segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Diários do pantanal

A PRIMEIRA ONÇA

O biólogo Hugo Fernandes (Professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece) com pós-doutorado em Ecologia e Phd em Zoologia)  relata dia a dia de expedição para rastrear felinos e mergulha em região do Pantanal onde a ameaça do fogo convive com um pedaço de natureza que ainda resiste. As fotos são de autoria de Hugo Fernandes

Em depoimento a Luiza Ferraz, 23/09/2020, piaui


Em meio às chamas que atingem o Pantanal, o biólogo Hugo Fernandes investiga o impacto do fogo na fauna da região e, em especial, nas onças-pintadas. Professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Fernandes está em Mato Grosso do Sul como participante da Expedição Pantanais, cujo nome faz referência às diferentes formações ecológicas dentro do bioma. O trabalho começou por uma parte do bioma que está verde – foi destruída por um incêndio no ano passado e, agora, está se recuperando aos poucos. Logo no primeiro dia, Fernandes se deparou com uma onça-pintada, muito comum por lá. A espécie, no entanto, tem sofrido com as queimadas que assolam o Pantanal. Nesses diários, escritos a pedido da piauí, Fernandes relata como tem sido seu trabalho cotidiano num dos biomas com maior biodiversidade do mundo.

Segunda-feira, 21 de setembro

Hoje é o meu primeiro dia nessa “Expedição Pantanais”, que se chama assim porque são onze pantanais – não só de formações ecológicas diferentes, mas também de situações diferentes em relação ao fogo. Eu vou visitar quatro. Essa primeira fase da expedição vai mostrar um Pantanal vivo, um pantanal de esperança, de resiliência. Eu estou no Refúgio Ecológico Caiman, onde funciona um safári, um programa de ecoturismo voltado para onças-pintadas e outros elementos da flora pantaneira. Este ano não vi fogo por aqui. Mas 60% do território do refúgio foi incendiado no ano passado. A flora e a fauna estão em recuperação. Vim até aqui para entender como um programa de turismo voltado para a conservação conseguiu manejar, ao longo deste ano e depois da tragédia que aconteceu aqui, para que seus recursos, principalmente da fauna, fossem mantidos e relativamente recuperados.

Cheguei em Campo Grande às 4h50 da tarde, peguei um carro, parei um pouquinho na estrada, cheguei às 10 horas da noite e, ainda fora da porteira do refúgio, na estrada, encontrei um tamanduá-bandeira – seria o sinal de que eu veria, ali, a riqueza que o Pantanal tanto oferece. Ainda de noite, conseguimos avistar a primeira onça-pintada – o que é um registro incrível. A primeira vimos à meia-noite. Ficamos até 1 hora da manhã. Infelizmente, não conseguimos registrar em foto. Mas acordamos às 4 horas da manhã para tentar avistá-la de novo. Não vimos. Mas encontramos um casal de cervos, de veados campeiros, lutando.

O Onçafari é um projeto de ecoturismo que tem diversas vertentes: turismo; ciência, que é o que eu estou fazendo aqui, com pesquisas sobre ecologia, história natural, veterinária; educação, uma parceria com escolas locais; social, um trabalho junto às comunidades; Onçafari Re-wild, com a reintrodução de indivíduos na natureza que sejam órfãos ou estejam machucados; e o Onçafari florestas, em que eles adquirem mais áreas protegidas, não só no Pantanal como no resto no Brasil, e financiam estudos de viabilidade para aumentar essas áreas, que são de outras entidades.

O projeto fica no Refúgio Ecológico Caiman. Você se hospeda no refúgio e tem a oportunidade de, assim como num safári africano, observar várias espécies na natureza. Aqui, a taxa de visualização de onça-pintada é de 98%, ou seja, 98% dos hóspedes conseguem ver uma onça-pintada. Anos atrás, a taxa de visualização era de menos de 10%. O que aconteceu para ter tanta onça? Soltaram onça? Na verdade, houve sim reintrodução de dois indivíduos, mas não é isso o que explica o sucesso. É a proteção de todo o território, mitigando as ameaças para que as onças pudessem se reproduzir naturalmente. Hoje, são cerca de sessenta onças-pintadas.

