sábado, 16 de janeiro de 2021

Indígenas e o agronegócio

PAZ ENTRE AGRONEGÓCIO E DIREITOS INDÍGENAS?
Acabar com as ilegalidades é necessário, mas não suficiente

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
EDIÇÃO 172 | JANEIRO_2021, piaui

Os indígenas Mro-o, Tomtu e Nzoikamrekti Kayapó leem em 1987 o projeto da nova Constituição, promulgada no ano seguinte: o artigo 231 define que o direito dos povos indígenas às suas terras é originário, ou seja, anterior à própria Constituição – CREDITO: GUILHERME RANGEL_ADIRP_1987
 

Uma guerra está em curso contra os povos indígenas. Uma guerra que reúne vários antagonistas, entre eles alguns setores do agronegócio. Para entrever um cessar-fogo, uma trégua nessa disputa, achei que devia tentar entender a perspectiva desses setores. Guiei-me por um livro muito instrutivo que prefaciei: Formação Política do Agronegócio, de Caio Pompeia (a ser lançado pela editora Elefante).
 

Visto de fora, o agronegócio se afigura monolítico. “Agro é tudo”, diz o bordão. A construção de uma noção unificadora da atividade tem sido exitosa do ponto de vista da visibilidade e influência política, mas parece não ter superado as grandes diferenças que há entre seus segmentos. Os interesses e a cultura política dos grandes e médios produtores do campo, por exemplo, nem sempre coincidem com os das indústrias, como revelam as disputas entre sojicultores e tradings, para ficar em um caso exemplar. A criação sucessiva de organizações, cujas hegemonias acabam se revelando passageiras, é outro indicador dessas diferenças. Até a chamada bancada ruralista no Congresso, por mais que siga as diretrizes recebidas por meio do Instituto Pensar Agropecuária (IPA), parece em alguma medida distinta do resto das representações do agronegócio.
 

Quem está de fora percebe certa diferença, um gradiente. De um lado, um conjunto de atores mais imediatistas e bastante imunes a pressões externas, que parece incluir parte relevante da agricultura patronal e, em certa medida, das indústrias das quais ela é cliente. De outro lado, agentes empresariais mais sensíveis a valores ambientais e de direitos humanos. Mesmo assim, para evitar rupturas, os diferentes grupos preferem se apresentar publicamente como um bloco indiviso.
 

Pode-se dizer que nenhum presidente brasileiro de 1990 até 2018 deixou de acolher demandas de associações do agronegócio, mas nenhum parece tê-lo feito por iniciativa própria e inteira adesão. Dizem que Fernando Henrique Cardoso se sentiu incomodado ao promulgar, em 1996, um novo decreto que abria espaço para o contraditório no processo de demarcação e homologação de terras indígenas.
 

Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, deu uma no cravo e outra na ferradura, ora atendendo aos interesses dos produtores, ora os contrariando, o que levou o seu ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, vinculado ao agronegócio, a se demitir do governo, em 2006. A inação de Dilma Rousseff quanto às demarcações de terras indígenas, apesar dos reparos feitos por ela nas últimas horas de seu governo, e a amizade que cultivava com Kátia Abreu – que se licenciou da presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a qual acabou perdendo, para assumir o Ministério da Agricultura – não foram, porém, suficientes para que a presidente obtivesse o apoio do setor. Michel Temer, por sua vez, aderiu com manifesto entusiasmo ao programa do agronegócio, seja por convicção, seja por ter se tornado devedor e refém dos votos da bancada ruralista no Congresso para ajudar a obstruir os pedidos de abertura de processos contra ele. Em seu governo foi extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que cuidava da agricultura familiar, e ressuscitado um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de que falarei mais adiante, que estendeu a toda a administração pública um entendimento e condicionantes espúrias para as demarcações de terras indígenas.
 

Mesmo assim, por mais que a influência política do agronegócio tenha se ampliado, a ligação dos governos com as organizações do setor nunca foi irrestrita… até recentemente.
 

