quinta-feira, 31 de julho de 2025

Pílulas 33

Ah!!! Cristo
Ler versus ouvir
Audie Murphy, Denzel Washngton e Franco Nero 
7 gatinhos
O começo do fim
Ana Maria Gonçalves & Um Defeito de Cor
Carlos Lemos & Edifício Copan
Mahler & Sinfonia No. 3 
Jovens de Hiroshima pintam relatos de sobreviventes da bomba atômica
Di Melo 
A morte em proparoxítonas - Ruy Castro
Primeiro banho no Sena
Goleador palestino entrega o bicho à Faixa de Gaza
Emicida: a conversão da rebeldia em produto de mercado

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Ah!!! Cristo 

Justiça Federal afirma que área do Cristo Redentor pertence à União 

Igreja Católica não tem direitos sobre o terreno onde está a estátua, segundo decisão em primeira instância 

Gabriel Gama, fsp, 30/07/2025

A Justiça Federal reconheceu que a área do Alto Corcovado, no Rio de Janeiro, pertence à União. A decisão é mais um capítulo na disputa pelo entorno do Cristo Redentor entre o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), gestor do Parque Nacional da Tijuca, https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/10/parque-da-tijuca-onde-fica-o-cristo-redentor-arrecada-mais-que-todos-os-outros-parques-nacionais-juntos.shtml e a Mitra Arquiepiscopal, entidade ligada à Igreja Católica que reivindica a posse do local.

"Apesar de haver construído o monumento, sem ajuda do poder público, não detém a Igreja qualquer direito sobre o terreno em que foi erigida a estátua, pedestal e capela", segundo a sentença. Ainda cabe recurso e o caso pode ser levado à segunda instância, o Tribunal Regional Federal da Segunda Região.
A 21ª Vara Federal do Rio de Janeiro proferiu a decisão em resposta a um conjunto de ações envolvendo a propriedade do Corcovado.

Em 2020, o ICMBio entrou com pedido de reintegração de posse de imóveis ocupados por lojistas perto da estátua. Na sequência, a Mitra alegou que o espaço pertenceria à Igreja e, por isso, a União não poderia remover os comerciantes sem consultá-la.
A Igreja argumenta que possui direitos sobre a área porque a construção do Cristo Redentor teria envolvido recursos privados. Uma carta de aforamento de 1934, que concederia a posse, também é usada para sustentar a tese.

Hoje o local é administrado pelo ICMBio, já que o monumento está dentro do parque da Tijuca, uma unidade de conservação federal.

Cristo-Redentor_-Foto-Luciola-Vilella-MTUR-2

Após comparar documentos e imagens, a Justiça concluiu que o terreno descrito na carta de aforamento não abrange a estátua. A Mitra nega que haja uma disputa pela área do Santuário Cristo Redentor e afirma que entrou como parte interessada na ação.
"Os lojistas, tranquilos com toda a contribuição dada ao monumento e ao Rio de Janeiro ao longo de 90 anos de relação com o Alto Corcovado, recebem com serenidade e respeito as decisões proferidas", diz o escritório de advocacia que representa os comerciantes. A defesa acrescenta que pontos de discordância serão tratados no decorrer do processo.

 
Área abrangida pela carta de aforamento de 1934 (em amarelo) não inclui a estátua do Cristo Redentor, segundo a Justiça - Reprodução/Justiça Federal 

É a primeira vez que a Justiça reconhece oficialmente o Alto Corcovado como propriedade da União, diz o procurador Vinicius Lahorgue, defensor do ICMBio na ação.
"A decisão é importante para esclarecer que a área sempre foi da União e que a autorização para a construção do monumento foi concedida sob a condição de que a área permaneceria sob domínio público", afirma.

Saiba como foi a construção do Cristo Redentor fotos

Segundo Lahorgue, a decisão pode afetar projetos de lei que tramitam na Câmara e no Senado e pedem a transferência da área do Cristo para a Mitra. "A destinação à Igreja seria uma concessão, não a concretização de um direito previsto e, se realizada, seria em detrimento do aspecto ambiental", analisa o procurador.

Para Viviane Lasmar, chefe do parque da Tijuca, a sentença fortalece a gestão da unidade de conservação. "A decisão não muda a relação de respeito mútuo entre o ICMBio e a Mitra, mas traz a segurança de que o espaço é público e pertence ao povo brasileiro", afirma.

A história do Cristo redentor

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Rio de Janeiro, 1923: A forte reação protestante ao Cristo Redentor 

(...) Oiticica e a Liga Anticlerical

Os protestantes não foram os únicos a se opor ao monumento do Corcovado. Além do já citado político mineiro Adolfo Bergamini, o professor e especialista em fonética e fonologia José Oiticica, então com 41 anos, escreveu no Correio da Manhã de 17 de abril de 1926 um violento artigo contra o projeto, concluindo-o com o apelo: “Peço-lhes por quantos anjos há no céu que desistam da empresa começada”. Curiosamente, Oiticica usa a mesma tese protestante com base no segundo mandamento: “Encarapitar uma estátua divina em um monte para nesse monte adorar Deus é duplamente contrariar o preceito do Eterno”.

Em setembro de 1923, um dos jornais do Rio de Janeiro publicou um convite dirigido a todos os elementos anticlericais da capital, “sejam atheus, espiritas, protestantes, theosophistas ou prosélytos de quaesquer escolas philosophicas”, para “oppôr a necessaria reacção à obra embrutecedora do clericalismo indigena, que está tomando vulto”. Os protestantes não aceitaram o convite da Liga Anticlerical por se tratar de um movimento “cujo alvo único é estimular o ódio ao padre, arrazar e nada edificar”, explica o editorial de O Jornal Batista. (...)

Raio atinge Cristo Redentor durante sessão de fotos | Primeiro Impacto (22/02/24) 
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Ler versus ouvir

Se podemos ouvir quase tudo, por que ler ainda é importante?

Atividades envolvem o mesmo objetivo, porém não são intercambiáveis 

Stephanie N. Del Tufo: Professora de educação e desenvolvimento humano, Universidade de Delaware (EUA)

Feche os olhos e imagine como será o futuro daqui a algumas centenas de anos.
Será que seremos viajantes intergalácticos? Talvez vivamos em naves espaciais, mundos submarinos ou planetas com céus roxos.

Agora, imagine seu quarto como um adolescente do futuro. Provavelmente há uma tela brilhante na parede. E, quando você olhar pela janela, talvez veja os anéis de Saturno, o brilho azul de Netuno ou as maravilhas do fundo do oceano.

Agora pergunte a si mesmo: há um livro no ambiente?
Abra seus olhos. É provável que haja um livro por perto. Talvez ele esteja em sua mesa de cabeceira ou enfiado embaixo da cama. Algumas pessoas têm apenas um; outras têm muitos.

