sábado, 12 de dezembro de 2020

Gertrud, a liberdade e a solidão

Acredito nos prazeres carnais e na solidão irremediável da alma

Gertrud,  filme que Carl Theodor Dreyer (1889-1968) fez em 1964, é uma obra prima. Repete outra feita em 1928: O martírio de Joana D'Arc, a melhor versão sobre Joana D'Arc que já vi. Neste predomina a imagem. Em Gertrud, além da imagem predomina o texto. O roteiro de Hjalmar Söderberg e Dreyer é bonito de doer. A beleza estonteante da narrativa de uma mulher e suas desilusões amorosas. Gertrud não aceita o papel de figurante em suas três relações narradas no filme. Persegue sempre a  liberdade. Termina só. Para ela o amor é tudo, mas a solidão é o absoluto, o que prevalece. 

A estória do filme se passa no final do século XIX, no mesmo período em que viveu Ibsen da peça Casa das bonecas. Ibsen da Noruega, Dreyer da Dinamarca. Na peça, Nora, é uma figurante perante o marido, uma boneca manipulada em nome da família. No final ela chuta o balde e abandona marido e filhos. Optou por ser mulher e não apenas mãe e esposa. A cena final da peça tem muitas semelhanças com os finais dos casos amorosos de Gertrud. Em comum a busca pela liberdade.

Em homenagem a Gertrud, reproduzo aqui o texto desta obra prima de Dreyer.

Gertrud, 1964, direção: Carl Theodor Dreyer, roteiro: Hjalmar Söderberg e Dreyer

Gertrud e Gustav, o começo do fim

Gustav Kanning: Gertrud, Gertrud. Ainda está aqui?

Gertrud: Ia sair agora. Vai ao sindicato esta noite?

Gustav: Sim. Há uma reunião da direção.

Gertrud: Irei à ópera, como sempre.

Gustav: O que estão apresentando?

Gertrud: Fidélio.

 Gustav: Venha. Vamos conversar. Tenho que te dizer algo.

Gertrud: Sim?

Gustav: Mamãe esteve aqui hoje?

Gertrud: Não.

 Gustav: Tem que pegar seu pagamento mensal.

 Gertrud: Isso é o que queria me dizer?

 Gustav: Não. Venha. Sente-se. Diga-me, Gertrud. Você gostaria de ser a esposa de um ministro?

 Gertrud: Com que ministro quer que me case?

 Gustav: Com o Ministro Kanning.

 Gertrud: Ah, essa era a notícia.Isso significa que vão te nomear Ministro?

 Gustav: Sim.

 Gertrud: Mas você não é partidário do governo.

 Gustav: Sim, mas uma voz crítica não fará mal ao governo.

 Gertrud: E você seria essa voz crítica.

 Gustav: Ao vir, me encontrei com esse novo gênio da música,Erhard Jansson. É assim?

 Gertrud: Erland Jansson. Suponho que se refere a ele.

Gustav: Sim. Erland Jansson. É verdade que é um gênio?

Gertrud: É isso o que dizem.

Gustav: E qual é a sua opinião? Entende de música. Sabe quem eu também vi?

Gertrud: Não.

Gustav: Gabriel Lidman. Não queria ferir seus sentimentos.

Gertrud: Eu sei.

Gustav: O convidei a vir à minha casa.

Gertrud: Aceitou?

Gustav: Sim, ao menos disse isso.

Gertrud: Faz tempo que partiu.

Gustav: Sim, dois anos.

Gertrud: Três.

 Gustav: Aqui há algumas cartas.São faturas, suponho.

 Gertrud: Obrigada.

 Gustav: Há uma foto de Lidman no jornal.

 Gertrud: Deixe-me ver. Ainda é igual.

 Gustav: Sim, não mudou. 

Gertrud: Disse que você lerá o discurso?

Gustav: Ele sabia.

Gertrud: Será agradável lhe ver de novo.

Gustav: Por que rompeu com ele?

Gertrud: Não falemos disso.

Gustav: Não. Não, esse capítulo de sua vida já está esquecido. Disse que tudo tinha acabadoe acredito em você. Sua relação com o Gabriel Lidman não é de minha incumbência.Foi uma mulher livree independente. Você foi artista e ele um famoso poeta. A situação era muito diferente.


Gertrud: Sim?

Gustav: Naturalmente. Do que ri?

Gertrud: Só estou sorrindo. Sorrio ao pensar em toda essas pobres pessoas que se amam, apesar de não serem nem artistas nem famosos.

Gustav: Viu minha carteira?

Gertrud: Sim. Está no saguão.

Gustav: Obrigado.

Gustav: Como é bela, Gertrud.

Gertrud: Gabriel Lidman me deu esse espelho. Disse para pendurá-lo em meu quarto, para que visse algo belo ao acordar. É curioso.

Gustav: Sim, eu sei.

Gertrud: Depois você me deu de presente um, menor, e pus seu espelho em seu salão.

Gustav: Deixe-me te beijar, Gertrud. 

Gustav: Anoitecerá em breve.

Gertrud: É melhor eu ir embora.

Gustav: Procuro sua boca e você me dá a bochecha. Faz um mês que não entro em seu quarto. Antes sempre era bem-vindo. Muitas noites não durmo pensando em você. Possivelmente esteja apaixonada por outro homem.

Gustav: Deve ser mamãe.

Kanning’s mother: Boa tarde. Boa tarde, Gustav.

Gustav: Boa tarde, mamãe.

Mother: Que escadas... Boa tarde, Gertrud

Gertrud: Boa tarde.

Gustav: Venha. Sim, sente-se.

Mother: Obrigada.

Gustav: Chegou tarde.

Mother: Dormi lendo um livro. Ainda gosto de ler.

Gustav: Que livro lia?

Mother: Esqueci, realmente não lembro.

Gustav: Quem escreveu?

Mother: Não me lembro, mas era muito bem escrito.

Gertrud: Do que tratava?

Mother: Não sei. Não entendo os livros que escrevem agora.

Gertrud: Quer chá?

Mother: Obrigada, prefiro um Porto.

Gertrud: Será um prazer.

Mother: Obrigada.


Mother: A doce Gertrud. Tão bem se comporta contigo.

Gustav: Claro.

Mother: Digo isso a todos.

Gustav: Alguém te pergunta sobre isso?