Nenhum governo até 2018, em que pesem suas práticas e concessões, apregoou ser contrário aos direitos indígenas e ambientais. Com Jair Bolsonaro isso mudou. O discurso, as medidas provisórias e as omissões do atual presidente são abertamente anti-indígenas e antiambientalistas, o que repercutiu favoravelmente no conjunto imediatista do agronegócio.
 

O chamado Dia do Fogo – em 10 de agosto de 2019, quando incêndios foram provocados na região amazônica para “mostrar ao presidente” – evidenciou como o discurso de Bolsonaro vinha sendo percebido. Com o novo governo, espalhou-se também o entendimento de que as terras da União invadidas, notadamente as indígenas, seriam regularizadas a favor de invasores. Isso fomentou a grilagem direta ou por pessoas interpostas, como no caso de fazendeiros que doavam ou vendiam barato a agricultores pobres lotes de terras invadidas, visando criar assim um “problema social” e um fato consumado, na eventualidade de uma expulsão. Formou-se verdadeira corrida a Terras Indígenas (TIs) e a Unidades de Conservação (UCs).
 

Além disso, o poder de polícia e de intervenção de órgãos do Estado foi publicamente enfraquecido e reduzido por vários meios. Madeireiros desmataram seletivamente em terras indígenas sem medo da fiscalização, enquanto funcionários do Ibama, órgão federal responsável por zelar pelo meio ambiente, eram exonerados porque, cumprindo a lei, destruíram maquinário de verdadeiras empresas de garimpagem atuando em terras indígenas. Nessas invasões, o desmatamento foi de tal monta que ultrapassou em muito a taxa geral na Amazônia.
 

O agronegócio, com a chegada de Bolsonaro à Presidência, finalmente se achou no centro do governo, ocupando ministérios essenciais. Até o Ministério do Meio Ambiente e a Fundação Nacional do Índio (Funai), que o Congresso impediu que fossem engolidos pelo Ministério da Agricultura, passaram para o comando de aliados do setor. Como escreveu recentemente a ex-subprocuradora-geral Deborah Duprat, o ministro do Meio Ambiente tem um currículo contra o ambiente e o presidente da Funai, um currículo contra os índios. E, quando se protesta contra esses conflitos de interesse e as inconstitucionalidades que promovem, recebe-se de membros do Executivo esta resposta, como se resposta fosse: “Esqueceram de que um novo presidente foi eleito?”
 

Sim, um novo presidente, com programa abertamente anti-indígena e anticonservacionista, foi eleito, isso é incontestável. Mas, acima dele, está a Constituição Federal, o que é igualmente incontestável. Vem daí a importância cada vez mais clara e, esperemos, duradoura, do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.
 

Com Bolsonaro, que ideologicamente se alinha à União Democrática Ruralista (UDR), o agronegócio não só está no governo, como sua ala à extrema direita está mais atuante. O presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan Garcia, almejava ser ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Impedido, por razões pragmáticas, de colocá-lo no comando, Bolsonaro confiou-lhe a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários desse mesmo ministério. Garcia tem acesso direto ao presidente. Sua atuação é consistente: ele se esforça para facilitar a regularização fundiária, sobretudo na Amazônia, em particular por meio da autodeclaração que não é devidamente verificada nem pela União, nem pelos estados. Com isso, abre-se espaço para um maior número de fraudes.
 

A autodeclaração, cada vez que é autorizada, tem levado a irregularidades. É o caso do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), criado em 2012. Na época, foi informado expressamente que a inscrição no Sicar com dados fornecidos pelo dono presumido da área não valia como reconhecimento de propriedade ou posse, e que as declarações dos supostos proprietários seriam validadas pelo órgão competente. Mas não foi isso o que ocorreu. Ao analisar dados do Sicar de maio de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) encontrou 9 901 áreas – 71% delas na Amazônia Legal – identificadas como propriedades privadas, mas que tinham sobreposições com terras indígenas ou áreas de proteção de índios isolados. Levantamento recente mostra que mais de 12 milhões de hectares declarados ao Cadastro Ambiental Rural estão sobrepostos a 297 terras indígenas, sendo mais de 60% delas terras demarcadas e homologadas.
 

