Trecho extraído de um passado além do tempo Programa Escadaria (78)
Era da crise, Ano 1 a 4 Cheng Xin (80)
Era da crise, Ano 5 a 7 Programa Escadaria (88)

Parte II

Era da dissuasão, Ano 12 Era de bronze (101)
Trecho extraído de um passado além do tempo Nictoilofobia (103)
Era da dissuasão, Ano 12 Era de bronze (105)
Era da dissuasão, Ano 13 Julgamento (109)
Era da dissuasão, Ano 61 O Portador da Espada (117)
Trecho extraído de um passado além do tempo O fantasma das barreiras: O Portador da Espada (125)
Era da dissuasão, Ano 61 O Portador da Espada (130)
Trecho extraído de um passado além do tempo Reflexo cultural (132)
Era da dissuasão, Ano 61 O Portador da Espada (134)
Era da dissuasão, Ano 62 Gravidade, nos arredores da nuvem de Oort .143
Trecho extraído de um passado além do tempo Mais provas indiretas a favor da Floresta Sombria: regiões opacas  antissófons (145)
Era da dissuasão, Ano 62 Gravidade, nos arredores da nuvem de Oort (146)
Era da dissuasão, Ano 62 - 28 de novembro, 16 h a 16 h17: Centro de dissuasão (158)
Trecho extraído de um passado além do tempo A decisão da Portadora da Espada: dez minutos entre a existência e a aniquilação (160)
Era da dissuasão, Ano 62 - 28 de novembro, 16 h a 16 h17: Centro de dissuasão (164)
Os últimos dez minutos da Era da Dissuasão, Ano 62 - 28 de novembro, 16 h 17 min34 a 16 h 27 min58: Centro de Dissuasão (169)
Era Pós-Dissuasão, primeira hora - um mundo perdido (175)
Trecho extraído de um passado além do tempo Reflexões sobre o fracasso da Dissuasão por Floresta Sombria (177)
Era Pós-Dissuasão, primeira hora - um mundo perdido (179)
Era Pós-Dissuasão, dia 60 - um mundo perdido (183)
Trecho extraído de um passado além do tempo Explosão tecnológica em Trissolaris (185)
Era Pós-Dissuasão, dia 60 - um mundo perdido (186)
Era Pós-Dissuasão, Ano 2 Austrália (189)
Os últimos dez minutos da Era da Dissuasão, Ano 62 - 28 de novembro,16 h17min34 a16 h27min58: Gravidade e Espaço Azul, espaço sideral (213)
Era Pós-Dissuasão, dias 1 a 5 Gravidade e Espaço Azul, espaço sideral além da nuvem de Oort (231)

Parte III

Era da Transmissão, Ano 7 Cheng Xin (253)
Trecho extraído de um passado além do tempo Delírio da perseguição cósmica: a última tentativa de invalidar a Teoria da Floresta Sombria (255)
Era da Transmissão, Ano 7 Cheng Xin (257)
Trecho de Um passado além do tempo Um novo modelo para a Foresta Sombria (260)
Era da Transmissão, Ano 7 Sófon (262)
Trecho extraído de um passado além do tempo O aviso de segurança cósmica: uma arte performática solitária (269)
Era da Transmissão, Ano 7 Sófon (272)
Trecho extraído de um passado além do tempo A longa escadaria (279)
Era da Transmissão, Ano 7 Yun Tianming (281)
Era da Transmissão, Ano 7 Os contos de fadas de  Yun Tianming (300)
O primeiro conto de Yun Tianming  "O novo pintor real" (304)
O segundo conto de Yun Tianming  "O mar dos glutões" (316)
O terceiro conto de Yun Tianming  "Príncipe água profunda " (325)
Era da Transmissão, Ano 7 Os contos de fadas de  Yun Tianming (338)
Trecho extraído de um passado além do tempo Projeto Casamata: uma arca para a civilização terrestre (344)
Era da Transmissão, Ano 7 Os contos de fadas de  Yun Tianming (348)
Trecho de um passado além do tempo  Movimento mediante dobras no tempo (352)
Era da Transmissão, Ano 7 Os contos de fadas de  Yun Tianming (368)
Era da Transmissão, Ano 8 Opção do destino (370)
Trecho extraído de um passado além do tempo Sentinela espaciais: o sistema da alerta avançado do sistema solar (384)
Era da Transmissão, Ano 8 Opção do destino (386)
Trecho extraído de um passado além do tempo Terror da noite sem fim (392)
Era da Transmissão, Ano 8 Ponto de Lagrange Sol - Terra (394)