Mother: Ninguém pergunta. Mas as pessoas são curiosas. Mas desde que se casaram, sua conduta foi irrepreensível. Ao menos até o momento. E essa velha história entre ela e...

Gustav: Lidman.

Mother: Lidman, sim. Aquilo foram só fofocas.

Gustav: É obvio.

Mother: Sim. Falando de outra coisa, dizem que será Ministro.

Gustav: Dizem tantas coisas...

Mother: Quanto ganhará no ano?

Gustav: Terei que sacrificar-me pelo país.

Mother: Tolices. Vai se arrepender. Lembre-se de seu pai e de tudo pelo que se sacrificou. E o que conseguiu? Condecorações. Não, Gustav, ocupe-se de seu escritório e se esqueça do país. Esse é meu conselho.

Gustav: Mamãe, se chegar a Ministro será por satisfação própria.

Mother: E Gertrud irá ao baile, verdade?

Gustav: Isso sempre será assim.

Empregada: Aqui está o porto

Gustav: Obrigado.

Gustav: Aqui está.

Mother: Obrigada.

Gustav: Saúde.

Mother: O que acha de ser a esposa de um Ministro?

Gertrud: Não sei, ainda não é definitivo.

Gustav: O Primeiro-Ministro te chamará às 5.

Gustav: Vou dar seu dinheiro antes que me esqueça. Aqui está.

Gertrud: Pode despedir-se de sua mãe? Tenho que falar contigo.

Gustav: Mamãe, tenho uma reunião e Gertrud tem de sair.

Mother: Sim, são 4 e meia da tarde e também tenho o que fazer.

Gustav: Tome, não se esqueça do dinheiro.

Mother: Obrigada. Adeus, Gustav.

Gustav: Adeus, mamãe.

Mother: Adeus, pequena Gertrud.

Gertrud: Adeus, sogra.

Gustav: O que queria dizer?

Gertrud: Tinha de ter contado isso há muito tempo. Não posso atrasar o assunto. Sei que vou ferir seus sentimentos. Gustav, não vou ser a esposa do Ministro.

Gustav: O que disse?

Gertrud: Já não quero ser sua esposa.

Gustav: Gertrud, o que quer dizer?

Gertrud: Lembra-se do que disse ao me dar a aliança? Se um dia um dos dois quiser ser livre, o outro não deve impedir. Lembra-se?

Gustav: Sim, lembro.

Gertrud: Então, aquelas palavras doeram-me um pouco. Queria que estivéssemos juntos toda a vida. Quando compreendi que me queria, disse que seria tua. Nunca esquecerei esse dia.

Gustav: E agora quer me deixar? Gertrud, não entendo nada.

Gertrud: Oh, Gustav. Agora as coisas são diferentes. Inclusive nós mudamos.

Gustav: Eu ainda te amo, Gertrud.

Gertrud: Amor... sim, que grande palavra. Ama muitas coisas. Ama o poder, a honra, ama a si mesmo, sua inteligência, seus livros, seus charutos cubanos... Não duvido que a mim também amou alguma vez.


Gustav: Como pode dizer isso?

Gertrud: Bem... Quando estamos aqui sozinhos, de noite, passa horas com o olhar perdido, sem dizer uma só palavra.

Gustav: Tenho que pensar em muitas coisas.

Gertrud: Coisas?

Gustav: Sim, meus assuntos, meu trabalho.

Gertrud: Seu trabalho?

Gustav: Sim, como sempre.

Gertrud: Você só pensa em seu trabalho.

Gustav: Acha que sou indiferente?

Gertrud: É pior que isso. Falta-te sentimento. A mulher ama o seu marido acima de tudo, mas para ele, o mais importante é o trabalho.

Gustav: E não é o natural?

Gertrud: Claro, o natural no homem é trabalhar, criar. Mas o trabalho não deve fazer esquecer a sua mulher. Frequentemente me parece que não tenho marido, como se eu não existisse para você.

Gustav: Tem alguma coisa a mais a reprovar?

Gertrud: Que você, de uma forma muito humilhante, mostra o quão pouco significo para você. Como se eu não fosse nada para você. Não importam meus desejos ou pensamentos. Não te interessa absolutamente se eu estou triste ou feliz.

Gustav: Então você me critica porque me entrego ao trabalho.

Gertrud: O homem com quem estou deve ser inteiramente meu. Devo prevalecer acima de tudo. Não quero ser algo circunstancial.

Gustav: Escute, Gertrud, o amor não é suficiente para encher a vida de um homem. Isso seria ridículo.

Gertrud: Pode ser que seja, mas isso demonstra a pouca importância que tenho e o insignificante vazio que você terá quando eu partir.

Gustav: Gertrud, o que está escondendo de mim? Há outro homem?

Gertrud: Invente uma desculpa se quiser.

Gustav: Então admite.

Gertrud: Sim.

Gustav: Entregou-se?

Gertrud: Não.

Gustav: Mas acontecerá? Gertrud, está me deixando louco.

Gertrud: Oh, não. Não nasceu a mulher capaz de te enlouquecer. Sabe muito bem.


Gustav: Diga-me quem é.

Gertrud: Não posso responder isso.

Gustav: Ele quer casar-se contigo?

Gertrud: Voltarei a cantar e a dar valor a mim mesma.

Gustav: Gertrud! Quem é?

Gertrud: Só posso te dizer que não é de nosso círculo social.

Gustav: Onde o conheceu? Gertrud! Partirá para sempre?

Gertrud: Não, querido, mas pensei que já devia te dizer isso. Falaremos disto com mais detalhes, em outro momento. Amanhã iremos ao banquete.

Gustav: Explique-me como ocorreu. Será mais fácil se chegar a entender.

Gertrud: Nem sequer eu mesma sou capaz de entender. Só sei que, estou muito apaixonada.

Gustav: Não foi difícil para você me dizer tudo isto. É como se tivesse se despedido de um trabalho.

Gertrud: Sofri dia e noite, não sabia como te dizer.

Gustav: Gertrud! tudo isso é inaceitável.

Gertrud: Aceitou muito melhor do que eu pensava. Foi mais fácil do que acreditava.

Gustav: Aonde vai agora?

Gertrud: Já te disse. Esta noite vou à ópera. Adeus, Gustav.

Erland, a esperança


Gertrud: Esperou muito?

Erland Jansson: Sim, muito.