A chamada “regularização fundiária” da Amazônia Legal, região na qual grande quantidade de terras públicas ainda não tem destinação, vem sendo desde 2005 gradativamente facilitada por medidas provisórias transformadas em leis pelo Congresso. A princípio, essa regularização destinava-se a titular pequenos posseiros que, antes de 1º de dezembro de 2004, praticassem a agricultura familiar e estivessem cultivando até 500 hectares, exclusivamente com a família. Em 2009, com a medida provisória nº 458 (transformada na lei nº 11.952, do mesmo ano), e a primeira de sucessivas medidas provisórias apelidadas de MP da Grilagem, a área máxima passou a ser de 1,5 mil hectares, a exigência relacionada à agricultura familiar desapareceu e a exploração da área passou a permitir a inclusão de assalariados. A Procuradoria-Geral da República impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por “privilégios injustificáveis em favor de grileiros que, no passado, se apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra pública”.
 

Em 2017, no governo Temer, outra lei ampliou a área máxima para 2,5 mil hectares, diminuiu a exigência de antiguidade da ocupação para 22 de julho de 2008 e autorizou que o beneficiário fosse uma empresa.
 

Já no governo Bolsonaro, a medida provisória 910/2019, apelidada novamente de MP da Grilagem, reduziu mais uma vez a exigência da antiguidade da ocupação – para até 5 de maio de 2014. Felizmente, o Congresso deixou caducar o prazo para a votação dessa MP, embora tenha encaminhado um projeto de lei sobre o mesmo tema. Na esteira do Executivo federal, o governo do Pará promulgou no mesmo espírito, em julho de 2019, uma nova lei de regularização fundiária.
 

Essa sucessão de leis gerou um crescente incentivo à grilagem de terras, sobretudo na Amazônia, e várias possibilidades de concentração fundiária. Até a malograda MP 910 de Bolsonaro contribuiu para isso, enquanto não era barrada no Congresso. O presidente tentou, com a medida provisória publicada em seu primeiro dia de governo, atribuir à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, já encabeçada por Garcia, a função de reconhecimento de terras indígenas, tarefa que é da alçada da Funai. Embora o Congresso tenha barrado a medida, Garcia manteve sua influência sobre a questão.
 

Outro mecanismo que favorece a grilagem reside no processo de regularização fundiária. Esse processo se inicia com uma autodeclaração georreferenciada, que o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) deve verificar com sensoriamento remoto, mas também com vistoria presencial antes de encaminhar a titulação. Essa vistoria em 2019 não foi feita nem uma vez sequer. O remédio a esse estado de coisas que acaba de ser publicado no Diário Oficial de 3 de dezembro de 2020 é assombroso: propõe-se delegar as vistorias a agentes municipais, quando é notório que eles são muito mais sujeitos a pressões locais. Outra forma de verificação oficial das pretensões à regularização fundiária se baseia na consulta do Sigef, descrito como “uma ferramenta eletrônica desenvolvida para subsidiar a governança fundiária do território nacional com a certificação do georreferenciamento dos imóveis rurais”. A ideia é evitar entre outras sobreposições aquelas com áreas indígenas, áreas militares e unidades de conservação.
 

Uma medida particularmente danosa foi a instrução normativa nº 9, de 16 de abril de 2020, da Funai. Coincidência ou não, foi editada no mesmo dia em que o ministro do Meio Ambiente, na assombrosa reunião ministerial de 22 de abril, recomendou medidas infralegais “para passar a boiada”. Essa instrução normativa, entre outras maldades, suprimia do Sigef todas as terras indígenas ainda não homologadas. Trata-se de uma interpretação errônea e maliciosa do que venham a ser as TIs.
 

