quarta-feira, 4 de junho de 2025

Gênesis Tukano

Cobra-canoa

Seu Francisco e eu sentamos no pequeno alpendre de uma casa de madeira junto ao rio, em Santa Isabel do Rio Negro

Indígena da etnia Tukano, educado no internato salesiano da cidade, onde estudou dos dez aos quinze anos, contou que ainda criança ouviu dos mais velhos da aldeia a história da criação da humanidade que povoou o rio Negro.

- Era muito diferente da que os padres ensinaram, Adão e Eva, o paraíso, a serpente, o pecado, essas coisas.

Pai de cinco filhos adultos que lhe deram tantos netos que ele não era capaz de decorar os nomes, tinha chegado aos 63 anos quase sem cabelos brancos, com boa saúde e disposição.

Segundo ele, no início dos tempos:

- Tudo era escuridão. Não existia luz, sol, estrelas, mata, rios, peixes, seres humanos nem animais, só o Avô do Universo.

- E quem criou o Avô?

- Ninguém, ele apareceu por si mesmo.

Um dia esse Avô se cansou das trevas:

- Ele falou: vou fazer um mundo de luz, águas, terras, dias e noites, florestas, ventos, chuvas, peixes e outros animais, e também vou criar os seres humanos. Então, ali onde o sol nasce, ele fez surgir o Lago do Leite. Muitos dizem que foi na baia da Guanabara e que o Pão de Açúcar seria os seios da mulher que produziram o leite. Eu tenho dúvida, como eles podiam saber que o Pão de Açúcar existia?

O Lago do Leite é uma lenda de tradição oral entre os Tucano como seu Francisco e outros povos do Alto Rio Negro. O lago teria dado origem ao Rio do Leite (o Rio Negro), mito que representa o fluxo da vida, da fecundidade e da abundância, ligado à nutrição espiritual e física, fonte da vida e da energia vital.

O rio é considerado sagrado pelos povos da região por ter sido a morada dos ancestrais e de espíritos que transmitem sabedoria e entendimento. É parte de um sistema de águas espirituais encarregado de conectar os povos indígenas da região, que compartilham histórias e visões semelhantes sobre o cosmos e o fluxo da vida.

Seu Francisco contou que o Avô do Universo fez aparecer uma anaconda, cobra gigante que ele transformou numa canoa muito bonita: a Cobra-canoa. A anaconda é um animal sagrado para os Koripako e outros povos do Rio Negro.

- Depois ele criou a gente de transformação, com a intenção de fazer os seres humanos. Foi assim que os nossos ancestrais partiram dentro dessa canoa de transformação, na direção do sol, margeando a costa do Brasil até dar a volta e chegar até a boca do Rio Amazonas.

Seguiram pelo Rio Amazonas até a foz do Rio Negro.

- No encontro das águas, a Canoa ficou na dúvida se entrava pelo Solimões, mas decidiu entrar  pelo Rio de Leite. Navegaram pelo Rio Negro até a boca do rio Uaupés e subiram contra a corrente com destino à cachoeira de Ipanoré.

Ao longo desse trajeto, a Cobra-canoa fez diversas paradas para desembarcar os ancestrais que formariam os povos do Alto Rio Negro: Desana, Pira-tapuya, Tukano, Hupda, Werekena, Koripako, Baniwa, Tuyuka, Kubeo, Yuhupdeh, Baré e as demais etnias habitantes da região.

- Esses lugares são muito importantes, sagrados para nós, porque são casas de transformação de nossos antepassados. Todos nós que viemos da Cobra-canoa temos ligação íntima com esse rio. Sendo Rio de Leite, nossas mães nos deram banho nas águas dele.

De acordo com o mito, a jornada da Cobra-canoa representa a passagem do tempo e a interação entre passado, presente e futuro. Da mesma forma que o rio corre sem parar, a vida segue seu curso guiada pelos ensinamentos dos ancestrais que viajaram na Canoa, transmitidos de geração em geração.

O mito tem variações específicas, de acordo com os valores culturais e sociais de cada povo. Conserva, no entanto, a ideia de criação e ancestralidade, centralizadas nas águas do rio. Cada gente que passou pela transformação recebeu as flautas e demais instrumentos sagrados e um lugar para viver, demarcado por serras, corredeiras, igarapés e marcas nas rochas (petróglifos).

Para seu Francisco, ao lado do bem, o rio também encerra perigos:

- Alguns lugares devem ser evitados. São moradas de intrigas e de seres encantados que vivem nos rios e nas florestas. Quando eles atacam, a pessoa com desânimo, cansada, perde o apetite, se enche de fraqueza. Eles formam uma comunidade invisível, só os pajés conseguem ver. Para os brancos, não existe Cobra-canoa de Transformação, é por isso que vocês não se benzem.

Com variações de uma etnia para outra, para os povos do Alto Rio Negro os xamãs, por meio de rituais ou de estados alterados de consciência, entram nas águas do Rio de Leite para se comunicar com o mundo espiritual e ter acesso aos mistérios da natureza e do universo, além do objetivo de adquirir conhecimentos para curar doenças e os males da mente, e promover harmonia entre os povos e a natureza. Para eles, os rios físicos são um reflexo dos rios espirituais. 

A Cobra-canoa é mais do que uma simples explicação para o nascimento da humanidade; é uma metáfora para o fluxo contínuo da vida e para a harmonia entre os seres humanos e a natureza.
Para os Tukano, o território é sagrado por ter sido a origem de seus ancestrais. Viver em sintonia com o ambiente é uma forma de respeitar o legado deles trazido pela Cobra-canoa, o fluxo contínuo das águas que nunca passam duas vezes pelo mesmo lugar e simbolizam o nascimento e a morte. 

Os Barés acreditam que seus ancestrais ainda não completamente humanos foram trazidos sob as águas do rio e deixados pela Canoa num buraco, de onde emergiram para ocupar seu terriório. Os Hupda também se consideram descendentes diretos dos que viajaram na Canoa e creem que a anaconda é um animal sagrado, por representar a força da natureza e a continuidade da vida.

 

Texto do livro O sentido das águas, histórias do Rio Negro, Drauzio Varella, pp. 77-80, Companhia Das Letras, 2025


 



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