Vamos voltar a campo, para poder ir atrás da onça-pintada com um método chamado rastreamento por rádio. Funciona da seguinte forma: a onça tem um rádio-colar que permite o rastreio pelos pesquisadores com uma antena receptora. A partir dessa localização, a gente consegue, com muito esforço e muita sorte, localizar esse indivíduo.


Como todo brasileiro preocupado com o meio ambiente, o sentimento às vezes é de desespero, mas também de querer ser proativo em ajudar. No meu caso, a ajuda é colocar a ciência a serviço de respostas que podem solucionar os problemas do Pantanal hoje – o que é muito difícil, afinal, estamos falando de um incêndio de grandes proporções. 

Terça, 22 de setembro

O segundo dia foi o dia de entender a área. Há outro programa dentro do Refúgio Ecológico Caiman que se chama “Instituto Arara Azul”, que cuida das araras-azuis – outra espécie salva da extinção através do trabalho dos cientistas. Depois, fomos atrás das onças-pintadas. Eu quis participar desse processo de imersão que um turista faz. A gente visualizou um indivíduo e tirou uma foto bem ruim, porque ele passou correndo, mas deu para ver. No final do dia, durante a noite, toca o rádio e a gente recebe a notícia de que a equipe de veterinários capturou uma onça-pintada. A gente foi lá em disparada para poder acompanhar esse processo, e eu, como biólogo, também entender e colaborar de alguma forma.

A onça que eles capturaram nasceu em 2013. Ela é aqui do Onçafari, nasceu em condições naturais. Eles acompanham isso, sabem quem é a mãe… Mas ela não tinha o rádio colar, que é aquele rádio usado para monitorar por onde ela está andando – e isso ajuda a responder diversas coisas. A instalação dele é muito importante no contexto das queimadas do Pantanal porque, uma vez que uma área pega fogo e uma onça com o equipamento consegue fugir e se abrigar em um lugar, aquilo pode indicar que ali é uma área de refúgio para várias espécies da fauna. Assim, é possível agir localmente em prol dessas espécies, por conta desse rádio colar. 

Como biólogo, tento atuar em várias frentes. A primeira delas é a frente de informação. Procuro educar e informar as pessoas sobre todos os motivos para esses incêndios. Começa com a questão do fogo criminoso – mais de 90% dos incêndios no Pantanal são criminosos – mas isso se alastra por conta de vários outros fatores: estamos numa seca histórica, o Rio Paraguai que, em julho deveria estar perto de 5m, está abaixo de 2m, 50% a menos do registo de chuva para aquilo que é esperado no Pantanal… Então esses são outros fatores. Obviamente, os cortes violentos no orçamento dos órgãos de fiscalização do Ministério do Meio Ambiente também influenciam – em 2019 houve 34% menos autuações ambientais em relação a 2018 do que é esperado para o Brasil, a menor taxa em 24 anos. Há um componente governamental muito grande que precisa ser considerado, além de todas as questões biológicas e ecológicas que ajudam a fazer com que esses incêndios se alastrem. 

A segunda frente é a científica. Estou mostrando um Pantanal que, este ano, ainda não pegou fogo, mas no ano passado 60% dessa área queimou. Estou aqui para analisar os dados científicos e mostrar o que aconteceu para que isso pudesse ser mitigado e, principalmente, mostrar o quanto a fauna pode ser recuperada. Essa é minha maior função aqui, colocar a ciência a serviço da análise da valoração do recurso ambiental. Que significa entender que a cadeia econômica que gira em torno de uma onça-pintada viva é muito mais lucrativa do que a que gira em torno de uma onça-pintada morta.

A terceira frente é de realmente ajudar a apagar o fogo. Estou na organização de uma campanha que já coletou centenas de milhares de reais para montar duas brigadas permanentes de combate ao incêndio no Pantanal. Elas terão barco, combustível, alojamento e apoio a hospitais veterinários de animais silvestres – uma no Mato Grosso e outra no Mato Grosso do Sul. Precisamos realmente mitigar os incêndios não só de hoje, mas principalmente os de amanhã.