Gertrud: Perdoe-me, meu amor.

Erland: Tentarei.

Gertrud: Me ama? Diga-me isso.

Erland: Eu te amo.

Gertrud: Diga outra vez. Eu te amo.

Erland: Eu te amo. Mas temos que falar seriamente. O que significo para você?

É melhor que siga seu caminho, nunca poderei ser seu.

Gertrud: Você é tudo para mim. Minha alegria e minha tristeza.

Erland: Tristeza?

Gertrud: Sim. Para mim é triste te amar assim, sem poder te compreender.

Erland Jansson: Para ti só sou um capricho. Enviou-me rosas.

Gertrud: Foi depois de seu primeiro concerto. Duas rosas e uma nota, mas não recebi resposta nem deu obrigado.

Erland: Recebi mais rosas.

Gertrud: E quando nos vimos... Lembra-se de nosso primeiro beijo?

Erland: Lembrança de muitos beijos, uma chuva de beijos, beijos que penetraram até os ossos, que me deixaram sem fôlego.

Gertrud: Não podia deixar de pensar em ti. Te amei desde que

te vi no concerto.

Erland: Quando te peço que seja minha, rechaça-me e, entretanto, diz que sou tudo para você.

Gertrud: E é. E sabe como chegou a ser? Ainda não tinha escutado sua voz. Tinha que ouvi-la para ter certeza de que te amava. E um dia fui te ver. Pergunto-me como tive audácia.

Erland: Sorte que estava em casa.

Gertrud: Sim?

Erland: Entre.


Erland: Cantou muito bem. É como se fosse uma canção nova.

Erland: Estou cansado. Estive na farra a noite toda.

Gertrud: Como sempre. O que é necessário para ser artista?

Erland: Não sei. Só sei que eu gosto. Fomos uns quantos. Fomos a um botequim

e jogamos cartas com jogadores profissionais. Deixaram-nos sem dinheiro. Eram dois homens muito simpáticos.

Gertrud: Você também jogou?

Erland: Estava meio sonolento. Estava trabalhando em um tema. Ainda o tenho na cabeça. Poderia fazer uma sinfonia.

Gertrud: Não deve tresnoitar tanto. Isso irá te destruir. Esta noite ficará em casa, não?

Erland: Fui convidado a uma festa.

Gertrud: De quem?

Erland: De um conhecido. Pôs sua garota em um apartamento. Chama-se Constance. Vão inaugurar esta noite e quero ir.

Gertrud: Não vá.Erland: Por que não? 

Gertrud: Porque estou te pedindo.

Erland: Eu também te pedi coisas que não me deu.

Gertrud: Erland, dentro de ti há música. Poderia se destacar entre os outros. Mas tal como vive morrerá, antes do que pensa. Sua inspiração morrerá contigo em um botequim. Erland, não deixe que isso aconteça. Rogo-lhe isso como se suplicasse por minha vida. Não vá.

Erland: Vivo a vida como quero. Levo-a no sangue. Iria, embora te promete ficar em casa.

Gertrud: Então é melhor que não prometa nada.

 Erland: Levo uma vida intensa, eu gosto. E amanhã volto. Gabriel Lidman voltou

e terá que celebrar sua chegada. Amanhã faz 50 anos. Como se fosse uma façanha

fazer 50 anos!

Gertrud: Eu também irei, nos veremos lá.

Erland: Seu marido também irá?

Gertrud: Sim.

Erland: O político. Agora vai ser Ministro. Não sei como tem vontade.

Gertrud: O que quer dizer com isso? Não o conhece.

Erland: Perdão.

Gertrud: Erland... Tive com ele uma longa conversa. Por isso tenho feito você esperar. Me liberei. Agora posso ser eu mesma.

Erland: Quer dizer que você...?

Gertrud: Sim. Disse que nunca poderia ser tua mas Erland, sim, posso. A partir de agora serei completamente sua. Ontem à noite tive um sonho.

 Erland: O que sonhou?

 
Gertrud: Que corria nua perseguida por uma matilha de cães. Quando me alcançaram,

acordei. E compreendi que estávamos sozinhos no mundo.

Gertrud: Dê-me sua boca. Sua maravilhosa boca.

Erland: Aonde quer ir?

Gertrud: À sua casa. Venha.


Erland: Gertrud... virá? Quero dizer que, se...

Gertrud: Shh... Erland!  Te amo, Erland. Se me perguntar se irei,

eu responderei: "Sim, Erland, irei. Porque confio em você."

Erland: Me ama o suficiente?

Gertrud: Nunca poderia amar outro, nunca, a não ser a ti. Não poderia imaginar minha vida sem ser contigo.

Erland: Que mulher estranha. Quem é, realmente?

Gertrud: Sou muitas coisas.

Erland: Por exemplo?

Gertrud: Sou o orvalho da manhã, que cai das folhas das árvores. E uma nuvem branca que voa para um lugar longínquo.

Erland: Que mais?

Gertrud: Sou a Lua. Sou o céu.

Erland: Algo mais?

Gertrud: Sim. Uma boca. Uma boca que procura outra boca.

Erland: Isso parece um sonho.

Gertrud: É um sonho. A vida é um sonho.

Erland: A vida?

Gertrud: Sim. A vida, Erland, é uma larga cadeia de sonhos que se encontram um após o outro.

Erland: E o que diz da boca?

Gertrud: Um sonho.

Erland: E a boca que procurava?

Gertrud: Também um sonho.

.

Gertrud: Toque.

 Erland: O que quer que toque?

Gertrud: Um noturno.

 Erland: Debussy?

Gertrud: Não, o seu.

Gustav (em off): Enquanto voltava do sindicato pensei muito em tudo isso. Há pessoas que passam toda sua vida sonhando, enquanto outras transbordam atividade. A vida nos escapa, lentamente e sem remédio. Dá na mesma como a vivemos. Pensava no que mais quero no mundo. Escapa-me das mãos sem compreender por que nem como tinha acontecido. Isso me fez lembrar de dois versos: "Guarda bem o tesouro que Deus te entregou, e não o deixe escapar." Nunca cuidamos o suficiente daquilo que não queríamos perder." Queria ver minha mulher. Queria passear com ela pela rua, com seu braço no meu, como fizemos muitas vezes quando fomos felizes. Então pensei em ir para vê-la na ópera.