Mesmo em um mundo repleto de podcasts, ainda há livros. Por que isso acontece? Se podemos ouvir quase tudo, por que a leitura ainda é importante?
Como cientista da linguagem, estudo como os fatores biológicos e as experiências sociais moldam a linguagem. Meu trabalho explora como o cérebro processa a linguagem falada e escrita, usando ferramentas como MRI e EEG.

Seja lendo um livro ou ouvindo uma gravação, o objetivo é o mesmo: compreender. Mas essas atividades não são exatamente iguais. Cada uma delas contribui para a compreensão de maneiras diferentes. Ouvir não oferece todos os benefícios da leitura, e a leitura não oferece tudo o que a audição oferece. Ambas são importantes, mas não são intercambiáveis.

Diferentes processos cerebrais

Seu cérebro usa parte da mesma linguagem e sistemas cognitivos tanto para ler quanto para ouvir, mas também executa funções diferentes dependendo de como você está absorvendo as informações.
Quando você lê, seu cérebro está trabalhando duro nos bastidores. Ele reconhece as formas das letras, associa-as aos sons da fala, conecta esses sons ao significado e, em seguida, vincula esses significados a palavras, frases e até mesmo a livros inteiros. O texto usa estrutura visual, como sinais de pontuação, quebras de parágrafo ou palavras em negrito para orientar a compreensão. Você pode avançar em seu próprio ritmo.

Ouvir, por outro lado, exige que seu cérebro trabalhe no ritmo do orador. Como a linguagem falada é efêmera, os ouvintes precisam contar com processos cognitivos, inclusive a memória, para reter o que acabaram de ouvir.
A fala é um fluxo contínuo, não um grupo de palavras bem separadas. Quando alguém fala, os sons se misturam em um processo chamado coarticulação. Isso exige que o cérebro do ouvinte identifique rapidamente os limites das palavras e conecte os sons aos significados. Além de identificar as palavras em si, o cérebro do ouvinte também deve prestar atenção ao tom, à identidade do falante e ao contexto para entender o significado do falante.

Por que o cérebro só consegue prestar atenção em uma coisa por vez? webstories

Mais fácil?

Muitas pessoas presumem que ouvir é mais fácil do que ler, mas isso geralmente não é verdade. Pesquisas mostram que ouvir pode ser mais difícil do que ler, especialmente quando o material é complexo ou desconhecido.

A compreensão auditiva e a compreensão de leitura são mais semelhantes nos casos de narrativas simples, como histórias de ficção, do que para livros de não ficção ou ensaios que explicam fatos, ideias ou como as coisas funcionam. Minha pesquisa mostra que o gênero afeta a forma como você lê. De fato, diferentes tipos de textos dependem de redes cerebrais especializadas. Histórias de ficção envolvem regiões do cérebro envolvidas em compreensão social e narração de histórias. Os textos de não ficção, por outro lado, dependem de uma rede cerebral ajuda no pensamento estratégico e na atenção direcionada a objetivos

Ler um material difícil também tende a ser mais fácil do que ouvir, do ponto de vista prático. A leitura permite que você se movimente facilmente dentro do texto, relendo seções específicas se estiver com dificuldade de entender ou sublinhando pontos importantes para revisitar mais tarde. Já um ouvinte que está tendo problemas para acompanhar um ponto específico precisa pausar e retroceder, o que pode interromper o fluxo da audição, impedindo a compreensão.
Mesmo assim, para algumas pessoas, como aquelas com dislexia do desenvolvimento, ouvir pode ser mais fácil. Indivíduos com dislexia do desenvolvimento geralmente têm dificuldade para aplicar seu conhecimento da linguagem escrita para pronunciar corretamente as palavras escritas, um processo conhecido como decodificação. A audição permite que o cérebro extraia o significado sem o difícil processo de decodificação.

Envolvimento com o material

Um último aspecto a ser considerado é o envolvimento. Nesse contexto, o envolvimento refere-se a estar mentalmente presente, concentrando-se ativamente, processando informações e conectando ideias ao que você já sabe.
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As pessoas geralmente ouvem enquanto fazem outras coisas, como se exercitar, cozinhar ou navegar na internet —atividades que seriam difíceis de realizar durante a leitura. Quando os pesquisadores pediram a estudantes universitários que lessem ou ouvissem um podcast em seu próprio tempo, os estudantes que leram o material tiveram um desempenho significativamente melhor em um teste do que os que ouviram. Muitos dos alunos que ouviram relataram que realizavam várias tarefas, como clicar em seus computadores enquanto o podcast era reproduzido. Isso é particularmente importante, pois prestar atenção parece ser mais importante para a compreensão auditiva do que para a compreensão da leitura

Portanto, sim, a leitura ainda é importante, mesmo quando a audição é uma opção. Cada atividade oferece algo diferente, e elas não são intercambiáveis.
A melhor maneira de aprender não é tratar livros e gravações de áudio como iguais, mas saber como cada um funciona e usar ambos para entender melhor o mundo.

Este texto foi publicado no The Conversation. Clique aqui para ler a versão original
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Audie Murphy, Denzel Washngton e Franco Nero  

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Django - Franco Nero - Curiosidades e Por Onde Anda o Ator Italiano 
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7 gatinhos

'7 Gatinhos' transforma público em cúmplice de horrores familiares

Arquitetura única do Teatro Oficina potencializa experiência claustrofóbica da obra de Nelson Rodrigues 

Andre Marcondes, fsp, 17/07,2025

 
Cena da montagem de '7 Gatinhos', no Teatro Oficina - João Maria / Divulgação

Há algo de inquietante em assistir "7 Gatinhos" no Teatro Oficina. Não apenas pela força do texto de Nelson Rodrigues – que segue atual em sua crítica ao patriarcado – mas pela forma como a encenação nos arrasta para dentro daquele universo claustrofóbico. O espaço do teatro, com sua arquitetura que dissolve fronteiras, faz com que a plateia se torne cúmplice dos horrores da família Noronha.

Joana Medeiros, na direção e também no papel de Noronha, conduz o espetáculo com mãos firmes. Sua interpretação do pai autoritário que berra "Ninguém presta!" é um retrato acabado da violência doméstica disfarçada de moralidade. Ao seu redor, o elenco constrói personagens complexos, desde as filhas com seus desejos sufocados até a presença de Bibelô – interpretado com um charme desconcertante por Victor Rosa –, o estranho que funciona como catalisador de todas as hipocrisias familiares.

O que mais impressiona é como a peça, escrita há quase 70 anos, continua a reverberar em 2025. As dinâmicas de poder, os abusos velados, a sexualidade reprimida e a dupla moral religiosa parecem ter atravessado décadas sem perder força. A encenação não tenta atualizar artificialmente o texto – pelo contrário, deixa claro que essas mazelas continuam entre nós, ainda que com novas roupagens.

A escolha de incluir artistas como Jup do Bairro – em sua estreia nos palcos – reforça o compromisso da Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona com espetáculos que pulsam vida real. Nunca uma representação distanciada, antes um mergulho coletivo nas feridas que o texto provoca.