Terras indígenas têm sua existência reconhecida diretamente no artigo 231 da Constituição e, por isso, não dependem de regularização para serem reconhecidas. A sua regularização fundiária com demarcação e homologação, uma obrigação constitucional da União, é proteção importante, mas costuma se arrastar por muito tempo e passa por vários estágios, com limites já georreferenciados, antes da demarcação final. Eliminar essas TIs com perímetro já georreferenciado do cadastro do Sigef é escandaloso: significa que o Sigef não poderá sequer levar em consideração os limites dessas terras indígenas para evitar sobreposições e se opor a pretensões de regularização fundiária de invasores. A instrução normativa nº 9 da Funai é, portanto, flagrantemente inconstitucional. Ações judiciais impetradas por membros do Ministério Público Federal nesse sentido já obtiveram uma sentença favorável e suspensões liminares em vários tribunais federais regionais, mas a vigência provisória dessa instrução normativa, enquanto não se generaliza sua suspensão, já permitiu abusos vários.
 

O artigo 231 da Constituição de 1988 deixa claro que o direito dos povos indígenas às suas terras é originário, ou seja, é anterior à própria Constituição. As terras indígenas não são criações nem concessões do Estado. O que compete constitucionalmente ao Executivo é regularizar essas terras e protegê-las, além de, no prazo de cinco anos, demarcá-las e homologá-las. Sendo assim, por não ter concluído essas demarcações e homologações, a União está inadimplente há mais de 27 anos.
 

A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), entretanto, produziu uma inversão nesse raciocínio. A cada quatro anos, programas e propostas das principais organizações do agronegócio são endereçados a candidatos à Presidência da República ou a presidentes recém-empossados. Nos documentos, a questão das terras indígenas, de quilombolas e comunidades tradicionais costuma figurar num item sempre presente, o da segurança jurídica, entendida geralmente como a segurança fundiária dos agricultores e pecuaristas.
 

Nos pleitos endereçados pela Abag aos presidenciáveis em 2010 e 2014, o prazo para a demarcação das terras indígenas é interpretado como tendo início na data da promulgação da Constituição de 1988 e término legal cinco anos depois. Ou seja, no argumento bizarro da associação de agribusiness, as demarcações só poderiam ser feitas até 1993! Na prática, o prazo que a União não cumpriu vira-se contra o direito originário dos povos indígenas. O documento de 2010, intitulado Propostas do Agronegócio para o Próximo Presidente da República, afirma o seguinte:


Outra questão de insegurança jurídica diz respeito à ameaça contínua de expropriação de áreas consideráveis de produção agrícola sob o argumento de remanescentes comunidades quilombolas e de demarcação de reservas indígenas. A Constituição de 1988 delimitou o prazo de cinco anos para que se concluísse o processo demarcatório e passados vinte e dois anos ainda persiste a ameaça de que propriedades venham a ser desapropriadas por estes motivos.
 

Até agora, arrolei sobretudo ilegalidades e fraudes flagrantes, e não há dúvida de que, se a legalidade imperasse, estaríamos em muito melhor posição. Mas não basta.
 

Em sua guerra contra os direitos indígenas, de quilombolas e comunidades tradicionais, atores ligados ao agronegócio têm também recorrido cada vez mais à sua influência e organização para tentar alterar dispositivos legais, incluindo aí normas, projetos de lei e até a Constituição. Além das medidas provisórias feitas pelo Executivo, contam com projetos legislativos propostos pela Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, criada oficialmente em 1995, como desdobramento da formação, durante a Constituinte, da chamada bancada ruralista.
 

Um dos temas recorrentes é o da introdução de interesses contrários nas decisões sobre demarcações. Lembremos que as terras indígenas são de propriedade da União. Ora, um conjunto de propostas legislativas, até o momento em banho-maria no Congresso, quer transferir as demarcações dessas terras do Poder Executivo – que sempre cuidou disso, até para que as terras fiquem resguardadas das pressões dos poderosos locais – para o Poder Legislativo. A mais conhecida é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215, formulada em 2000, que quer transferir o poder de aprovar as demarcações das terras indígenas da Funai para a alçada de senadores e deputados.
 