.NO RASTRO DAS ONÇAS-PINTADAS

Em depoimento a Luiza Ferraz, 25/09/2020

No quarto dia de expedição pelo Pantanal, o biólogo Hugo Fernandes se deparou com uma cena não tão incomum no bioma: um animal silvestre atropelado na estrada. O professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece) estava a caminho de Corumbá (MS), junto com os outros integrantes do grupo, para fazer um sobrevoo pelo Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, quando avistaram uma irara, que havia sido atropelada. No dia anterior, o pesquisador acompanhara o rastreamento de onças-pintadas. Espécie símbolo do bioma, ela é essencial para a detecção da qualidade daquela região. Isso porque, segundo o pesquisador, ela está no topo da cadeia alimentar. Nesses diários, escritos a pedido da piauí, Fernandes relata como tem sido seu trabalho cotidiano num dos biomas com maior biodiversidade do mundo e que tem sofrido com os maiores incêndios já registrados.

Quarta-feira, 23 de setembro

Hoje repetimos as atividades que fizemos nos outros dias: acompanhamento das câmeras, avistamento de onças-pintadas. Avistamos mais duas utilizando o rastreio via rádio. O rádio colar dessas onças emite um sinal GPS por meio do qual os pesquisadores conseguem acompanhá-las em um computador. Eles também conseguem localizá-las através de uma antena especializada que recebe um sinal de rádio emitido pelo colar. 

Após a captura da onça Hipotenusa, carinhosamente chamada de Nusa, que nasceu em 2013 e vive aqui no Refúgio Ecológico Caiman desde então, procuramos saber junto ao corpo de veterinários como era feita a captura desse animal. A técnica que eles utilizam é a do laço. O animal passa numa trilha previamente conhecida e há uma estrutura de armadilha que prende a pata dele quando passa. Muito importante dizer que, embora a cena possa parecer um tanto quanto invasiva, não há qualquer tipo de sofrimento animal. Trata-se de uma técnica bastante segura principalmente porque, ao disparar uma linha, também dispara um sensor que avisa o corpo de especialistas onde quer que eles estejam. Então o animal fica pouco tempo preso pela pata. Gravei um vídeo em que coloco a minha mão para mostrar que não dói, não fere e não causa nenhum injúria.

Há também vídeos de câmera trap que são as armadilhas fotográficas, quando o animal passa pela trilha e elas são acionadas gravando um vídeo – um outro tipo de trabalho que o Onçafari desenvolve por aqui. O trabalho consiste em espalhar essas armadilhas fotográficas para entender de que forma as onças utilizam todo o Refúgio Ecológico Caiman. 

Um habitat que apresenta uma alta densidade de onças-pintadas representa um habitat conservado. Por quê? Porque a onça é um topo de cadeia. Para que ela exista, principalmente em bom número, é preciso que haja alta densidade de suas presas, que o território esteja muito bem conservado. Coletar resultados para saber onde a onça se encontra é de suma importância para aferir o estado de conservação do território. No caso do Pantanal, temos diferentes tipos de habitat: mata fechada, zonas alagadas, campo aberto, área agricultável… Entender como a onça se utiliza de cada um desses tipos de mata é muito importante para entender a relação entre a espécie com outras e, principalmente, traçar estratégias: que áreas devem ser protegidas, que áreas podem ser manejadas – esse é um dos grandes exemplos.

Uma onça bem monitorada indica para a gente as melhores áreas. Diante de uma emergência, como incêndios, localizar as onças é, automaticamente, localizar as áreas de refúgio não só para ela, mas para várias outras espécies.