Funcionário do teatro: Posso ajudar em algo, senhor?

Gustav: Vim pegar minha mulher. Talvez já tenha saído.

Funcionário do teatro: A Sra. Kanning não veio esta noite. 

Gustav: Certeza?

Funcionário do teatro: Sim, estive aqui toda a noite.

Gustav: Conhece minha mulher?

Funcionário do teatro: Claro que conheço a Sra. Kanning. Cantou aqui.

Gertrud: Oh, Erland. Aqui, contigo, sinto-me viva outra vez. Não sei como lhe dizer quão feliz sou.

Erland: Voltou a ser você mesma?

Gertrud: Sim. Agora viveremos juntos.


Erland: Acha que poderíamos viver juntos?

 Gertrud: Te amo. Oh, Erland, todo meu amor é para você.

 Erland: Gertrud.

 Gertrud: Erland?

Erland: Sim.

Gertrud: Não acredito que vá agora festa de Constance.

Erland: Em Florabakken.

Gabriel Lidman, o poeta heroi

Estudante: Querido Gabriel Lidman. Viemos em nome dos estudantes e da juventude para aclamar o grande poeta do amor. A maioria dos jovens foram educados por pais que se casaram na igreja e levaram uma vida vulgar. Você sempre rechaçou o conceito que tinham as anteriores gerações da sexualidade como algo sórdido e simples. Sua doutrina nos diz que o verdadeiro amor só se concebe com a união do coração e da mente. Seus hinos ao amor descrevem duas pessoas totalmente devotas a uma à outra em sua entrega amorosa, unidas por sua paixão e ternura. Permita-me citar alguns versos: “Não apartou sua boca, Se uniram mais profundamente. Sentiu como se viajasse pelo espaço. Na branca luz lunar, brilhava uma estrela vermelha, primeiro tenuemente, mais forte depois. Crescendo até converter-se em um fogo flamejante. Ele se queimou sem sofrer, e as chamas tragaram sua língua como um vinho amargo." Chegamos à eternidade e ao infinito em um êxtase erótico. Esta é a grandeza de seu conceito do erotismo. O amor sem limites. Segundo essa ideia, o homem foi criado para esse amor.

Gabriel Lidman: Há duas coisas primitivas segundo meu critério e que são muito mais importantes que as demais: essas duas coisas são o pensamento e o amor. Falamos sobre o amor. Quanto ao pensamento, temos que ter o valor de pensar com justiça, porque isso nos conduz para a verdade, e a verdade é a única que tem valor. Terá que refletir para se chegar à verdade, à pura verdade, sem prejuízos. Na busca desta verdade, terá que ser fiel às pessoas e nunca se comprometer. E ser valente para ter bons pensamentos. Recordemos as palavras do filósofo francês: "Uma alma sincera não necessita esconder seus pensamentos."

Gustav: Muitíssimo ilustre Reitor. Damas e cavalheiros. É para mim uma grande honra poder falar esta noite de meu velho amigo, Gabriel Lidman. Gabriel Lidman é o aristocrata de nossos poetas. Distingue-se por sua honestidade, no pequeno e no grande. Rechaça a mediocridade embora a oculte sob uma fachada de nobreza. Tem a grande característica de comportar-se com uma grande suavidade. Fala tão sossegadamente, que te obriga a escutar. Mas nunca resulta patético.

Participante da solenidade à Gertrud: Tudo bem? Possivelmente o calor a esteja afetando.

Gustav (continuando): Às vezes irônico, mas não corrosivo, não emprega uma ironia mordaz. Adora o silêncio, sua fonte de inspiração é o silêncio. Lidman cultiva a concisão como estilo artístico. Nunca escreve uma palavra a mais. Cada sentença está bem considerada e é afiada como uma navalha. Dispensa o discurso impreciso, o sentimentalismo, o falso patetismo e a vulgaridade.

 Participante com Gertud numa sala ao lado: Pode se sentar aqui sem ser incomodada. Prefere que fechemos a porta?

Gertud: Sim, por favor, feche.

Participante: O professor Nygren deseja ver a Sra. Kanning.

Axel, o amigo

Gertud: Você por aqui, Axel?

Axel: Sim.

Gertud: Achei que estivesse em Paris.

Axel: Sim, estava, mas vim à comemoração a Lidman.

Gertud: Foi muito amável vir me ver.

Axel: Sim, ouvi que tinha dor de cabeça. Tenho umas pílulas estupendas, tiram a dor de cabeça por mais forte que seja.

Gertud: Do que são?

Axel: Um componente especial.

Gertud: De Paris? Sim, todos de Paris as conhecem.

Axel: Poderia nos trazer um copo com água?

Gertud: Acho que você deveria voltar pra festa.

Axel: Tudo bem?

Gertud: Já me sinto melhor. Axel, me alegro de te ver outra vez. Não mudou nada.

Axel: Você tampouco. Está esplêndida

Gertud: A última vez que nos vimos escrevia um livro.

Axel: Sobre o livre arbítrio. Ainda estou escrevendo.

Gertud: Alegra-me que ainda acredite nisso. Meu pai era um grande fatalista. Dizia-me que tudo está predeterminado na vida. Lembro do que você dizia: querer é escolher. Mas meu pai dizia que isso não é possível. A gente não escolhe, dizia, nem sua mulher nem seus filhos. Nos são atribuídos, mas não os escolhe. O destino determina tudo.

Axel: Então já conhece seu destino.

Gertud: Obrigada. Sim, escolherei meus maridos.

Axel: No plural?

Gertud: Sim. Você mora em Paris. O que faz lá?

Axel: Estudo.

Gertud: Psicologia?

Axel: Sim, e Psiquiatria. São campos complementares.

Gertud: Deve ser interessante.

Axel: Sim. Somos um grupo. Reunimo-nos todas as noites.

Gertud: O que fazem?

Axel: Hipnotizamo-nos uns aos outros, experimentamos a telepatia, e encontramos uma mulher com um sexto sentido. Às vezes temos enfrentamentos e discutimos.

Gertud: Sobre o quê?

Axel: Sobre muitos temas. Psicose, neurose, sonhos, símbolos...

Gertud: Como te invejo.

Axel: Venha me ver em Paris e participe. Vai gostar.

Gertud: Tenho certeza, mas... Isso... Esse é o sonho que tive ontem à noite.


