Sobre "Lugar de fala". Dois textos e um vídeo que discutem o tema: Wilson Gomes, Contardo Calligaris e Paulo Ghirandelli
Wilson Gomes, CULT, 09/08/2020
Precisamos falar sobre o “lugar de fala”
Ferramentas conceituais na luta política
Em política, cada lado se dota das ferramentas conceituais que consegue imaginar, desde que funcionem com eficiência. “Funcionar”, no caso, significa servir a propósitos que favoreçam quem o emprega: aglutinar os seus, reforçar laços identitários, constranger oponentes, oferecer justificativa moral para as pretensões do grupo, atrair simpatia ou compreensão geral, mobilizar para a ação política, dentre outros.
Em política, cada lado tentará convencer todos de que as suas ferramentas conceituais preferidas são teses objetivas sobre o funcionamento do mundo, são evidências incontornáveis sobre fatos e não instrumentos para os propósitos da tribo. É o que a direita fez com “politicamente correto”, ferramenta usada para desqualificar comportamentos que os liberais simplesmente chamaríamos de “respeito e consideração pelos outros”, principalmente por minorias socialmente estigmatizadas. E é o que a extrema-direita agora faz com ferramentas-conceitos como “ideologia de gênero”, “comunismo”, “doutrinação ideológica” e “gayzismo”. Para os partidários, não são o resultado de interpretações discutíveis de fatos, não são hipóteses arriscadas e não testadas, orientadas por preferências e conveniências. Não, são fatos objetivos e incontestáveis, a dura realidade que o outro lado não aceita e não pode aceitar apenas porque iria desmascarar o que ele realmente é.
A esquerda também tem as suas ferramentas conceituais de cunho ideológico, forjadas para os propósitos da luta política. Dentre estas, destaca-se por sua rápida assimilação e extrema adesão, principalmente por parte da assim chamada esquerda identitária, a ideia de “lugar de fala”. A este ponto, importam pouco as intenções originárias do conceito, como crítica às pretensões universalistas dos discursos sociais, como revelação de que todo discurso é situado e traz consigo as marcações, de toda natureza, que configuram a posição social de quem fala. Há pilhas de intuições conceituais dessa natureza abandonadas ou pouco frequentadas por quem estuda ou pensa a sociedade. O conceito foi retirado do uso contido e quase obscuro das pessoas que só frequentam livros e ideias, e se tornou um sucesso de público apenas quando foi transformado em ferramenta da luta política. O que realmente importa, portanto, é o seu emprego como parte dos recursos ideológicos de um dos lados da disputa política.
Nesse sentido, falar de deturpação ou distorção do conceito por aqueles que o empregam faz pouco sentido, vez que dificilmente se pode separar significado de uso. Filosoficamente, não faz sentido opor conceito e uso. No máximo, podemos dizer que o conceito original de “lugar de falar” foi em sua maior parte reconfigurado como um novo conceito, este, sim, de amplo uso e enorme gama de aplicação na luta política.
E “lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer justificativas de superioridade moral para ação praticada. Nestes ambientes, “lugar de fala” é tanto um discurso sobre direitos de autorrepresentação por parte de minorias (“nós podemos falar em nosso nome e de nossas coisas”), quanto uma reivindicação de reconhecimento da autoridade de uma determinada minoria para falar sobre determinados temas e “protagonizar” determinadas ações. Mas, da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à interdição da fala que não se situa na minoria e à inspeção constante para verificar se essas duas premissas são integralmente cumpridas em todas as formas de expressão artísticas, científicas e políticas. Como tão bem formulou o professor Luis Felipe Miguel esta semana em seu perfil no Facebook, “nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais”.
Como ferramenta ideológica, motiva e justifica, por exemplo, inspeções nas listas de bibliografias para verificar a proporção de autores por seu “lugar de fala”, independentemente de quaisquer outros critérios. Assim como se conhecem fiscalizações desta natureza – com o consequente lavramento de autos de infração e punições instantaneamente aplicadas por meio agressões, bloqueios e impedimentos – em peças de teatro e em debates políticos públicos. A militância do “lugar de fala” tornou-se, crescentemente, bruta, intolerante e agressiva.