Entidades influentes do agronegócio propõem que outros interessados, inclusive outros ministérios e representantes de governos estaduais ou municipais, façam parte da instância que regulariza as terras indígenas. Assim, no documento de propostas para os presidenciáveis de 2018 chamado O Futuro é Agro: 2018-2030, o Conselho das Entidades do Setor Agropecuário (ou Conselho do Agro), liderado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, propôs “reestruturar a Funai, alterando suas competências e criando órgãos colegiados, com a participação de outros entes públicos na deliberação sobre a realização de estudos e a demarcação de terras indígenas, com assessoramento de equipes técnicas multidisciplinares e isentas de ideologia”. Em razão de protestos contra essa proposta e da atuação do Congresso, felizmente isso não se concretizou até agora.
 

Outra demanda constante do agronegócio é a reivindicação de indenização quando forem regularizadas terras indígenas em áreas das quais não indígenas tenham algum tipo de título. Desde 2014, organizações do agronegócio pressionam o Congresso a pautar e aprovar o projeto de lei complementar nº 227, de 2012, que pretende alterar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição. Nesse parágrafo ficou determinado que fossem considerados “nulos ou extintos” todos os atos jurídicos que tivessem por objeto a ocupação, o domínio, a posse e a exploração de terras indígenas, não resultando disso, ao alegado proprietário, qualquer direito à indenização, exceto quanto às benfeitorias feitas por ele na área em questão, se foi ocupada “de boa-fé”.
 

O projeto de lei complementar nº 227 pretende conseguir indenização sobre a terra nua a quem exibe algum título sobre áreas indígenas. De quebra, quer permitir a presença, durante o processo de demarcação, de representantes dos governos municipais e estaduais e dos que têm algum tipo de título que lhes permita se arrogar o direito à terra indígena.
 

É interessante observar que a proibição de indenização a ocupantes de terras indígenas não foi uma novidade da Constituição de 1988: já constava da emenda constitucional promulgada em 1969 (artigo 198), que era até mais drástica, uma vez que não admitia sequer indenização por benfeitorias resultantes de ocupação “de boa-fé”. Em seu primeiro parágrafo, dizia assim:


Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.
 

No parágrafo seguinte, afirmava:


A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.
 

Esse artigo da emenda constitucional de 1969 era uma resposta à verdadeira indústria de indenizações com que fazendeiros, na posse de títulos de várias origens, pretendiam sangrar os cofres públicos. Em 1987, quando eu presidia a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Gilmar Mendes, à época no Ministério Público Federal e hoje ministro do STF, me falou da existência de várias camadas superpostas de títulos espúrios sobre terras indígenas em Mato Grosso, seu estado natal. Mencionou que a União estava reiteradamente perdendo os processos movidos contra ela. Na ocasião, Gilmar Mendes pediu que indicássemos antropólogos especialistas de cada área indígena para refutar as perícias danosas e mal informadas. Fizemos um acordo entre a ABA e o MPF e, graças ao trabalho de especialistas na história e nas terras indígenas, as decisões do Judiciário sobre os pedidos de indenização começaram a mudar. Não por acaso, datam de 1988 duas publicações de Gilmar Mendes defendendo os direitos territoriais indígenas: o livro O Domínio da União Sobre as Terras Indígenas: O Parque Nacional do Xingu, e o artigo Terras Ocupadas pelos Índios, na Revista de Direito Público (ano XXI).
 

Os reclamos pela indenização são particularmente numerosos no Sul de Mato Grosso do Sul. Na década de 1940, estimulada por um programa do governo federal, uma onda de ocupação de agricultores nessa região expulsou muitos indígenas de suas terras. A partir de 1990, alguns desses territórios foram delimitados, demarcados e homologados pelo Executivo. Entretanto, fazendeiros que estavam em posse dessas terras recusaram-se a sair. Deram entrada em ações judiciais que se arrastam há muitos anos. Foi assim que os Kaiowá e os Guarani de Mato Grosso do Sul, embora tivessem obtido a demarcação de 24 terras desde a Constituição de 1988, vinte anos depois só detinham a posse de 26% de sua área. Os fazendeiros afirmam que só saem quando receberem indenizações tanto pela terra como pelas benfeitorias. É o que explica a insistência do agronegócio em promover uma emenda constitucional para alterar o artigo 231, com sua proibição de indenização.
 