No final, saímos do teatro com aquela sensação característica das obras rodriguianas: um misto de repulsa e reconhecimento. "7 Gatinhos" não fala apenas sobre uma família disfuncional dos anos 1950 – fala sobre todos nós, sobre as estruturas que nos moldam e as hipocrisias que insistimos em manter.

Veja cenas do espetáculo '7 Gatinhos', de Nelson Rodrigues

Três perguntas para…
… Joana Medeiros

Na peça, você interpreta Noronha, o patriarca, desafiando a tradição de papéis de gênero. Como essa escolha amplia a crítica rodriguiana ao patriarcado?

Todos os homens abusivos em mim ressurgem. Minha história de 55 anos de vida, as escolhas que brotaram desse patriarcado, ou a que fui submetida, mas também os abusos que causei enquanto filha do patriarcado adoecido.

Sobre a personagem ser do gênero masculino, sou uma mulher e artista em vias de cura, aprendendo a escuta, envolta no meu corpo branco pansexual atento, ainda em processo, na sua escultura social, de gênero e raça, sinto um caminho longo: mesmo num chão como o do Oficina, cheio de revoluções e transgressões, o feminino tem, em Nelson e em "7 Gatinhos" a responsabilidade do olho aberto, da realidade dita abertamente, pelo texto em 1957 e por nós através dele em 2025.

Para mim é fundamental sentir na pele, através desse texto, a violência desse patriarcado, para me curar de qualquer concessão, com a confiança na integridade das palavras certeiras como flechas de Nelson, para que, nossa obra e o público se decidam de uma vez por todas a reconhecer e recusar essa forma obsoleta e apodrecida de patriarcado: decisão sem volta nem trégua para todes!

A peça aborda a sexualidade feminina de forma crua. Como atualizar essa discussão para os debates contemporâneos sobre gênero?

A peça me pergunta: como renascer e desfrutar de um feminino em todos os corpos, matando o patriarcado abusivo? Nelson mata literalmente os tês homens: o jovem cafetão Bibelô, o velho pai incestuoso Noronha e o medico pedófilo obstetra Bordalo; o quarto homem é ferido de guerra e não tem sexo!

Quantas escolhas diárias o feminino tem que enfrentar na sua delicadeza e firmeza, sem concessões nem firulas, e no entanto numa concepção abrangente da união pós gênero do feminino, no renascimento da Xamã telúrica corpo/alma/sexo. A escolha na peça vai se dando aos poucos, a sexualidade "usada pelo masculino" vai sendo ressignificada e afirmada quadro a quadro: a grandeza da Revanche do Feminino (tema usado por nós na elaboração dos ensaios), se apresenta integralmente, mais do que somente a queda do patriarcado. Acredito, como diretora, nesta concepção dos quadros da peça. Nelson não nos traz cenas, traz quadros, são plasticidades, é cinema, tempo não linear, tempo/memória: "são os fatos, os fatos!

Teatro Oficina encena 'Os 7 Gatinhos' na noite de Natal

O Teatro Oficina é conhecido por dissolver fronteiras entre palco e plateia. Como esse espaço dialoga com a claustrofobia da família Noronha?

A grande claustrofobia dessa peça para mim é a descoberta da pesquisa de todos os tipos de abuso que o autor meticulosamente lista, (eu sinto Nelson investigando os crimes pessoais de todos os tipos de abuso possíveis numa só obra, por isso o impacto dela em cena).

A princípio se vê o abuso do feminino, mas o masculino se mostra abusado e exausto também através do abuso social: quando o contínuo (Noronha) diz "não vou mais servir cafezinho nem água gelada a deputado nenhum!"; o abuso da falta de cumplicidade entre as irmãs, o abuso racial que também aparece no texto: "faz de graça parto de negra"; a pedofilia, juntamente com o abuso médico, político, psicológico, emocional, físico e espiritual.

Em "7 Gatinhos" no Teatro Oficina percorremos as galerias atrás do público que se encontra envolto na trama; conseguimos crescer a casa no subúrbio do Rio, do texto do Nelson, em um grande cortiço do Bixiga, trazendo a bateria jovem da Vai-Vai desde a rua, na fila da bilheteria, até a introdução do nosso enredo. Comemos o Bixiga assim como Nelson come o crime e Zé come a tragédia orgiástica candomblaica!!! Axé!

Teatro Oficina - rua Jaceguai, 520 - Bela Vista, região central. Ter. e qua., 20h. Até 20/8. Duração: 150 minutos. A partir de R$ 35 (meia-entrada) em sympla.com.br. Morador do Bixiga: R$ 25 (compra presencial na bilheteria, mediante a comprovante de endereço em próprio nome, um ingresso por comprovante). A bilheteria do teatro abre com 1h de antecedência ao espetáculo.

Os sete gatinhos - peça 
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O começo do fim

Há 80 anos, 1ª explosão de uma bomba atômica marcou o início de uma nova era

Com teste Trinity, em 1945, humanos se tornaram capazes de destruir sua própria biosfera 

Reinaldo José Lopes & Luciano Veronezi, fsp, 13/07/2025

FOTO Bomba capa Às 5h29 de 16 de julho de 1945, cientistas de Los Alamos realizaram com sucesso o teste Trinity. Jack Aeby, membro do grupo liderado pelo físico italiano Emilio Segrè, capturou esta imagem colorida da nuvem em forma de cogumelo após a detonação da bomba - Jack Aeby/Centro Nacional de Pesquisa em Segurança (EUA)
"De repente, houve um enorme lampejo de luz, a luz mais brilhante que eu já vi ou que qualquer pessoa já viu, creio. Ela explodia; dava botes; cavava um buraco dentro da gente. Era uma visão que podia ser vista com algo mais do que com os olhos. Dava a impressão de durar para sempre."

A descrição, feita pelo físico ganhador do Nobel Isidor Isaac Rabi, é um dos diversos relatos da experiência assombrosa de presenciar a primeira explosão de uma bomba atômica. O teste Trinity, realizado às 5h29 (horário local) de 16 de julho de 1945, no deserto do Novo México (sudoeste dos Estados Unidos), marcou o início da era em que os seres humanos se tornaram capazes de destruir sua própria biosfera.

Oito décadas depois do teste, o que impressiona nos relatos dos participantes é a estranha mistura de incerteza sobre como seria a explosão (se é que ela chegaria mesmo a acontecer) com a compreensão imediata, após o sucesso da empreitada, de que o mundo jamais seria o mesmo.



Foi o momento culminante do Projeto Manhattan, um esforço que acabaria empregando 130 mil pessoas, ao custo de US$ 2 bilhões de então (ou quase R$ 200 bilhões em valores de hoje), entre 1942 e 1946. Ironicamente, a inspiração original para o projeto partiu do pacifista Albert Einstein e de seu colega húngaro Leo Szilard.