Gertud: O advogado Kanning terminou seu discurso, chegará aqui em breve. Foi um prazer

te ver de novo, Axel. Que pena que tenha de ir tão cedo.

Gustav: Como está, Gertrud? Seu aspecto melhorou.

Gertud: Já me sinto muito melhor, graças a uma pílula que Axel me deu.

Gustav: Obrigado, Axel

Axel: O que importa é que serviu de ajuda. Adeus.

Gertud: Adeus, Axel. Espero te ver logo novamente.

Gustav: Gertrud, tenho que falar contigo, e não posso esperar. Ontem à noite sua porta estava fechada.

Gertud: Precisava dormir.

Gustav: Isso é impossível.

Gertud: Por quê?

Gustav: Peguei um carro e fui te buscar na ópera.

Gertud: Esteve na ópera?

Gustav o insistente

Gustav: Isso não é o que me preocupa. O que quero saber é se esteve na ópera. Esteve? Não diz nada. Sabe por quê? Porque não quer mentir. Na realidade, não esteve na ópera. Nem em casa.

Gertud: Gustav, é necessário falar disso?

Gustav: Sim. Para que saiba de uma coisa: não fui à ópera para te vigiar, mas porque estava desesperado. Desesperado porque quer me abandonar.

Gertud: Por favor, não falemos mais disso.

Gustav: Responda-me, Gertrud. Onde esteve ontem?

Gertud: Gustav, depois da nossa conversa de ontem, deve compreender que essa pergunta é absurda.

Gustav: Sou seu marido, Gertrud. Ainda sou seu marido.

Gertud: Não te reconheço. É você quem me fala assim?

Gustav: Ontem, quando mentiu ao dizer que foi à ópera, foi consciente do que fazia?

Gertud: Sim, sabia o que fazia, era consciente. Se menti foi por não querer te causar mais dor. Não por covardia ou traição. Sabe que eu sou sincera.

Gustav: Sim, entendo. Nenhuma mulher deveria ser tão sincera. Mas não deixarei que vá, pode ter certeza.

Gertud: Pensa em me prender? Seja razoável.

Gustav: Estará comigo esta noite. Nossa última noite. Logo poderá ir aonde queira. Inclusive poderá cair na desonra, se esse for seu desejo.

Gertud: Não sabe o que diz, Gustav. Vou descansar. Adeus.


Gabriel Lidman: Está aí? Como está Gertrud?

Gustav: Sentia-se mal, mas já está melhor. Mas falemos de você. Como se sente estando de novo em casa?

Gabriel: Minha terra não está tão ruim, embora tudo tenha mudado nestes anos, mas as pessoas não mudaram, Kanning. As pessoas seguem sendo as mesmas. Ontem à noite estive com más companhias. Mas a companhia não tem muita importância. Estava ali para me divertir, embora fosse entre desconhecidos. Do que falávamos? Ah sim. Quero voltar para Roma. Lá me sinto mais confortável. Ouvi que vai ser Ministro.

Gustav: Isso é o que dizem, o que dizem os jornais.

Gabriel: Por que não? Sempre terá que acreditar em algo.

Funcionário: Advogado Kanning, o reitor deseja falar com você. Já vou.

Gabriel: Venha, sente-se aqui. Continua muito jovem, parece uma recém-casada.

Gertud: Aconteceu algo? Não parece contente.

Gabriel: Ontem à noite estive em más companhias, mas esqueçamos isso. Este mundo não é mais que um trânsito, não significa nada.


Gertud: Você costumava falar sobre os seus trabalhos na vida. Antes esperava tudo da vida, agora diz que o mundo nada significa. O que aconteceu, Gabriel?

Gabriel: De repente me sinto velho. Pode me dizer, Gertrud, por que voltei?


Gertud: Ia te fazer a mesma pergunta.

Gabriel: Tinha um pouco de nostalgia, sobretudo por uma rua, uma rua pela qual passava frequentemente. Um dia, na primavera, passeava pela rua e chorei.

Gertud: Sim, eu também chorei. Muito. Não é tão ruim assim. Falemos de coisas mais agradáveis. Você se tornou um vitorioso.

Gabriel: Vitorioso? Acho que não estamos falando da mesma pessoa. Perdi a única batalha que me importava na vida. Gertrud, Por que me abandonou? É melhor que não falemos disso. Dizia que ontem à noite estive com más companhias. Almocei com um velho amigo da escola e alguém me convidou pra uma festa na casa de sua noiva, Constance.

Gertud: Em Florabakken.

Gabriel: Como sabe?

Gertud: Oh, ouvi falar dela. A cidade não é tão grande.

Gabriel: Eu fui. Homens mais cultos que eu se sentaram na mesa das cortesãs.

Gertud: Bem, e o que aconteceu? Despertou minha curiosidade.

Gabriel: O que tocam? O que estamos escutando agora?

Gertud: "O Canto da Noite", de Erland Jansson.

Gabriel: Sim, já ouvi quando estava em Roma. Senti uma imensa emoção quando

soube que era um compatriota. É uma bela melodia.

Gertud: Sim. É muito bonita. Erland Jansson não ia tocar aqui esta noite?

Gabriel: Disseram, mas não importa, não me cai muito bem.

Gertud: Conhece-o?

Gabriel: Sim, por desgraça. Preferiria não conhecê-lo.

Gertud: Onde o conheceu? Eu também o conheço.

Gabriel: Gertrud, Gertrud... Por que me abandonou?

Gertud: Um momento, não mudemos outra vez de assunto. Queria falar da festa de ontem à noite.

Gabriel: Ontem à noite conheci Erland Jansson. Chegou tarde. Era um dos convidados.

Gertud: Ah, sim? Você tampouco despreza as cortesãs. Ele também pode fazer, não?

Gabriel: Certamente, mas não me parece. Alardeia de coisas que outros guardam para si mesmos.

Gertud: Por exemplo?

Gabriel: Gaba-se de suas amantes.

Gertud: Sim, isso não é bom.

Gabriel: Não. Diante daquelas pessoas, naquele ambiente de álcool, jogo e prostitutas, falou em voz alta de sua última conquista. Inclusive disse seu nome. O nome de sua amada. Gertrud, fiz mal em te contar isso?

Gertud: Não sei. Não o entendo. Não. Dá no mesmo.