Contra o lugar de fala
Nesse contexto, considero que faça sentido os oito argumentos abaixo, contra a ferramenta ideológica do “lugar de fala”:
1-“Lugar de fala” é o novo fundamentalismo político. Refúgio de dogmáticos e intolerantes, que, da forma mais autoindulgente possível, concedem-se prerrogativas de superioridade moral.
2-“Lugar de fala” é um espaço privilegiado de exigência de que os outros calem a boca. É o lugar do “cale-se” aplicado a todos que não são como eu. Lugar de falar é ao mesmo tempo um lugar de calar – eu falo, você cala.
3-“Lugar de fala” é o álibi perfeito para reivindicações de monopólio de fala. Só eu e os meus temos a fala autorizada e os direitos de explorá-la.
4-Como em todo sistema monopolista, o “lugar de fala” provê ao falante certificado um modelo de negócios. Como somos poucos os que têm direito de exploração desse produto, a raridade agrega enorme valor aos biscoitos finos que eu forneço e a, mim, naturalmente, seu fabricante autorizado. Encontrado um bom nicho, pode-se ganhar dinheiro, prestígio ou celebridade com o monopólio da fala autorizada. E há muitos faturando com isso.
5-A artimanha principal das reivindicações do “lugar de fala” consiste em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam. O seu direito de falar é transferido para mim, porque o coletivo onde você se situa deve historicamente ao coletivo onde me situo. A sua classe oprime a minha, mas quem deve pagar é você, independentemente do que você fale ou seja. A reivindicação de que você deve calar a boca, porque as pessoas da sua espécie já falaram demais, e me deixar falar sozinho, porque as pessoas da minha espécie não tiveram chances históricas de falar, é um truque para disfarçar o meu autoritarismo e a minha intolerância.
6-O argumento em defesa do pluralismo e da consideração pelas diferenças de identidades e pontos de vista não precisa do conceito de “lugar de fala” para ser defendido. Ao contrário, a reivindicação de “lugar de fala” serve hoje principalmente para que os patrulheiros da identidade verifiquem se o seu monopólio está sendo respeitado. Os “fiscais de atendimento às normas sobre monopólio do lugar de fala” são a nova moda na universidade, nos debates públicos e nas artes. A ideologia do “lugar de fala” virou adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância.
7-Alimenta os direitos de reivindicação de “lugar de fala” a ideia de que expressar ideias, fazer pesquisa ou discutir problemas sociais são atividades direta e inextrincavelmente ligadas à “representação” de uma espécie ou de um coletivo. Propriedades individuais relacionadas a conhecimento, competência, domínio do assunto, inteligência ou boa-fé são secundárias em face do que realmente importa, que é a que gênero ou espécie identitária você pertence e cujo direito de representar você pode reivindicar. Então, não se trata apenas de representação, mas de autorrepresentação. Só está habilitado a falar quem está autorizado a representar, ficando cancelado todas as outras formas tradicionais de competência.
8-A esquerda criou e alimentou as teses fundamentais do “lugar de fala” e ainda cerca os reivindicadores do monopólio do falar e do mandar calar com extrema complacência. Paradoxalmente, o “lugar de fala” é usado de forma eficiente apenas contra a esquerda. A extrema-direita, que agora a sitia política e socialmente, é imune aos constrangimentos das reivindicações do lugar de falar e, antes, usam tais reivindicações para as ridicularizar e para reforçar o próprio ponto de vista. O “lugar de fala” se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se autodevora.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
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Sou alérgico ao argumento 'você não pode falar dos negros porque não é negro'
Contardo Calligaris 19/08/2020
No conceito de lugar de fala, tudo o que é argumento 'ad hominem' me parece uma falácia
Adolph Reed é um pensador de esquerda, professor emérito na universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Já faz tempo que ele manifesta sua antipatia pela “política das identidades” —resumindo, pela ideia de que nossa identidade (nossa raça, nossa orientação sexual etc.) deveria ser o critério decisivo na hora de escolher nossas alianças políticas.