Ontem (22) choveu em algumas áreas do Pantanal. Acompanhei, na internet, as pessoas, com muita justiça, comemorando essa chuva mas, ao mesmo tempo, achando que ela estava banhando o Pantanal inteiro. Isso é reflexo do desconhecimento delas em relação ao Pantanal – elas acham que o bioma ocupa uma área homogênea e muito pequena. O Pantanal inteiro, incluindo as partes do bioma que chegam até o Paraguai e a Bolívia, é do tamanho do Reino Unido e a chuva atingiu poucas áreas. Podemos supor que, se o Reino Unido estivesse pegando fogo, as pessoas estariam comemorando o fato de ter batido uma chuva muito fina em Londres. O Pantanal é gigante, e as poucas chuvas que caíram não são, nem de longe, suficientes para apagar o que está acontecendo. Amanhã iremos partir para a linha de fogo do bioma.

No começo da tarde, uma notícia alarmante: o nosso parceiro, coronel Rabelo, uma das pessoas que historicamente domina a questão dos incêndios na Amazônia, noticiou que o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense está pegando fogo. O coronel sobrevoou a área e emitiu um alerta para que a gente se preparasse porque, amanhã, provavelmente, iríamos para lá. Iremos até Corumbá para fazer esse sobrevoo. O que a gente espera é que esse fogo seja breve e que possa ser contido.

Quinta-feira, 24 de setembro

Acordei ainda em Miranda (MS) e peguei o carro  em direção a Corumbá, onde agora estou descansando para amanhã encarar de fato a linha do fogo. Vamos sobrevoar a região do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Serra do Amolar. No caminho até aqui, de Miranda a Corumbá, registramos um dos problemas mais graves para a fauna do Brasil: o atropelamento de fauna silvestre nas estradas brasileiras. Vimos uma irara atropelada e morta na estrada. Todos os anos, mais de 400 milhões de animais morrem nessas condições. O Pantanal, por ser um ambiente com uma malha rodoviária muito movimentada, guarda números e cenas impactantes sobre esse problema.

Em Corumbá, nenhum descanso. Hora de preparar equipamentos para o início do maior desafio, o maior propósito da expedição: documentar os impactos onde o fogo arde sem dó. Falo no plural, porque é hora de revelar meu grande parceiro: Lawrence Wahba, um dos documentaristas mais renomados do país, está ao meu lado registrando cada momento. Mas não só. Ele é um dos principais articuladores da campanha que organizamos: levantar fundos para montar as duas brigadas permanentes que mencionei dias atrás. A campanha se chama Brigada Alto Pantanal e está aberta para doações. 

À noite, nos encontramos com o Coronel Angelo Rabelo, diretor do Instituto Homem Pantaneiro e coordenador-geral da campanha. Com décadas a serviço do Pantanal, já tomou tiro no peito ao defender o bioma na década de 1980. Ele nos colocou a par de todo o nosso cronograma daqui pra frente. “Queridos, amanhã vocês pegam um avião que vai descer no Parque Nacional do Pantanal. A situação lá está mais caótica do que ontem, e vocês vão levar os mantimentos que já conseguimos comprar para os brigadistas indígenas que estão lá tentando salvar o território”, disse o coronel.

Vou dormir, porque só tenho cinco horas de sono até lá.


AGORA EU CHEGUEI AO INFERNO

Biólogo em expedição no Pantanal relata os apelos desesperados de moradores da região diante do fogo e acompanha trabalho dos bombeiros

Em depoimento a Fernanda da Escóssia, 28/09/2020

A velocidade do fogo, pedidos desesperados de socorro pelo rádio e o Pantanal em chamas visto do chão e do alto. Na segunda fase da expedição pela região, o biólogo Hugo Fernandes narra o choque de sair de uma área preservada e observar os focos de calor no bioma. Professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ele integra a Expedição Pantanais, em Mato Grosso do Sul, que investiga as diferentes formações ecológicas dentro do bioma. A pedido da piauí, conta  nestes diários o passo a passo de sua expedição. A primeira parte do trabalho acompanhou o rastreamento das onças-pintadas numa zona preservada – mas, nesse terceiro relato, a viagem mergulha num Pantanal tomado pelos incêndios, enquanto bombeiros e brigadistas se desdobram para preservar o bioma e salvar vidas.