Gabriel: Tinha que te dizer isso, Gertrud. Era necessário.

Gertud: Sim, era necessário. Oh, Gabriel! Me ajude a entender tudo isto.

Gabriel: Eu também não compreendo. Só compreendo o que eu fiz. É algo difícil de entender.

Gertud: Devia estar transtornado.

Gabriel: Bom, não acredito que foi isso, mas estava bêbado, e é muito jovem.

Gertud: Sim, é muito jovem.

Gabriel: E pertence a outro ambiente.

Gertud: Sim, sim.

Gabriel: Gertrud, vai romper com ele por isso?

Gertud: Eu o quero.

Gabriel: Mas é uma loucura, Gertrud.

Gertud: Sim.

Gabriel: Você é quem decide, ninguém pode te aconselhar?

Gertud: Não. Eu já sabia que era uma loucura, mas tinha tão pouco a perder, Gabriel. Havia um enorme vazio na minha vida e eu me sentia tão sozinha.

Gabriel: Ontem à noite minha vida ficou em pedaços. Quando vê que a pessoa que mais amava, quando vê seu nome no chão por causa de um jovem imprudente, de repente começa a se sentir velho. Gertrud, por que tivemos a desgraça de nos encontrarmos assim? As coisas nunca acontecem como imaginamos.

Gertud: Então como imaginava, Gabriel? (Gabriel chorando) Oh, Gabriel! Gabriel, não tome as dores. Não. Não vá. Por favor, não vá.

Gustav: Gertrud, o reitor me disse que esperava te ouvir cantar esta noite.

Gertud: E o que você disse?

Gustav: Disse que tentaria te convencer para que cantasse mas que não prometia nada.

Gertud: Bem, não me importo em cantar. Mas onde cantarei?

Gustav: Aqui mesmo.

Gertud: E quem fará o acompanhamento?

Gustav: O Sr. Erland Jansson fará.

Erland: Mas aqui não há piano.

Gustav: Está lá dentro. Tomarei conta disso.

Erland, a decepção


Erland
: Demorará muito?

Gertud: Só uns minutos.

Erland: Não pude vir antes. Não está com uma boa cara.

Gertud: Eu sei, mas tinha de falar contigo.

Erland: Ontem à noite estava muito mal, fiquei preocupado.

Gertud: Estava esgotada, tinha tido uma discussão com meu marido.

Erland: Ficou violento?

Gertud: Como pode pensar isso?

Erland: Ele te quer, se sentirá mal se abandoná-lo.

Gertud: A maldade não faz parte de sua natureza.

Erland: Bom, apenas o conheço. Me pareceu simpático.Por que ele não te agrada?

Por que quer se divorciar? Poderíamos ser bons amigos.

Gertud: Erland, tenho de ir. Por isso queria te ver.

Erland: Então veio aqui para se despedir?

Gertud: Isso depende de você.

Erland: O que quer dizer?

Gertud: Erland, venha comigo.

Erland: Isso é impossível, Gertrud.

Gertud: É porque não tem dinheiro?

Erland: Isso.

Gertud: Mas tenho o suficiente para começar.

Erland: Veria-me obrigado a viver de seu dinheiro?

Gertud: Sim.

Erland: Desprezaria-me.

Gertud: Então não sabe o que significa o amor, Erland.

Erland: Eu mesmo me desprezaria.

Gertud: Às vezes já faz.

Erland: Sim. Não posso desprezar a mim mesmo se fizer o que devo. Tenho que confessar que fui a Florabakken, à festa de Constance. Precisava ir.

Gertud: Sim, precisava... Sim. Precisar... Uma palavra que explica tudo. Erland... É só o dinheiro o que te impede de vir comigo?

Erland: Gertrud, eu... Tenho de raciocinar.

Gertud: Disse que para nos amarmos não era preciso que me divorciasse. Não é justo.

Erland: Não entendo. Isso não era o que pensava no outro dia.

Gertud: Oh, Erland! Quando falaremos o mesmo idioma? Erland, meu amor, venha comigo. Não precisamos nos casar. Apenas vivermos juntos. Eu te amo. Venha comigo. E quando já não me quiser, poderá me deixar.

 Erland: E depois? Depois?

Gertud: Depois já nada importará.

Erland: Gertrud, não posso ir contigo. Não sou livre.

Gertud: Diz que não é livre?

Erland: Sim. Ela é mais velha do que eu. Ajudou-me muito quando precisei. Não posso abandoná-la. Além disso, está grávida.

Gertud: Nunca me disse nada disso.

Erland: Não pensava que o nosso caso fosse tão sério.

Gertud: Então o que pensava?

Erland: Pensava que só queria uma pequena aventura.

Gertud: E agora a aventura terminou.

Erland: Odeia-me por isso?

Gertud: Te amo, mas sei que terminou. Eu partirei e você se casará.

 Erland: Gertrud, venha comigo.

 Gertud: Aonde?

 Erland: Pra minha casa.

 Gertud: Te quero, mas você não me quer. Já não te pertenço.

Erland: Está bem. Não, não te amo. Se te amasse iria contigo sem pensar um instante. Sim, sonho com uma mulher, mas essa mulher não é você. Ela seria inocente e pura. Obedeceria-me e seria minha. Mas você é muito orgulhosa. Achei que fosse orgulho de uma dama, mas é pior que isso. É sua alma orgulhosa.

Gertud: Deixe-me sozinha, Erland.

Erland: Gertrud, perdão. Não podemos nos despedir assim.

Gertud: Perdoar você? Eu gostaria de acreditar em algum Deus para pedir que te proteja.

Erland: Não acredita em Deus, Gertrud?

Gertud: E você?

 Erland: Não sei. Suponho que haverá um Deus em algum lugar. Senão, na vida nada tem sentido.

 Gertud: Sim. Agora deve ir.

 Empregada: Estão te chamando no telefone.

 Gustav: Um momento, por favor.

 Gabriel: Claro.


 Gabriel, a recordação indesejada 

Gertrud: É você, Gabriel?

Gabriel: Sim. Venho te dizer adeus. Vou partir amanhã.

Gertrud: Tão cedo?

Gabriel: Sim. E você? Fica aqui?

Gertrud: Não. Eu também vou. Aqui me sinto perdida e sozinha.

Gabriel: Gertrud... você vai e eu vou. Vamos juntos. E vivamos juntos.