Mesmo hoje, depois do assassinato de George Floyd e do crescimento do movimento Black Lives Matter (as vidas negras importam), Adolph Reed continua perguntando se o principal problema americano é mesmo o racismo ou a pobreza dos marginalizados do sistema, seja qual for a etnia deles. Ele acredita que algum progresso só possa vir da luta comum dos desfavorecidos de todo o mosaico americano.
Na semana passada, Reed, convidado para proferir uma palestra, acabou cancelando o evento diante das ameaças de protestos.
O termo “política das identidades” foi inventado nos anos 1970 por um grupo de feministas negras lésbicas em Boston, no estado de Massachusetts. Elas achavam que 1) o movimento feminista era racista e 2) o movimento dos direitos civis era homofóbico. Decidiram respeitar a especificidade de sua identidade, de lésbicas e negras.
Obviamente, a objeção à política das identidades é que ela fragmenta qualquer frente unida de ação política. A política das identidades é amiga do conceito de “lugar de fala”, que poderia ser um bom jeito para cada um de nós se interrogar sobre as motivações silenciadas (e ignoradas de nós mesmos) de nossas ideias e declarações —tanto na esfera pública quanto na privada.
Sou sensível aos argumentos de Djamila Ribeiro (“O que É Lugar de Fala?”, Letramento): é crucial levar em conta a organização do poder ao redor de uma fala. Mas receio a estupidez dos argumentos “ad hominem”. O argumento “ad hominem” consiste em anular uma proposição por uma crítica ao seu autor. Quando não estamos a fim de responder a uma crítica ou não sabemos como, a solução é simplesmente atacar quem a enunciou. O caso de Adolph Reed, que mencionei, é interessante porque Reed (só agora me dou conta que nem sequer mencionei esse fato) é negro: ele não pode ser silenciado simplesmente com o argumento de que não teria como falar sobre ou contra a política de identidades “por ele ser branco”.
No conceito de lugar de fala, tudo o que é argumento “ad hominem” me parece uma falácia. O resto me parece mais um instrumento para sondar as nossas motivações.
Como psicanalista, constato, justamente, que as tais motivações são sempre mais complexas e misteriosas do que parecem a nós mesmos e a quem nos escuta. E os militantes progressistas deveriam se lembrar de que, de Lênin a Mao, de Castro a Ho Chi Mihn, de Marx a Engels, os que mais falaram em nome do proletariado eram todos rebentos de classes abastadas. De onde falavam, então?
Resumindo, não concordo inteiramente com Adolph Reed, mas fujo dos excessos da política das identidades, sobretudo quando ela produz argumentos “ad hominem” (ou “ad mulierem”), como aconteceu recentemente ao redor das críticas que Lilia Schwarcz moveu ao novo filme de Beyoncé.
Ou seja, sou alérgico aos argumentos “você não pode falar dos negros porque não é negro” ou “não pode falar dos gays porque não é gay”. Até porque, inversamente, ser negro ou gay não impede ninguém de falar as piores asneiras, inclusive contra negros e gays.
Agora, também existem dimensões concretas e cotidianas da experiência (de ser negro ou gay ou de viver em qualquer margem social) que são cruciais e constitutivas da identidade de um indivíduo e do lugar de onde ele fala.
Por exemplo, é diferente falar do lugar de quem lê, o tempo inteiro, no olhar dos outros, repulsa, desconfiança, desaprovação quando não ódio. E é possível que, sem essa experiência específica, algo faça falta à nossa capacidade de compreender o mundo no qual o negro, por exemplo, vive.
O melhor filme deste ano até agora é, para mim, “Queen & Slim”, de Melina Matsoukas. Está na Apple TV desde sexta passada, e espero que chegue logo a plataformas mais populares. É a história de um casal negro que, no seu primeiro encontro, tem um “acidente” que o projeta num thriller tanto mais trágico por ser involuntário.
Não perca sob nenhum pretexto: raramente me foi dado enxergar de tão perto o que significa, concretamente, ser negro.
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