Em carta formulada pelos dois, assinada por Einstein e entregue ao presidente americano Franklin Roosevelt em outubro de 1939, os cientistas alertavam sobre o risco de a Alemanha nazista desenvolver armas atômicas e pediam que os EUA estimulassem suas próprias pesquisas sobre o tema.

Os americanos ainda demorariam dois anos para entrar na Segunda Guerra Mundial. Mas, após o início da participação do país no conflito, grande parte dos maiores físicos do mundo passou a receber apoio das Forças Armadas no desenvolvimento das primeiras armas atômicas.

Coordenado pelo nova-iorquino Julius Robert Oppenheimer no laboratório de Los Alamos, no Novo México, formou-se um "dream team" da ciência mundial. O objetivo inicial de muitos desses cientistas era usar o "novo tipo de bomba" como arma decisiva contra o nazismo, encerrando de vez o conflito global.

Entretanto, os imensos desafios envolvidos na fabricação do artefato –ou "a geringonça", como era chamado informalmente pela equipe– fizeram com que a guerra se aproximasse do fim, com a chegada do ano de 1945, sem que o trabalho estivesse concluído. Na Europa, a vitória dos Aliados contra os nazistas foi proclamada em 8 de maio.

Mas o Japão, país aliado de Hitler cujo ataque ao Havaí tinha levado os americanos a entrar na guerra, ainda não se rendera. Os EUA se preparavam para uma invasão do território japonês, mas consideravam que as bombas atômicas poderiam aterrorizar o adversário a ponto de fazê-lo se entregar incondicionalmente.

Diante disso, o trabalho em Los Alamos prosseguiu a todo vapor. A equipe de Oppenheimer havia desenvolvido dois modelos diferentes da primeira bomba, um bem mais simples e ineficiente, outro considerado mais elegante do ponto de vista da física envolvida, mas também mais complexo.

Em 1945, explosão da bomba atômica fotos

No teste, marcado para acontecer numa área do deserto conhecida como Jornada del Muerto, a "geringonça" era composta de uma complexa combinação de elementos químicos radioativos, em especial o plutônio e o urânio, e explosivos convencionais.

A ideia era que a detonação dos explosivos acontecesse de tal maneira que eles aumentassem de forma intensa e rápida a densidade do núcleo radioativo da bomba. Isso desencadearia a reação em cadeia que "quebra" os núcleos dos átomos, liberando imensas quantidades de energia em minúsculas frações de segundo.

Ainda há certo mistério acerca de como a testagem acabou ganhando seu codinome oficial. "Oppenheimer apelidou o teste de ‘Trinity’, embora, anos depois, não soubesse com muita certeza por que escolhera esse nome", escrevem os biógrafos do físico, Kai Bird e Martin Sherwin.

Ambas as possíveis inspirações para a designação, de qualquer maneira, refletem o caráter vagamente místico e as obsessões literárias do líder do Projeto Manhattan. Uma delas é um poema do sacerdote anglicano John Donne (1572-1631) sobre a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo, na crença cristã). Outra possibilidade, dizem Bird e Sherwin, é que ele estivesse pensando em outra trindade divina, a da religião hindu, formada por "Brahma, o criador, Vishnu, o preservador, e Shiva, o destruidor".


 
Monumento no local onde houve a detonação da bomba nuclear no teste Trinity - Centro Nacional de Pesquisa em Segurança (EUA) 

O local escolhido para o teste, repleto de cactos, escorpiões, cascavéis e aranhas de grande porte, precisou receber infraestrutura praticamente do zero.
'Dia da pescaria'

A data de 16 de julho –apelidada de "dia da pescaria" nas mensagens cifradas do grupo– acabou sendo fixada em parte por motivos políticos.

O novo presidente dos EUA, Harry Truman, estava se reunindo naqueles dias com os demais Aliados em Potsdam, na Alemanha ocupada, e queria usar o resultado para ganhar peso político e militar diante dos soviéticos. Era mais um motivo de tensão, já que o meteorologista da equipe, Jack Hubbard, estava prevendo tempestades próximas da data, o que poderia afetar o equipamento.

O processo de levar todo o material de Los Alamos para Jornada del Muerto começou no dia 12, depois de a equipe ter recoberto o núcleo de plutônio da bomba com folhas de níquel e ouro, para evitar a corrosão do material e absorver as partículas radioativas alfa emitidas pelo elemento químico.

Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica fotos

No dia seguinte, as peças começaram a ser montadas, e a equipe tomou um susto quando viu que o "concentrador" de urânio que recobriria o plutônio não parecia se encaixar direito. Eles perceberam que o problema era a diferença de temperatura –a radioatividade do plutônio era suficiente para esquentá-lo, enquanto o urânio estava mais frio. Bastou deixar as peças em contato para que o encaixe enfim desse certo.

Depois foi a vez dos explosivos convencionais, em parte presos no formato certo com a ajuda de fita adesiva. A bomba, por fim, foi levada para o alto da torre por um guindaste elétrico, e militares colocaram uma pilha de colchões embaixo, só para o caso de acontecer algum acidente.

Membros do projeto fizeram apostas sobre qual seria a força da explosão, conta o jornalista americano Richard Rhodes no livro "The Making of the Atomic Bomb" ("A Criação da Bomba Atômica", sem versão brasileira).

Efeitos da primeira explosão da bomba atômica foram subestimados Radiação do teste nuclear Trinity alcançou 46 estados americanos, Canadá e México

Houve quem apostasse que não aconteceria nada, enquanto o italiano Enrico Fermi, já então ganhador do Nobel, mencionou a possibilidade de que a explosão incendiasse a atmosfera, chegando a destruir o Novo México ou mesmo o mundo inteiro (os cálculos da equipe sugeriam que isso era praticamente impossível).

Hubbard, o meteorologista, garantiu que, pouco antes do amanhecer do dia 16, as tempestades parariam, o que de fato aconteceu. A maior parte da equipe de Los Alamos chegou ao posto de observação a 32 km de distância.

"Mandaram que ficássemos deitados na areia, com o rosto virado para o lado oposto ao da explosão e cobrindo a cabeça com os braços", recordou mais tarde o físico húngaro Edward Teller. "Ninguém obedeceu. Estávamos determinados a olhar nos olhos da fera." Vários dos cientistas passaram loção contra queimaduras no corpo, colocaram óculos escuros e se prepararam para observar o teste com máscaras de soldador.
Quando a detonação enfim aconteceu, um turbilhão de sensações inesperadas atingiu os observadores. Em primeiro lugar, foi como se a madrugada virasse dia claro por alguns segundos –quem não cobriu os olhos com alguma proteção chegou a ficar cego por meio minuto.

O barulho tremendo, o calor e a onda de choque provocadas pela explosão chegaram mais tarde, assim como a mudança de cores da luz –vermelha, azul e arroxeada– e a altura alcançada pelo "cogumelo" da bomba na atmosfera.