Gertrud: Gabriel, não sabe o que diz.

Gabriel: Não ouve nas noites de solidão como te chama meu coração? Ontem me perguntou por que voltei. Foi por você. O desejo de ouvir sua voz e voltar a te ver uma vez mais.

Gertrud: Como tudo isso é estranho.

Gabriel: Você é casada, mas pensei que talvez sentisse um vazio como eu. Nada é como alguém imagina.

Gertrud: Não. Não. Nada é como alguém imagina.

Gabriel: Gertrud. Amou alguma vez o seu marido?

Gertrud: Amar? Não sei. Estava pensando em sua crença, lembra-se?

Gabriel: Não sei de que fala.

Gertrud: As pessoas não podem lembrar-se de tudo, esta era sua crença: "Acredito nos prazeres carnais" e na solidão irremediável da alma."

Gabriel: Ah, sim. Parece um de meus poemas.

Gertrud: Eu não esqueci. Disse-me essas palavras quando acreditava que nosso sonho se

transformaria em realidade. Você acabou com meu sonho e tudo acabou entre nós.

Me refugiei nos prazeres carnais. E o resultado foi meu matrimônio.

Gabriel: Acredito. Gertrud, venha comigo.

Gertrud: Não, Gabriel. Para mim só resta a solidão.

Gabriel: Então rompeu com esse tal Erland Jansson?

Gertrud: Sim. Para ele não sou nada.

Gabriel: Gertrud. Venha comigo.

Gertrud: Como acha que podemos ressuscitar algo que está morto e enterrado?

Gertrud: Venha, sente-se aqui um momento, como fazíamos antes, nos velhos tempos. Não pense que esqueci tudo o que te devo. Fez-me conhecer o estranho milagre do amor. Fez de mim uma mulher amadurecida. Entreguei a ti de corpo e alma. Fomos uma unidade indissolúvel. Nunca houve vergonha entre nós. O amor limpou todo o mal e a feiura que havia em mim. E me fez descobrir toda bondade e a beleza. Encontrei em ti o homem que queria passar o resto de minha vida. Perguntava-me se realmente merecia sentir tanta felicidade.

Gabriel: Gertrud, por que me abandonou?

Gertrud: Gabriel! De verdade acha que te deixei? Não lembra que foi você quem foi me rechaçando brandamente, pouco a pouco.

Gabriel: Nunca amei outra.

Gertrud: Acredito em você. Amava-me com todas as suas forças. Mas o que era eu para ti? Estava cansado de meu amor. Assim que me dei conta, parti.

Gabriel: Gertrud, é verdade o que diz. O trabalho te separou de mim, mas esse nunca foi meu desejo.

Gertrud: Não. Você não podia romper. Mas felizmente já fiz. Seu trabalho nos separou e a honra, a fama, o dinheiro. E todo esse tipo de coisas. O amor se converteu em uma carga para você. Queria o prazer da carne, não o amor.

Gabriel: É a terrível verdade.

Gertrud: Eu já notava algo. Te direi quando soube com certeza. Foi quando fiquei muito tempo sem ter publicado nada. Uma época difícil. Também para mim. Um dia fui te ver. E como estava acostumada a fazer, pus um pouco de ordem. Queria te deixar um bilhete. Tinha um pouco de papel para escrever suas notas. Vi que tinha desenhado meu perfil e escrito umas palavras. "O amor da mulher e o trabalho do homem são inimigos desde o começo." Assim foi como tive a certeza.


Gabriel: Aquele pedaço de papel foi o que destroçou minha vida.

Gertrud: Destroçar? Alcançou o que tinha proposto.

Gabriel: Não consegui nada.

Gertrud: Não, mas teve de escolher. E as pessoas sempre perdem as coisas que mais as encantam.

 Gabriel: Sempre.

 Gertrud: Quando me dei conta de tudo, meu coração envelheceu. Sentia-me envergonhada e enojada de ser mulher. Compreendi que um homem que se faz famoso nunca entenderá o que é o amor. Não valoriza o amor. Despreza o amor. Isso aconteceu a todos. Agora já não te quero.

Gabriel: Gertrud. Minha vida se reduz aos 3 anos que me amou. Mas me abandonou. Como pôde fazer isso? Como pôde?

Gertrud: Sabia que te faria mal. Mas ao ler suas cartas compreendi que já tinha sofrido muito nesta vida. Fez-te famoso, mas comigo foi frio como o mármore. Eu preciso de um amor balbuciado. A fama não me serve de nada.

Gabriel: A fama não significa nada, Gertrud. A noite é profunda, o espaço é infinito, mas a terra é pequena e as pessoas minúsculas. Só lembro do amor que sentia por ti. Você me ensinou que o amor é tudo. Não devemos estar sozinhos. Eu passei muito tempo sozinho. Não faz mal. Com dois é suficiente. Gertrud... nascemos um para o outro.

Gertrud: Sim. Fazem falta dois. Enfim compreende, embora seja muito tarde.

Gabriel: Ainda não é muito tarde. Venha comigo. Viveremos perto do mar, ali nada nos separará. Só a morte.

Gertrud: Não é possível a felicidade no amor. O amor é sofrimento. O amor é infortúnio. Gabriel... há um grande vazio em seu coração. Não posso fazer nada por você. Assim, não me peça nada.

Gabriel: Era tarde. E tudo foi em vão. O epitáfio de minha vida... Em vão.

Gustav: Desculpe por ter feito esperar tanto tempo. Oh, Gertrud. Como está?

Gertrud: Muito melhor.

Gustav: Era o Ministro de Estado.

Gabriel: Tenho de ir.

Gustav: Espera. Tomemos uma taça de champanhe.

Gertrud: 374. Posso falar com o professor Axel Nygren? É você, Axel? Gertrud. Te ligo para dizer que vou à Paris. Me ajudará a me matricular na Sorbonne? Sim. Eu adoraria me unir ao grupo que me falou. Escreverei a você. Qual é o seu endereço? Número 72. Obrigada. Obrigada, Axel. Até logo.

Gustav: Saúde. Gertrud, chegou bem a tempo.

Gertrud: Champanhe?

Gustav: Sim. Aceitei o cargo de Ministro.

Gabriel: Felicidades.

Gertrud: Digo o mesmo.

Gustav: Obrigado, Gertrud. Não tem muito bom aspecto. Disse que se sentia melhor.