Os pleitos da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil aos presidenciáveis de 2014, apresentados no documento O que Esperamos do Próximo Presidente: 2015-2018, reiteram a interpretação bizarra da Abag sobre o fim das demarcações em 1993 e explicitam a demanda de indenização pela terra nua sob outra forma: propõem que terras indígenas sejam compradas. Diz o documento:


Vale ressaltar que o texto original da Constituição de 1988 definiu, como transitória, a demarcação de terras indígenas. Foi imperativo ao determinar o prazo de cinco anos, contados da sua promulgação, para que a União concluísse os processos demarcatórios. No entanto, 21 anos depois de exaurido este prazo, não há qualquer sinal de interrupção das demarcações pelas instâncias governamentais competentes. Dessa forma, faz-se urgente e definitivo cessar as ações demarcatórias, devendo o governo adotar mecanismos de aquisição de terras em atendimento a eventual demanda de novas áreas para as comunidades indígenas.

 

Outra tentativa de solução, encaminhada em paralelo pela Frente Parlamentar da Agropecuária, foi expressa na Proposta de Emenda à Constituição nº 71, de 2011, que pretendia garantir aos que se intitulavam proprietários rurais o direito à indenização da terra nua, além das benfeitorias, caso eles possuíssem títulos expedidos pelo poder público até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
 

A menção a essa data remete a outra frente de batalha, travada atualmente no Supremo Tribunal Federal, a do chamado “marco temporal indígena”. Na interpretação da Constituição desejada pelo agronegócio, a tese do marco temporal cancelaria os direitos territoriais, expressos no artigo 231, dos povos indígenas que não estivessem nas suas terras em 5 de outubro de 1988.
Havia uma óbvia e intransponível objeção a essa interpretação: Povos que tivessem sido expulsos pela força de seus territórios teriam perdido seus direitos territoriais? Seria o caso, por exemplo, mas não só, de muitos indígenas do Centro-Oeste. A interpretação do agronegócio seria juridicamente inconcebível. Forçada a considerar e a tentar contornar essa objeção, a tese do marco temporal admitiu exceções: os direitos dos povos indígenas continuaram vigentes caso tivesse ocorrido, desde o momento da expulsão, resistência da parte deles, seja por meios físicos, seja por via judicial.
 

As duas exceções oferecidas eram, no entanto, inexequíveis na prática: os vários protestos dos indígenas foram seguidamente reprimidos ao longo do tempo pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), pelas autoridades locais, pela polícia e, posteriormente, durante a ditadura militar, pelo Exército. Um relatório do procurador Jáder de Figueiredo Correia ao Ministério do Interior, escrito em 1967 e redescoberto em 2012, denunciou a corrupção e a violência que levaram à expulsão dos indígenas de suas terras, que foram em seguida objetos de invasão ou arrendamento. A resistência indígena era impossível numa situação como essa.
 

A via judicial, por sua vez, estava praticamente fechada aos povos indígenas até que lhes fosse assegurada expressamente a capacidade jurídica, no artigo 232 da Constituição. Até 1988 eles eram, pelo Código Civil, juridicamente tutelados, e os juízes costumavam fazer valer a interpretação de que somente o órgão tutor, o SPI, e posteriormente a Funai, poderiam representar os índios em juízo. Como o órgão tutor, sabidamente corrupto, era muitas vezes conivente com as expulsões, os indígenas simplesmente não tinham acesso à Justiça.
 

Que a proposta do marco temporal é inconstitucional ficou amplamente provado, sobretudo por um longo parecer feito em 2015 pelo grande constitucionalista José Afonso da Silva. No entanto, as organizações do agronegócio se apegaram fortemente ao marco temporal e agiram em todos os foros que puderam para que este fosse validado. Seguiu-se uma disputa jurídica, que chegou ao STF e, no momento que escrevo, lamentavelmente, ainda não terminou.
 