As primeiras vítimas da nova tecnologia foram coelhos do deserto, mortos a uma distância de mais de 700 metros da torre.

Depois de parabenizar os coordenadores da equipe pelo sucesso do método empregado na bomba, o coordenador do teste, Kenneth Bainbridge, virou-se para Oppenheimer e disse: "Agora somos todos filhos da puta".
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Ana Maria Gonçalves  é eleita para ABL e se torna primeira mulher negra a virar imortal
Autora de 'Um Defeito de Cor' rompe com 128 anos de história e diz que vitória sinaliza a abertura a uma língua mais inclusiva 

Walter Porto, fsp, 10/07/2025

 
A escritora Ana Maria Gonçalves, primeira mulher negra eleita à Academia Brasileira de Letras, na exposição inspirada em seu livro 'Um Defeito de Cor', no Sesc Pinheiro - Eduardo Knapp - 23.abr.2024 / Folhapress

Depois de 128 anos de história, a Academia Brasileira de Letras acaba de eleger a primeira mulher negra para sentar em uma de suas 40 cadeiras. Ana Maria Gonçalves, autora do romance "Um Defeito de Cor", foi eleita na tarde desta quinta-feira para a vaga antes ocupada pelo linguista Evanildo Bechara.

A escritora mineira de 54 anos foi a primeira a se inscrever para cadeira número 33 após a sessão da saudade de Bechara, no dia 27 de maio, um sinal de como a candidatura foi bem costurada dentro da ABL. Ela já largou à corrida como favorita.

Sou escritora negra, mas minha obra é universal, diz autora de 'Um Defeito de Cor'  A autora levou 30 votos contra um da escritora indígena Eliane Potiguara. Havia outros 11 concorrentes: Ruy Lobo, Wander Lourenço de Oliveira, José Antônio Hartmann, Remilson Candeia, João Calazans Filho, Célia Prado, Denilson Marques da Silva, Gilmar Cardoso, Roberto Numeriano, Aurea Domenech e Martinho de Melo.

Exposição baseada em 'Um Defeito de Cor'

Gonçalves atendeu à Folha em meio à euforia da comemoração, durante uma recepção na casa de Roberta Machado, sócia de sua editora, a Record. A eleição, segundo a nova imortal, pode ser lida como o sinal de uma instituição mais afinada à diversidade real do Brasil.

"Pode estar mandando um recado de que a Academia está mais aberta a repensar o trato institucional de uma língua portuguesa mais inclusiva, pensando na riqueza que os africanos e indígenas incorporaram à nossa língua mátria", aponta ela. A escritora diz que, antes de se candidatar, refletiu sobre as razões que a impeliam a a ocupar uma vaga —foi a primeira vez que Gonçalves tentou ingressar na Casa de Machado.

"Pensei que posso levar para a ABL um público leitor que não se via representado, ainda, em grande parte da literatura que se produz lá dentro. Tenho muita vontade de agir institucionalmente em prol de novos escritores e novas tecnologias de saber, incorporando a oralidade e a escrevivência, por exemplo, que são modos muito nossos de fazer literatura."

 
A nova imortal Ana Maria Gonçalves na exposição inspirada em seu livro 'Um Defeito de Cor', no Sesc Pinheiros - Eduardo Knapp - 23.abr.2024/Folhapress 

A obra da autora é considerada um ponto de virada na literatura negra brasileira. "Um Defeito de Cor", publicado pela Record em 2006, foi um marco na elaboração literária da história do Brasil, com olhos voltados à diáspora africana e aos efeitos da escravidão como modulares da identidade do país.

"Gonçalves é uma das responsáveis, no Brasil, pelo encontro mais fértil entre as autoras negras e o gênero romance", afirma a crítica literária Fernanda Miranda, que estudou em seu doutorado a maneira como a produção de romancistas negras se expandiu a partir do ano de publicação da obra-prima da mineira.

O romance, aliás, ficou em primeiro lugar em lista recente da Folha que convidou 101 especialistas para escolher os melhores livros de literatura brasileira do século 21.

Segundo Miranda, que é professora da Universidade Federal da Bahia, o livro "amplia nossa concepção de África como um território multifacetado, complexo, vibrante, porque é formulado pelo conflito e não pela idealização". Da mesma forma, "traduz de forma exemplar" como o Brasil é um país que está em constante movimento entre diferentes culturas.

O romance histórico, que já vendeu 180 mil exemplares e inspirou de exposições de arte a enredo de escola de samba, acompanha ao longo de 950 páginas a vida da narradora Kehinde, desde seu sequestro na África, passando pela escravização no Brasil até a busca por seu filho perdido —a personagem tem traços inspirados na vida de Luiza Mahin, tida como mãe do advogado abolicionista Luiz Gama.

Gonçalves não voltou a escrever outro romance nos 19 anos que se seguiram ao lançamento da obra, tendo se dedicado principalmente a dramaturgia e roteiros de audiovisual —em entrevista à Folha, ela disse que ficou "muitos anos sem conseguir produzir absolutamente nada porque tinha medo de falhar" após o sucesso de "Um Defeito de Cor".

"É um acontecimento histórico", diz Fernanda Miranda sobre a eleição da escritora à ABL. "A presença de autoras negras é uma realidade no sistema literário brasileiro. O mercado editorial já sabe, a universidade está aprendendo, a crítica literária tem se revelado menos cega do que já foi. Instituições tradicionais como a ABL demoram ainda mais tempo para perceber que literatura é movimento, não algo estático."

A eleição, segundo ela, sinaliza um passo da Academia na direção de um entendimento menos restrito da literatura. "Ou seja, ganha mais a ABL. É ela que se enriquece ao trazer para seu convívio uma das autoras mais prestigiadas da língua portuguesa no século 21."
É curioso que outra dessas autoras, hoje amplamente reconhecida como ponta de lança da literatura nacional, foi preterida pela mesma instituição há apenas sete anos.

Conceição Evaristo foi protagonista de uma rumorosa candidatura, em 2018, que postulava que ela passasse a ocupar a vaga de Nelson Pereira dos Santos. A escritora teve apenas um voto na ocasião, e o cineasta Cacá Diegues foi eleito —hoje a cadeira é ocupada pela jornalista Míriam Leitão, escolhida em abril.

A candidatura de Conceição, que partiu menos dela que de um movimento público que incluiu um abaixo-assinado com 20 mil assinaturas, foi percebida pela Academia como intimidação. Os imortais têm uma expectativa de que o postulante passe por um certo ritual, que envolve a manifestação do interesse na vaga, a aproximação aos acadêmicos e o envio de livros para os votantes.

Se há sete anos a escritora não cumpriu esses protocolos —e não poupou a ABL de críticas desde então—, Gonçalves fez tudo isso. E diz que a autora de "Ponciá Vicêncio" foi mal orientada na época. "Eu gostaria de esclarecer esse mal-entendido agora. Mas, de todo modo, a candidatura dela foi extremamente vitoriosa para fazer a Academia se ver como um lugar que não tinha diversidade."