Gertrud: Não é nada. Só estou cansada. Deitarei logo.

Gustav: Não comeu nada o dia todo.

Gertrud: Não tenho fome.

Gustav: Como quiser.

Gustav: Bem... No final, se tornou a esposa de um Ministro.

Gertrud: Sim. Em outras circunstâncias estaria feliz. Mas isto não durará muito. Sim, Gabriel já sabe que vamos nos separar.


Gustav: Então já disse?

Gabriel: Sim. Cada um tomará seu próprio caminho. Permitam-me que me despeça.

Adeus, Kanning.

Gustav: Adeus, Lidman. Passará muito tempo antes que voltemos a nos ver.

Gabriel: Sim, acho que sim. Adeus, Gertrud.

Gertrud: Adeus, Gabriel.

Gustav, o fim

Gertrud: Boa noite, Gustav. Vou me deitar, estou cansada.

Gustav: Gertrud! Estive pensando e acho que encontrei uma solução, mas me responda primeiro. Tem certeza? Está decidida a fazer isso?

Gertrud: Já sabe que sim.

Gustav: Sim. Eu sei. Mas Gertrud, não me abandone. Fica comigo. Continue vendo o seu novo amor, se é que tanto te importa. Mas fica comigo. E vivamos juntos como bons amigos. Não peço mais.

Gertrud: Quer que eu fique porque espera que o vínculo que se quebrou volte a renascer. Não é assim?

Gustav: Sim.

Gertrud: Vou indo.

Gustav: Com seu novo amor?

Gertrud: Não, sozinha. Meu novo amor não quer vir comigo.

Gustav: Meu Deus. Está apaixonada por um homem que não quer saber de você? Perdeu o juízo.

Gertrud: Vou, mas não fujo dele. Agora preciso estar sozinha. Por isso vou partindo. Boa noite, Gustav. Estou muito cansada... muito cansada.

Gustav: Diga-me. Diga-me que me amou um dia.

Gertrud: Por que me atormenta assim? Quando nos conhecemos já não era capaz de amar. Mas meus sentidos seguiam vivos. O desejo existia. Entre nós houve um sentimento parecido com amor.

Gustav: Algo... "parecido"? Vá! Vá! Não quero mais te ver. Não quero saber mais de você!

A liberdade e a solidão


Empregado: Veio um tal Axel Nygren, diz que queria te ver.

Gertrud: Axel Nygren? Faça-o entrar.

Gertrud: Vejo que não esqueceu do meu aniversário.

Axel: Sim, vim para te dar meu novo livro. Publicarão na próxima semana.

Gertrud: É um livro precioso. Racine...

Axel: Para recordar nossos dias em Paris.

Gertrud: Obrigada, Axel. Sente-se. Sim, moro aqui, como uma ermitã, esquecida, discretamente. É o que precisava. Necessito de solidão. Solidão e liberdade.

Empregado: O jornal.

Gertrud: Lembre-se de limpar a cozinha. A cozinha, claro. Ajuda-me nas tarefas de casa.

Axel: Como passa o tempo?

Gertrud: Faço pão, lavo a roupa, tiro as medidas.

Axel: Vejo que tem um rádio.

Gertrud: Sim. Terá de saber o que acontece no mundo.

Axel: Escrevi pra você faz um tempo.

Gertrud: Sim. Sua carta está aqui, olhe.

Axel: Poderia ter me respondido.

Gertrud: Não, Axel, nunca escreva à máquina se for para uma velha amiga.

Axel: Perdoe-me. Mesmo assim continua sendo minha amiga?

Gertrud: Claro que sim, sempre tive muito carinho. E ainda é assim. Venha.

Quanto tempo passou desde que íamos juntos à aula?

Axel: Uns 30 ou 40 anos.

Gertrud: Tanto tempo durou nossa amizade?

Axel: Uma amizade que nunca chegou a ser amor.

Gertrud: Mas foi um bom amigo para mim.

Axel: Está muito bem, sua pele é tão branca e suave.

Gertrud: Um dia aparecerão as rugas e a pele ficará amarela. Sabe no que estou pensando?

Axel: Não.

Gertrud: Quer que te devolva suas cartas?

Axel: Para quê?

Gertrud: Não quero que um estranho as encontre e leia essas palavras nascidas de seu coração. Aqui estão.

Axel: Importa-se se queimá-las?

Gertrud: As cartas são suas. Faça o que quiser.

Axel: Pensou alguma vezem escrever poesia?

Gertrud: Sim. Na verdade escrevi um poema, quando tinha 16 anos. Aqui está. Posso ler? Tem três versos.

Axel: Estou ouvindo.

Gertrud: Olhe-me. Sou bela? Não, mas amei. Olhe-me. Sou jovem? Não, mas amei. Olhe-me. Estou viva? Não, mas amei. Aos 16 anos, Gertrud escreveu seu evangelho do amor.

Axel: Lembro-me do que dizia: Não há nada mais na vida exceto amor. Nada. Nada mais. Ainda mantém essas palavras? Arrependeu-se de algo?

Gertrud: Não, não me arrependo. E mantenho o que pensava. Na vida só há duas únicas coisas, a juventude e o amor, uma ternura infinita e uma felicidade aprazível, Axel. Quando tiver um pé na cova, aparecerei em meu passado e direi que sofri muito e cometi muitos enganos, mas amei

Axel: Pensa muito na morte e na cova?

Gertrud: Sim. Já comprei minha sepultura. Serei enterrada sob uma amoreira. Ontem escolhi minha lápide e já sei o que colocarei nela.

Axel: Seu nome, suponho.

Gertrud: Não, só duas palavras. Amor Omnia

Axel: O amor é tudo.

Gertrud: Sim. O amor é tudo. Disse ao jardineiro que deixe crescer as plantas. Na primavera haverá amoras. Se um dia passar por ali, pegue uma amora e pense em mim. Pense que é uma palavra de amor que foi pensada, mas não pronunciada. Será melhor que vá, ainda seríamos capazes de fugir pra Paris. Um dia esta visita tão somente será uma lembrança, uma mais entre tantas. De vez em quando revivo essas lembranças e sinto estar contemplando um fogo que se apaga.Adeus, Axel. Obrigada pela visita. E obrigada por seu livro.

Axel: Adeus, Gertrud.


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