Sexta-feira, 25 de setembro

“Se em Miranda eu estava num paraíso recuperado, agora eu cheguei ao inferno. Essa é a sensação quando comparo as fases da expedição. Acordei, tomei café com Lawrence Wahba, documentarista que nos acompanha, com coronel Angelo Rabelo, diretor do Instituto Homem Pantaneiro, e com Walfrido Tomas, médico veterinário e pesquisador da Embrapa que está conduzindo estudos de impacto dos incêndios sobre a fauna nativa no Pantanal. Mal sabíamos o que viria dali à frente. No aeroclube em Corumbá (MS) estava Chico Boabaid com um Cessna Skylane 182, avião em que você entra e se sente numa espécie de buggy com duas asas. Para minha tranquilidade, eu estava ao lado de um dos pilotos mais experientes do Pantanal, com 46 anos de profissão.

Nosso plano de voo era partir de Corumbá até a fazenda Acurizal, nas imediações do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, a cinquenta minutos. Dentro do avião, um calor insuportável, e o balanço não combinou com o café. Enjoei, felizmente muito pouco. Ao aterrissar na Fazenda Acurizal, conhecemos a equipe do Instituto Homem Pantaneiro, que serviu de base para montar a brigada de ribeirinhos e demais voluntários na ajuda à equipe do ICMBio e do Corpo de Bombeiros.

Lá conhecemos o Celso, piloto da embarcação, e um repórter local. Seriam os nossos companheiros até a sede do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, onde conhecemos os brigadistas do ICMbio e homens e mulheres do Bombeiros do Estado do Paraná, que vieram para prestar apoio. A liderança é de uma mulher, uma heroína chamada tenente Luisiana. Conversei sobre a dificuldade de ser mulher liderando um batalhão de homens, numa profissão que geralmente é tida como masculina pela sociedade.

Tenente Luisiana nos permitiu acompanhá-los no controle de um foco de incêndio. Ela colocou os homens numa embarcação, nós acompanhamos na nossa e pudemos fotografar a ação dos bombeiros em terra controlando o fogo com abafadores. Nesse momento, o fogo avança, e a tenente pede que todos recuem. Ela recebe então um chamado de urgência. E cabe contar esse contexto desde o início.

Vamos voltar ao avião, na saída de Corumbá. Naquele exato momento, não havia focos de incêndio na Serra Negra. Lawrence e Chico comentaram sobre a beleza da região. Isso foi às 9 horas da manhã. Às 11 horas, uma equipe do coronel Rabelo passava pela região da Serra Negra, mais precisamente na frente da fazenda Novos Dourados. E também não registrou nada de estranho.

Um pouco antes da uma da tarde, a tenente Luisiana recebe o chamado de urgência. Era uma mulher pedindo socorro na fazenda Novos Dourados, porque o fogo estava avançando na sua residência. Não pudemos acompanhar, porque nosso barco não tinha combustível e nosso plano de voo exigia que voltássemos às três da tarde. No meio do rio, um alerta de rádio: uma mulher pedindo desesperadamente que os bombeiros chegassem logo. Conversei com ela e falei que os bombeiros estavam a caminho. Minutos depois, um homem pedindo mais agilidade, porque o fogo estava avançando. Mais uma vez falamos que os bombeiros estavam chegando. Os chamados partiam da Fazenda Novos Dourados, que horas antes não registrava nenhum foco de incêndio.

Pegamos o voo de volta. Assim que o avião levantou, a impressão foi que linhas de inferno haviam tomado a terra. A visibilidade do piloto ficou comprometida. Chico Boabaid, que tem mais de quarenta anos de profissão, teve que acionar os controladores, que o ajudaram a voltar a Corumbá.

Perguntei ao Chico se aquilo era comum, e ele disse: “Fogo todo ano tem, mas como o desse ano nunca vi na vida.” Foi um voo tenso, preocupante, muito quente, mas a experiência do Chico fez com que nada fosse mais do que um pequeno estado de tensão. O avião pousou em segurança em Corumbá.