Agora se arma o terreno para uma possível nova tentativa de Conceição, apadrinhada por membros mais recentes da instituição, após o pioneirismo ser quebrado por Gonçalves. E de fato, os últimos anos viram a Academia se engajar em alguns ineditismos, como o de Ailton Krenak, primeira pessoa indígena empossada em uma cadeira, no ano passado.
O compositor Gilberto Gil se tornou o raro homem negro fazendo companhia ao imortal Domício Proença Filho na instituição fundada por Machado de Assis. E a presença de mulheres aumentou de leve com Míriam Leitão e Lilia Schwarcz —mas, com Gonçalves, elas são apenas 13 em toda a história da ABL.

Por outro lado, houve a inclusão de acadêmicos do perfil masculino e branco que sempre foi regra, a exemplo do advogado José Roberto de Castro Neves e do escritor Edgard Telles Ribeiro, para citar dois dos últimos meses.
"Essas eleições recentes têm cumprido um importante papel social ao reacenderem um debate público mais amplo sobre a histórica falta de representatividade de mulheres, negros e indígenas em espaços de poder, suscitado justamente pela candidatura de Conceição Evaristo", diz a professora Michele Asmar Fanini, que pesquisa a instituição pelo recorte de gênero e escreveu "Fardos e Fardões".

O momento, diz ela, traz oportunidade de refletir sobre a "lógica arbitrária e parcial" do cânone até aqui e "identificar os mecanismos de exclusão que nele operam, fruto de uma engenhosa e intrincada construção social".

A escritora Cidinha da Silva diz que "não se pode restringir a presença de Ana Maria Gonçalves nesse pleito ao fato de ser uma mulher negra, embora seja importante ter gente negra em todos os lugares de poder, mando e decisão". Gonçalves foi convidada a se candidatar, segundo ela, "porque é uma das maiores escritoras vivas do Brasil".

A crítica Fernanda Miranda diz estar mais numa posição de observação cautelosa que de pura celebração.

"É importante estarmos alertas para não confundir um ato de auto-resgate de uma instituição tida como falida por muitos com um ato de reconhecimento verdadeiro. Foi Conceição Evaristo quem disse, o importante não é ser o primeiro ou a primeira, o importante é abrir caminhos. Vamos observar os próximos passos para saber se Ana Maria e Krenak vão figurar como elementos únicos, como símbolos de ausências, ou se a ABL está apontando para novos contornos."
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Carlos Lemos – Edifício Copan

Arquiteto do Copan e memória de São Paulo, Carlos Lemos faz 100 anos

Raul Juste Lores, UOL, 09/07/2025

Nove de Julho é feriado, nome de avenida imensa cortando bairros importantes, mas pouca gente sabe explicar bem o que aconteceu nessa data. E mesmo esses poucos talvez repitam a narrativa da ditadura varguista. Estudar história não é nosso forte. Da arquitetura, então, menos ainda. Daí a exceção superlativa da carreira de Carlos Lemos.

O arquiteto completou 100 anos, lançando livro novo, o "Cidade sem Vestígios" (sim, a nossa São Paulo), em edição do Instituto Sarasá. Não há outro paulistano com uma carreira tão longeva em defender nossa memória, com estudo e preocupação. Numa cidade de ativistas com interesses unicamente partidários ou imobiliários, Lemos é preservacionista-raiz.

 
Novo livro de Carlos Lemos: Cidade sem Vestígios Imagem: Divulgação

O fato de não ter sido feita uma única reportagem de TV (ou reportagem mesmo) sobre esse centenário é apenas mais uma prova de que se dedicar à memória não dá audiência. O suposto interesse paulistano em tombamentos se esvai quando o imóvel não está na rua ou no bairro dos ativistas com interesses.

Mesmo no exíguo mundo da arquitetura, com exceção de Niemeyer, Artigas, Mendes da Rocha e Lina, as homenagens são escassas. Lemos não pertence a panelas, em uma categoria farta delas.

E olha que Lemos foi escolhido como braço-direito do escritório de Oscar Niemeyer em São Paulo quando tinha apenas 25 anos, formado há pouco na primeira turma de Arquitetura do Mackenzie. Foi ele quem executou e completou o edifício Copan, quando Niemeyer já havia largado as encomendas paulistanas para se dedicar exclusivamente a projetar Brasília.

 
Edifício_Copan_-_frente Vista de frente do Edifícil Copan wiki

Também colaborou nos inúmeros projetos para o Ibirapuera e para o amigo incorporador Octavio Frias de Oliveira, como os prédios Eiffel, Montreal e Triângulo. E ainda fez, inspirado por Di Cavalcanti, o painel na praça interna do Edifício-Galeria Califórnia (sim, Lemos também é artista, e premiado). Em carreira solo, fez diversas casas em São Paulo, Ubatuba e em Ibiúna, como a casa para seus amigos Ruth e Fernando Henrique Cardoso.

Mas são sessenta anos de luta pela preservação do patrimônio. Foi o primeiro diretor técnico do Condephaat, o conselho estadual, de 1968 a 1981, e logo depois conselheiro do órgão (1983 a 1990). Foi também conselheiro do Iphan, o órgão federal, e do municipal Conpresp. Lecionou Historia da Arquitetura por 58 anos na FAU-USP, e publicou por quase dez anos um Dicionário da Arquitetura Brasileira na revista Acrópole, em conjunto com o colega Eduardo Corona.

História e paisagem

Ao contrário de outros colegas modernistas, sua curiosidade e paixão se estendem a estilos pré-modernos. Estudou da casa de taipa à arquitetura da primeira República, dos casarões dos barões do café a intervenções contemporâneas em prédios históricos. Seu centenário deve estimular a leitura de muitos de seus livros. Recomendo A Historia do Edificio Copan, publicado pela editoria da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; "Viagem pela Carne" e "Casa Paulista", ambos da Edusp; e dois livros da inesquecível da coleção Primeiros Passos, "O que é Arquitetura" e "O que é Patrimônio Histórico". 

Estes últimos facilmente encontráveis nos sebos sobreviventes pela cidade.
(O do Copan é particularmente saboroso. O prédio símbolo de São Paulo levou 18 anos para ficar pronto, e é um suco de economia, política e arquitetura do Brasil. Para tanto político e empresário pouco lido, que acha que São Paulo não tem ícones, é leitura obrigatória.)

Tive a sorte de entrevistá-lo diversas vezes para o meu livro São Paulo nas Alturas (Companhia das Letras). Com humor e memória impressionante, contava causos de quando era estudante no Mackenzie, do pequeno caos de trabalhar com Niemeyer e Di Cavalcanti na rua 24 de Maio, e das disputas do nascente mercado imobiliário da São Paulo dos anos 1950.