Parte IV

Era da Casamata, Ano 11 Mundo Casamata (405)
Era da Casamata, Ano 11 Velocidade da luz II (423)
Era da Casamata, Ano 11 Cidade Halo (430)

Parte V

Era da Casamata, Ano 67 Braço de Órion da Via Láctea (449)
Era da Casamata, Ano 67 Halo (461)
Era da Casamata, Ano 68 Plutão (480)
Era da Casamata, Ano 67 O Sistema Solar bidimensional (495)

Parte VI

Era da Galáxia, Ano 409 Nossa estrela (523)
Cerca de dezessete bilhões de anos após o início dos tempos - Nossa estrela (552)
Além do tempo - Nosso universo (561)
Trecho de um passado além do tempo Os degraus da responsabilidade (575)
Além do tempo - Nosso universo (577)
Posfácio do tradutor americanos (582)

Trechos do livro - vol. 3

Algo mais perturbava Yang Dong: sua mãe, Ye Wenjie. Sem querer, ela descobrira no computador da mãe algumas mensagens codificadas com criptografia pesada. Isso provocou uma intensa curiosidade em Yang.
Como muitos idosos, a mãe de Yang não estava familiarizada com os detalhes da web e de seu próprio computador, por isso só havia deletado os documentos criptografados em vez de destruí-los digitalmente. Ela não sabia que seria fácil recuperar os dados mesmo se o
disco rígido fosse reformatado.
Pela primeira vez na vida, Yang Dong escondeu um segredo da mãe e recuperou a informação dos documentos deletados. Foram dias até conseguir ler tudo, e nesse tempo Yang Dong descobriu uma quantidade espantosa de detalhes sobre o mundo de
Trissolaris e o segredo entre sua mãe e os extraterrestres.
(pp. 26 e 17, vol. 3)
....
Se era possível hibernar, por que persistir no presente?
Sob a ótica da sociologia, a descoberta biotecnológica da clonagem humana era muito menos complicada do que a hibernação. A clonagem suscitava questionamentos morais, mas era um problema que abalava sobretudo quem tinha uma perspectiva moral inspirada no cristianismo.
Já os problemas suscitados pela hibernação eram de ordem prática e afetavam toda
a raça humana. Quando a tecnologia passasse a ser comercializada com sucesso, quem tivesse condições a usaria para viajar direto ao paraíso, enquanto o resto da humanidade seria obrigado a continuar no presente, que em comparação era deprimente, para construir esse paraíso.
Porém, ainda mais problemático era o aspecto mais sedutor que o futuro proporcionava: o fim da morte.
Com o avanço rápido da biologia moderna, as pessoas passaram a acreditar que o fim da morte seria alcançado em mais um ou dois séculos. Se isso acontecesse, quem optasse pela hibernação subiria os primeiros degraus rumo à vida eterna. Pela primeira vez na história, a morte deixava de ser justa. As consequências eram inimagináveis.
(p. 71, vol. 3)
...
Depois do início da Era da Dissuasão, a maior parte das indústrias pesadas fora transferida para o espaço em órbita, e a ecologia natural da Terra se recuperou. A superfície do planeta agora se aproximava da que existia nos tempos pré-Revolução Industrial.
Devido a uma diminuição da população e ao aumento da produção alimentícia industrializada, parte considerável da terra cultivável pôde permanecer desocupada e voltar ao estado natural. O planeta Terra estava se transformando em um parque gigantesco.
(p. 123, vol. 3)
...

O próximo voto a favor ativará a transmissão universal. (...)
Então, dezenas de mãos avançaram juntas, e o botão piscou mais uma vez.
Trezentos e quinze anos haviam se passado desde aquela manhã do século XX em que Ye Wenjie havia apertado outro botão vermelho.
A transmissão de ondas gravitacionais começou. Todos sentiram uma trepidação forte. A sensação não parecia vir de fora, mas de dentro do corpo de cada um, como se cada pessoa tivesse se tornado uma corda vibratória.
Esse instrumento de morte tocou só por doze segundos, e depois o silêncio cobriu tudo.
Do lado de fora da nave, a fina membrana do espaço-tempo oscilou com as ondas gravitacionais, como um lago plácido agitado por uma brisa noturna. O juízo de morte para os dois mundos se expandiu pelo cosmo à velocidade da luz
. (p. 228, vol. 3)
...