Na origem, o marco temporal indígena é um entendimento que constou de acórdão de 2009 do então ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito, juntamente com condicionantes várias, entre as quais a proibição de ampliação de terras indígenas. O acórdão foi feito após o julgamento do Supremo que confirmou, naquele ano, a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O decreto da homologação havia sido publicado em 2005 e suscitou grande reação e mesmo pânico na agricultura patronal de Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, estados em que vinham ocorrendo expulsões documentadas de indígenas de suas terras desde pelo menos a criação do SPI, em 1910, com grande incremento na década de 1940.
 

Em razão do decreto, muitos fazendeiros em Mato Grosso do Sul contrataram segurança privada, e a violência contra os indígenas recrudesceu. Houve, inclusive, pedidos de proteção ao governo federal da parte dos fazendeiros. O acórdão de 2009 se afigurou, para eles, como um anteparo contra o risco de a Justiça ordenar a devolução de suas terras aos indígenas. Logo, representações ligadas ao agronegócio começaram a clamar pela generalização da decisão relativa à TI Raposa Serra do Sol a todas as demais terras indígenas, iniciando uma pressão junto ao Executivo e ao Judiciário.
 

Em 2010, agentes do setor insistiram no pedido aos candidatos à Presidência: o marco temporal deveria ser imposto a toda a administração pública. Em 2012, conseguiram seu intento com a portaria nº 303, da AGU. Mas o MPF questionou o Supremo, que decidiu então que o critério do marco temporal e das condicionantes do acórdão relativo à TI Raposa Serra do Sol não se estendia a outras terras indígenas. A portaria da AGU perdeu assim sua vigência. Apesar de frustrados por essa decisão, os agentes patronais não desistiram.
 

A Abag insistiu, em 2014, na reedição da tal portaria. Recomendou sua aplicação no documento Agronegócio Brasileiro 2014-2022 – Proposta de Plano de Ação aos Presidenciáveis. De novo, não houve êxito, mas o lobby do agronegócio voltou à carga em 2017, no governo Temer, dessa vez com o sucesso assegurado. Com o parecer nº 001, a AGU ressuscitou a finada portaria nº 303. Com isso, toda a administração pública, incluindo a Funai, tinha que a partir de então se pautar pelo marco temporal. A 6ª Câmara do MPF protestou e publicou uma declaração incisiva, que dizia: “O governo brasileiro se utiliza de artifícios para sonegar os direitos dos índios aos seus territórios.”[1]
 

Em 2018, o Conselho do Agro reiterou, no documento O Futuro é Agro: 2018-2030, os reclamos quanto ao marco temporal e às mudanças nos processos de demarcação de terras indígenas:


Espera-se que o governo trabalhe no sentido de solucionar problemas relacionados à demarcação e ampliação de terras indígenas, segundo as diretrizes para a identificação e delimitação dessas terras estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no precedente do julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Merecem atenção a vedação da ampliação de terra indígena já demarcada e a participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
 

O documento também insinuou haver fraudes nas demarcações de terras quilombolas e propôs que a estas também fosse aplicado o marco temporal e as regras das demarcações adotadas com as terras indígenas.
 

Mas O Futuro é Agro foi mais longe: censurou a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) por estar atribuindo posse de terras a ribeirinhos. De forma mais ampla, atacou a criação de unidades de proteção ambiental, as comunidades tradicionais em geral e pediu a rescisão do decreto nº 6.040, de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
 

Em 2015, foi criada a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, conhecida simplesmente como Coalizão. Reuniu alguns setores do agronegócio – com presença importante da indústria –, organizações ambientalistas e pesquisadores acadêmicos, e se propôs conciliar a preocupação com as mudanças climáticas, as responsabilidades do Brasil nesse campo e as práticas do agronegócio. Foi, sem dúvida, uma grande e importante inovação. Defendeu também a estrita observância da legalidade, o fim do desmatamento ilegal e instrumentos para coibir a grilagem. Entretanto, no documento inaugural da Coalizão não havia uma só palavra sobre terras indígenas, quilombolas ou de comunidades tradicionais.
 