O coronel Rabelo nos esperava na sede do Instituto Homem Pantaneiro, e tivemos reunião com patrocinadores para montar brigadas permanentes de voluntários no Pantanal, para apagar incêndios não só de hoje, mas principalmente do futuro.

Meu corpo suava, suava demais. Lawrence passava pelos mesmos sintomas. 

Começamos a passar mal, a pressão baixou. Provavelmente estávamos com uma intoxicação de monóxido de carbono em decorrência da fumaça que respiramos no barco. Soubemos que Celso, o piloto, passara muito mal e estava vindo de barco para Corumbá. Chamamos o SAMU, fizemos uma inalação de oxigênio e em pouquíssimo tempo estávamos bem. O Celso chegou a Corumbá, recebeu atenção médica e já passa bem melhor. 

Outra notícia triste foi que a mulher que enviou um alerta ao nosso barco acabou tendo queimaduras de segundo grau nos pés e foi encaminhada para receber tratamento. Pelo menos fechamos o dia com uma boa notícia: o Corpo de Bombeiros do Paraná conseguiu controlar o incêndio na sede da Novos Dourados depois de uma noite intensa de trabalho.

Sábado, 26 de setembro

Malas prontas para partir de Corumbá. A programação original era pegar o mesmo avião com o Chico, descer na Fazenda Acurizal, dormir lá e seguir para Porto Jofre [perto de Poconé]. Quem atrapalhou os planos foi o céu, coberto de fumaça, sem visibilidade. O coronel Rabelo providenciou um barco. O tempo de viagem seria de cinco horas. No porto de Corumbá descobrimos que no barco só havia espaço para um. Lawrence embarcou, eu fiquei. Lá pelas 6 horas, Letícia Larcher, assistente do coronel Rabelo, me enviou uma mensagem pelo WhatsApp. Demorei um tempo para processar a dor: uma criança de dois anos morrera afogada. Embora pareça não haver relação com os incêndios, a dor maior é que essa criança possivelmente é filha de um dos brigadistas voluntários. Infelizmente não tenho mais detalhes. Terei amanhã, quando encontrar meus amigos.

A equipe sofrera outra derrota: tentou salvar uma capivara que teve as patas queimadas, mas ela morreu. 

Capivara salva

Não faço ideia de como está a cabeça de todos os brigadistas e, principalmente, desse pai e dessa mãe que perderam essa criança. Amanhã de manhã saio de Corumbá e tento voar novamente. Espero terminar o dia com o cenário um pouco melhor. Mas acho muito difícil que qualquer vitória que a gente tenha contra o fogo consiga superar a dor imensa de perder uma criança de 2 anos.

O RESGATE DA SUCURI AMARELA

Em depoimento a Fernanda da Escóssia, 01/10/2020

Num cenário que descreve como apocalíptico, com o Pantanal destruído pelas queimadas, o biólogo Hugo Fernandes relata os dias mais difíceis até aqui em sua expedição pela região. A equipe encontrou animais mortos, queimados pelo fogo, e se deparou com a tristeza de uma comunidade na qual uma criança, filha de um brigadista, morreu afogada. A pedido da piauí, Fernandes, professor da Uece (Universidade Estadual do Ceará), relata nesses diários o dia a dia da viagem, iniciada no dia 21 de setembro, com uma passagem por uma área preservada, refúgio de onças-pintadas. Agora seu grupo está no Pantanal Norte, cercado pelo fogo. Neste quarto relato, marcado pela tristeza, uma única vitória: o resgate de uma sucuri amarela, espécie típica do Pantanal. 