Até me confidenciou da ciumeira que o sucesso do autodidata Artacho Jurado provocava nos diplomados. E elogiava diversos colegas mackenzistas, de Pedro Paulo de Melo Saraiva e Joao Kon a Victor Reif e Franz Heep (estes últimos dois, professores), alguns dos que mereciam ter recebido muitas outras homenagens.

Também descobri que ele não era o único da família a deixar marcas na paisagem paulistana. Seu irmão, o artista Fernando Cerqueira Lemos, fez o enorme mural de concreto na fachada inclinada do edifício Gazeta, na Paulista. Sim, aquele Gazeta Gazeta Gazeta que dá movimento ao paredão feito pelo engenheiro Figueiredo Ferraz, autor do prédio, e que ganhou uma bem-vinda abertura-recorte no térreo com a abertura do cine Reserva Cultural.

Formado em Jornalismo, Fernando ainda foi editor do caderno de Artes Visuais da Folha de S. Paulo. Sim, São Paulo já soube chamar artistas pra reinventar fachadas, em vez de espalhar fios LED natalinos ou marcas de luxo cafona. Como Carlos, Fernando tem muita história. Parabéns aos irmãos Lemos!
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Mahler - Sinfonia No. 3 em Ré menor |Cristian Măcelaru| Orquestra Sinfônica da WDR Coro da Rádio ________________________________

Jovens de Hiroshima pintam relatos de sobreviventes da bomba atômica

Colégio para artistas renova tradição anual e revela quinze novas obras produzidas para o 80º aniversário da tragédia

Tomohiro Osaki, fsp, 07/07/2025

Masaki Hironaka tinha cinco anos quando atravessou de mãos dadas com sua mãe as ruínas de Hiroshima, quatro dias após a bomba atômica lançada pelos Estados Unidos em 1945. Agora, sua lembrança ganha vida graças à arte.

É uma das muitas cenas gravadas na memória deste sobrevivente que, 80 anos depois desse bombardeio, são transferidas para uma tela pelas mãos de um grupo de adolescentes japoneses.
Há quase 20 anos, o liceu Motomachi de Hiroshima encarrega seus alunos de arte de recolher os testemunhos dos "hibakusha", https://www1.folha.uol.com.br/blogs/andancas-na-metropole/2025/03/os-ultimos-hibakushas.shtml os sobreviventes da bomba atômica, e transformá-los em pinturas pungentes.

 
Masaki Hironaka observa pintura feita pela estudante Hana Takasago, da escola Motomachi, em Hiroshima - Richard A. Brooks/AFP 

O centro educacional revelou recentemente quinze novas obras por ocasião do 80º aniversário da catástrofe de 6 de agosto de 1945. Nelas, veem-se soldados carbonizados se contorcendo de dor, ou uma menina petrificada em meio às chamas.

"Penso que esta pintura transmite de forma muito fiel o que eu sentia naquela época", diz Hironaka à AFP, assentindo satisfatoriamente com a cabeça diante de uma obra que imortaliza "uma página inesquecível" de sua vida.
O quadro, da estudante Hana Takasago, retrata o jovem Masaki, erguendo o olhar para sua mãe, enquanto ambos avançam entre as ruínas ainda fumegantes da cidade em 10 de agosto de 1945. "É autêntica e está muito bem desenhada", afirma o protagonista.

Hibakushas, os sobreviventes das bombas atômicas fotos

Alguns dias antes, seu pai voltou para casa gravemente queimado pela explosão e pediu que ele retirasse um pedaço de vidro profundamente cravado em sua perna. Morreu pouco tempo depois.
Na pintura, sua mãe, já viúva, segura a pequena mão de Masaki e leva nas costas sua irmã mais nova. "Naquele instante, senti uma determinação profunda de ajudá-la, apesar da minha pouca idade. É este sentimento que fica aqui capturado", diz o sobrevivente, que agora tem 85 anos.
"Tinha apenas cinco anos quando isso aconteceu comigo e fui traumatizado por um evento tão perturbador. Quando tento contar esses momentos, mal consigo conter as lágrimas", explica.


 
Quadro pintado por aluno da escola Motomachi, em Hiroshima - Richard A. Brooks/AFP 

Transmitir a memória

A bomba atômica lançada sobre Hiroshima matou cerca de 140.000 pessoas, algumas falecidas mais tarde devido à exposição à radiação.
O liceu Motomachi participa de um projeto iniciado pelo Museu do Memorial da Paz de Hiroshima que, ao longo dos anos, viu nascer mais de 200 obras. O objetivo é transmitir a lembrança desse bombardeio às jovens gerações.
Nos últimos meses, os sobreviventes como o próprio Hironaka têm se reunido regularmente com os alunos para falar sobre a evolução das obras e, às vezes, para pedir mudanças.
"No início, representei o senhor Hironaka e sua mãe de frente, mas ele me disse que (...) isso não refletia realmente o combate interior que ela vivia naquele momento", conta à AFP Hana Takasago, de 17 anos.

'Little Boy' e o grande poder de destruição - fotos

"Sem ter visto as cenas descritas, nunca estava segura de que minha representação fosse adequada", explica no enorme ateliê de seu liceu.

Sua colega Yumeko Onoue, de 16 anos, pintou algumas abóboras que Hironaka lembra ter visto cobertas de enxofre devido à "chuva negra" radioativa, mas mudou a orientação das folhas para ser fiel à lembrança do sobrevivente. "Como as fotos da época são em sua maioria em preto e branco, a pintura permite adicionar cor, destacar alguns elementos, o que me parece ideal para transmitir uma mensagem", afirma a estudante.

"A última geração"

Muitos adolescentes tiveram que recorrer à sua imaginação ou consultaram documentos históricos sobre essa catástrofe em uma tarefa nem sempre agradável.

Mei Honda, de 18 anos, diz que foi "emocionalmente exaustivo" representar a carne carbonizada e pendurada das vítimas. Seu quadro mostra uma mulher nesse estado que tenta beber água.
"Primeiro desenhei seus braços colados ao torso, mas o contato com a pele teria sido insuportável devido às queimaduras", conta a aluna.

 
Estudante da escola Motomachi, em Hiroshima, faz quadro inspirado em relatos dos sobreviventes na bomba atômica de 1945 - Richard A. Brooks/AFP 
Oitenta anos depois, restam apenas cerca de 100.000 sobreviventes dos bombardeios atômicos americanos sobre Hiroshima e Nagasaki, https://m.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1666483-nagazaki-lembra-os-70-anos-da-2-bomba-atomica-lancada-pelos-eua.shtml segundo dados recentes. E a idade média destes é de 86 anos.

Entre os alunos que participam deste projeto artístico, impõe-se um sentido de urgência. "Somos provavelmente a última geração a ter a oportunidade de ouvir as experiências dos 'hibakusha' pessoalmente", diz Aoi Fukumoto, de 19 anos.

Para alguns, como Hana Takasago, é uma experiência iluminadora. "Antes de participar deste projeto, as consequências da bomba atômica sempre me pareciam distantes, mesmo sendo originária de Hiroshima".