A Coalizão ganhou espaço a partir do final de 2018, quando publicou um documento ambicioso, intitulado Visão 2030-2050: O Futuro das Florestas e da Agricultura no Brasil. Essa carta prevê que, em 2030, as disputas e os conflitos fundiários estarão ultrapassados: “A regularização fundiária estará consolidada, eliminando conflitos e assegurando segurança jurídica a produtores rurais, comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, extrativistas e investidores.” E ainda assegura que “a regularização fundiária estará estabelecida, por meio de um processo com a participação de todas as partes envolvidas, eliminando conflitos e assegurando segurança jurídica a todos – produtores rurais, comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas e extrativistas) e investidores”.
 

O documento reconhece a importância de povos indígenas e outros povos tradicionais, que podem “derrubar drasticamente as taxas de desmatamento na Amazônia e coibir a grilagem, como já foi confirmado do período de 2004 a 2009”. E preconiza: “Todas as florestas públicas que hoje se encontram sem uso determinado terão destinação definida pelo Estado, como a criação de unidades de conservação, incentivo a projetos de manejo florestal sustentável e à demarcação de terras indígenas. A destinação dessas terras poderá representar uma nova oportunidade de desenvolvimento para comunidades tradicionais e rurais.”
 

A postura da Coalizão contrasta fortemente com aquelas das agremiações mais tradicionais. No final de setembro deste ano, a entidade apresentou ao governo federal proposta com “seis medidas para acabar com o desmatamento”, em que a estrita legalidade de todas as atividades era uma tônica. Descontente, a poderosa Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) rompeu com a Abag, que tem papel de liderança na Coalizão. Mas é significativo que, poucos dias depois, os três maiores bancos brasileiros tivessem entrado na nova entidade.
 

A atual pressão da ONU, de governos específicos e de fundos de investimentos está levando a uma atenção crescente não só ao desmatamento e aos incêndios na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, mas também aos direitos humanos e territoriais dos povos tradicionais. Um comunicado do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) afirma que garantir aos povos indígenas os seus direitos territoriais é algo fundamental para se mitigar a crise climática. Estão também plenamente reconhecidos – em particular pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) – os aportes dos povos indígenas e tradicionais à conservação e geração da biodiversidade. A governança que esses povos sabem exercer sobre seus territórios, quando não são impedidos por políticas públicas desastrosas, torna-os barreiras contra o desmatamento e a perda da biodiversidade. Seus serviços para o clima e a biodiversidade deveriam ter mais apoio político e reconhecimento: estimulá-los a se tornarem monocultores e parte do setor de produtores rurais é um total contrassenso.
 

Um setor do agronegócio não se importa com clima e biodiversidade, e um setor (cada vez menor) do mercado internacional que compra seus produtos também não. Para uns e outros, tudo poderia continuar como está. Mas há outros brasileiros que se importam. Não só por causa das consequências imediatas do desmatamento, como a mudança no regime das chuvas, o que pode levar a seca aos territórios agrícolas, ou a redução de mercados e investidores. Também estão preocupados com tudo o que corremos o risco de perder: a diversidade de povos, a biodiversidade que eles asseguram, a floresta, a própria honra do país.
 

Não é só isso. Os mundos, os modos de vida, os saberes dos povos tradicionais são preciosos. Eles podem nos inspirar na tarefa de repensarmos nossa relação com o planeta. Muitos desses povos consideram que os humanos não detêm direitos exclusivos nem soberanos sobre seus territórios e que cada ser com o qual compartilham a terra, seja ele planta ou animal, também tem direitos que precisam ser respeitados.
 

Há 32 anos, uma Constituição nova traduziu a esperança de um país mais justo. Agro não é tudo. Está na hora de chegar a uma conciliação e pacificar as relações entre os vários povos que compartilham o Brasil.
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[1] Desde maio de 2020, uma decisão liminar do ministro Edson Fachin resultou na suspensão do parecer 001 da AGU, mas o julgamento plenário do STF sobre o marco temporal, previsto para final de outubro do ano passado, ainda não havia sido remarcado até o momento em que finalizei este texto.



MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
Antropóloga, professora titular aposentada da USP e professora emérita da Universidade de Chicago

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