Domingo, 27 de setembro

O dia em Corumbá, fora do campo, poderia ter servido para dormir bem. Não serviu. Tive que passar milhares de fotos para o HD, atender a imprensa, responder e-mails e mensagens. Fui dormir às 3h40 da manhã. Às 8 horas, o piloto Chico Boabaid me esperava na recepção. No voo, mais um cenário desolador. Além de inúmeros focos de incêndio, a fazenda Novos Dourados, que tivera o incêndio parcialmente controlado na noite anterior, estava encoberta por um lençol de fumaça. Meus amigos e os brigadistas me aguardavam. Não seria nada fácil. Pousamos na fazenda Acurizal, e um barco nos esperava. Cinquenta minutos de navegação respirando fumaça. No nosso destino final, uma operação de guerrilha: quinze bombeiros militares do Paraná, cinco do Mato Grosso do Sul, seis brigadistas voluntários e nove fuzileiros navais que estavam para chegar. Falei operação de guerrilha, mas deveria ser de guerra. Os brigadistas são guerreiros, heróis, sem dúvida. Mas o número era absolutamente inferior ao necessário. Precisávamos de um exército – ou, quem sabe, do Exército.

Segui com três colegas biólogos e uma médica veterinária, liderados pelo médico veterinário Diego Viana. Fomos para a linha de fogo tentar resgatar animais e estimar o que já havia sido perdido pelos incêndios. Fui de quadriciclo, que quase virou no meio do caminho e precisou vencer árvores caídas. Em uma lagoa seca, que há pouco tempo continha água, a cena lembrava um filme apocalíptico. Entre centenas de animais mortos, uma vitória importante: uma sucuri amarela, espécie praticamente exclusiva do Pantanal, foi encontrada viva. O contraste triste foi que encontramos várias outras mortas. Depois da análise clínica da equipe de veterinários, pegamos um barco e soltamos a serpente no Rio São Lourenço. Sorrimos. Pequenas vitórias precisam ser comemoradas. Na volta, encontro o documentarista Lawrence Wahba, participante da expedição, na base de comando. Ao fim do dia, voltamos para a fazenda Acurizal. Um banho para tirar a fuligem e um pouco da tristeza. Amanhã seguiremos para Porto Jofre, no Pantanal Norte, última fase da nossa expedição.

Segunda, 28 de setembro

Às 6 horas o avião do Chico já funcionava. Nós nos despedimos do coronel Angelo Rabelo (presidente do Instituto Homem Pantaneiro) e apertamos nossas bagagens na minúscula cabine. Porto Jofre é um lugar muito especial. Foi lá onde eu vi minha primeira onça-pintada. Nossa pequena dose de alegria se esvaiu na metade do caminho: zero visibilidade. Não havia teto. Não havia condições de voo. Chico olha pra gente, com seus 47 anos de profissão, e fala: “Pessoal, não vai dar. A gente vai ter que voltar.” Pousamos na Acurizal, o coronel Rabelo quase de partida no seu barquinho, vê o avião pousando e retorna. Não sabíamos o que fazer. Tentamos voar a partir de Poconé, mas não havia visibilidade sequer na cabeceira da pista local. Todos os barcos da Acurizal e da Novos Dourados estavam empenhados no combate ao fogo. A solução veio três horas depois: no dia seguinte, partiríamos num barco do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) que viria buscar mantimentos e combustível.

Já que estávamos ali, não íamos ficar parados. Entramos em um dos barcos que estavam acompanhando os brigadistas para tentar fotografar mais animais atingidos pelo incêndio. O motor do barco quebrou e ficamos naufragados durante algum tempo. Após algumas gambiarras, conseguimos fazer com que o motor funcionasse muito vagarosamente até chegarmos a uma comunidade – e confesso que eu preferia não ter chegado ali. Foi a comunidade que assistiu à perda de uma criança de dois anos que havia morrido afogada dois dias antes. Menos de uma hora antes da nossa chegada, os bombeiros haviam encontrado finalmente o corpo da criança.

Aquilo nos abalou profundamente e ainda nos abala. Não dormimos direito e provavelmente não vamos conseguir dormir tão cedo. Das maiores tragédias da vida, a tragédia da perda de uma vida sem dúvida é a maior.

Voltamos para a fazenda Acurizal tristes, desolados e impotentes. Não conseguimos fazer nada que pudesse ajudar, seja o combate ao incêndio, seja o próximo. É um dia que eu quero esquecer.

Hugo Feranades


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