Diante das estrelas giratórias, Cheng Xin viu o Mundo Casamata.
Dali, era possível ver a maioria das cidades espaciais atrás de Júpiter. Ela viu vinte e duas (incluindo a dela), e havia outras quatro escondidas atrás da cidade em que estavam. Todas as vinte e seis (seis a mais do que o planejado) estavam ocultas à sombra de Júpiter, dispostas vagamente em quatro fileiras, e Cheng Xin se lembrou das naves alinhadas atrás do pedregulho gigantesco no espaço, mais de sessenta anos antes.
Em um dos lados de Ásia I estavam América do Norte I e Oceania I, e do outro estava Ásia III. Havia um intervalo de apenas cinquenta quilômetros entre Ásia I e suas vizinhas mediatas, e Cheng Xin conseguia sentir a imensidão delas, como se fossem dois planetas. A fileira seguinte com outras quatro cidades ficava a cento e cinquenta quilômetros de distância, e era difícil determinar o tamanho só de olhar. As cidades espaciais mais distantes ficavam a cerca de mil quilômetros dali e pareciam brinquedos delicados.
(p. 413, vol. 3)
...
A população de Europa IV era a menor de todas, só 4,5 milhões de pessoas. Era a cidade mais rica do Mundo Casamata. Cheng Xin ficou impressionada com as belas
casas à luz dos minissóis. Cada uma tinha a própria piscina, e algumas possuíam amplos gramados. A paisagem serena do mar equatorial era decorada por pequenas velas brancas, e nas margens as pessoas relaxavam e pescavam. Ela viu um iate passar lentamente, e parecia tão luxuoso quanto qualquer iate na Terra de antigamente. Estava acontecendo uma festa, com música ao vivo... Cheng Xin ficou admirada ao ver que era possível transferir aquele estilo de vida para a sombra de Júpiter, a oitocentos milhões de quilômetros da Terra.
(p. 417, vol. 3)
...
Cinco horas atrás, o sistema de alerta avançado confirmou que
foi iniciado um ataque de floresta sombria contra nosso
mundo.
Isso acontece sob a forma de ataque dimensional, que fará o
espaço em torno do Sistema Solar cair de três dimensões
para duas. O resultado será a destruição absoluta de toda a
vida.
Estima-se que o processo leve de oito a dez dias para se
completar. Neste momento, o colapso encontra-se em
andamento, e a velocidade e extensão estão crescendo
rapidamente.
Confirmamos que a velocidade de escape para a região em
colapso é a velocidade da luz.
Uma hora atrás, o Governo Federal e o Parlamento promulgaram
uma nova resolução que revoga todas as leis relativas ao
Escapismo. No entanto, o governo gostaria de lembrar a
todos os cidadãos que a velocidade de fuga é muito superior
à capacidade máxima de todos os veículos espaciais
humanos. A probabilidade de fuga é zero.
O Governo Federal, o Parlamento, a Suprema Corte e a Frota da
Federação seguirão cumprindo suas responsabilidades até o
fim.
(p. 483, vol. 3)
...
A Terra foi o primeiro planeta sólido a cair em duas dimensões. Em comparação com Netuno e Saturno, os “três anéis” da Terra bidimensionalizada eram mais repletos ainda de pequenos detalhes — o amarelo do manto se tornava gradualmente um vermelho-escuro do núcleo de níquel e ferro —, mas a área total era muito menor do que a dos gigantes gasosos. (p. 503, vol. 3)
...
Assim que o Sol começou a se bidimensionalizar, um círculo se expandiu no plano. Em pouco tempo, o diâmetro do Sol plano superou o diâmetro do que restava do astro. Esse processo levou apenas trinta segundos.
Com base no raio solar médio de setecentos mil quilômetros, a borda do Sol bidimensional cresceu a um ritmo de vinte mil quilômetros por segundo. O Sol plano continuou crescendo, formando um mar de fogo, e todo o Sol tridimensional naufragou lentamente nesse oceano vermelho sangue de chamas.
(p. 507, vol. 3)
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— Já falei, não estou dizendo nada, só imaginando. — A voz de Yifan ficou mais baixa. — Mas ninguém sabe se a verdade é mais sombria ainda do que as nossas hipóteses... Só temos uma certeza: o universo está morrendo. (p. 539, vol. 3)
...