Mas depois de ouvir a história de Hironaka, "não posso ficar como uma simples espectadora", assegura.
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Di Melo 

Di Melo, O Imorrível - Documentário 

Di Melo com Charlies Gavin - no Programa "O Som do Vinil" Canal Brasil 

Di Melo e Gabi Di Abade - Engano ou castigo  

Di Melo imorrivel e Gabi Di Abade 

Di Melo e Gabi Abade - Kilariô (AO VIVO Sesc Belenzinho) 
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A morte em proparoxítonas

Alvarenga e Ranchinho, uma dupla sertaneja das antigas, punha humor e sofisticação na sofrência

Ruy Castro, fsp, 05/07/2025

"Ouve meu cântico, quase sem ritmo/ Que a voz de um tísico, magro, esquelético/ Poesia ética em forma esdrúxula/ Feita sem métrica com rima rápida.// Amei Angélica, mulher anêmica/ De cores pálidas e gestos tímidos/ Era maligna e tinha ímpetos/ De fazer cócegas no meu esôfago.// Em noite frigida, fomos ao Lírico/ Ouvir o músico, pianista célebre/ Soprava o zéfiro, ventinho úmido/ Então Angélica ficou asmática.// Fomos ao médico de muita clínica/ Com muita prática e preço módico/ Depois do inquérito descobre o clínico/ O mal atávico, mal sifilítico.

"Mandou-me célere comprar noz vômica/ E ácido cítrico para o seu fígado/ O farmacêutico, mocinho estúpido/ Errou na fórmula, fez despropósito.// Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo/ Ácido fênico e ácido prússico./ Corri mui lépido mais de um quilômetro/ Num bonde elétrico de força múltipla.// O dia cálido deixou-me tépido/ Achei Angélica já toda trêmula/ A terapêutica dose alopática/ Lhe dei em xícara de ferro ágate.// Tomou num fôlego, triste e bucólica/ Essa estrambótica droga fatídica/ Caiu no esôfago, deixou-a lívida/ Dando-lhe cólica e morte trágica.

"O pai de Angélica, chefe do tráfego/ Homem carnívoro, ficou perplexo./ Por ser estrábico, usava óculos/ Um vidro côncavo, e o outro convexo.// Morreu Angélica, de um modo lúgubre/ Moléstia crônica levou-a ao túmulo/ Foi feita a autópsia, todos os médicos/ Foram unânimes no diagnóstico.// Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico/ Todo de mármore da cor do ébano/ E sobre o túmulo uma estatística/ Coisa metódica como "Os Lusíadas".// E, numa lápide paralelepípedo/ Pus esse dístico, terno e simbólico:/ ‘Cá jaz Angélica, moça hiperbólica/ Beleza helênica, morreu de cólica.’"

O que é isso? Uma modinha, "O drama da Angélica", de certos Barreto e Lubiti, gravada em 1942 pela famosa dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. A letra, toda em proparoxítonas, é uma obra-prima. O vídeo está no YouTube — não perca.

Sim, a sofrência das duplas sertanejas brasileiras já foi assim.

 
A dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho, durante apresentação, em 1975 - Folhapress/Folhapress 

Alvarenga & Ranchinho - Drama De Angélica vídeo 
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Primeiro banho no Sena

Primeiro banho no Sena em um século tem água quente e fila pequena. Paris libera mergulho em 3 trechos do rio; praia artificial tem decoração nas cores do Brasil este ano

André Fontenelle, fsp, 05/07/2025

 

"Gente, eu tomava banho na praia da Ilha [do Governador]. Eu vou ter medo de água do Sena?", disse, entre gargalhadas, a carioca Carla
Os primeiros banhistas "oficiais" do Sena em mais de um século entraram na água às 8h01 de Paris (3h01 em Brasília) deste sábado (5). O mergulho foi liberado em três pequenos trechos do rio que atravessa a capital francesa, depois de uma obra bilionária de despoluição.

Apesar da expectativa, o acontecimento histórico atraiu quase tantos jornalistas quanto banhistas. Embora as três piscinas naturais comportem até 600 pessoas ao mesmo tempo, a fila para entrar na água foi pequena nas primeiras horas, em parte devido aos 18°C da manhã parisiense. Quem mergulhou, porém, se disse maravilhado com a qualidade e a temperatura da água (25°C).

 
Pessoas pulam no rio Sena, diante da torre Eiffel, no primeiro dia de liberação para banho público - Abdul Saboor/Reuters 

"Está melhor dentro da água do que fora", opinou o contador Paul Lemoine, 27, um dos primeiros a mergulhar. Ele disse que fez questão de chegar na primeira hora. "O Sena simboliza Paris, os Jogos Olímpicos do ano passado. Virei sempre que possível."

Tomar banho no Sena foi proibido em 1923, devido à poluição. As obras para livrar o rio do lixo, do esgoto e dos resíduos industriais custaram cerca de € 1,4 bilhão (R$ 9 bilhões).

No ano passado, o rio foi usado para as provas de triatlo e maratona aquática dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em meio a controvérsias sobre a qualidade da água. Neste sábado, porém, o nível de bactérias estava "muito baixo", segundo o governador da região Ile-de-France (à qual pertence Paris), Marc Guillaume.

Moradoras de Paris, as brasileiras Carla Soares e Patrícia Huchedé também elogiaram a qualidade da água: "Gente, eu tomava banho na praia da Ilha [do Governador]. Eu vou ter medo de água do Sena?", disse, entre gargalhadas, a carioca Carla.

A prefeita Anne Hidalgo compareceu à inauguração, mas não mergulhou - ao contrário do ano passado, quando entrou na água às vésperas dos Jogos Olímpicos, para demonstrar a balneabilidade do rio. Ela disse que vai mergulhar "como uma parisiense", sem anunciar à imprensa o dia. Segundo Hidalgo, o objetivo é que haja 30 locais de banho no Sena dentro de alguns anos.

Paris volta a permitir banho no rio Sena - fotos

Hidalgo estava acompanhada do prefeito da Cidade do Cabo, na África do Sul, Geordin Hill-Lewis, que afirmou querer criar algo semelhante em sua cidade: "O que estamos vendo aqui é muito inspirador, é exatamente o que queremos imitar."

A liberação do banho ocorreu com um toque brasileiro. Este ano, Paris Plages, nome dado às praias artificiais montadas a cada verão nas margens do Sena, homenageia o Brasil. Além de cadeiras de praia nas cores da bandeira brasileira, haverá eventos culturais relacionados ao país durante todo o verão, como uma exposição de imagens do fotógrafo João Farkas, parte da programação do Ano do Brasil na França.

Em um dos trechos do Sena, também é possível comprar bebidas e salgados brasileiros. Uma caipirinha sai por € 12 (R$ 77), enquanto uma porção de cinco salgadinhos (pão de queijo, coxinha, quibe, rissole e pastel de bacalhau) custa € 10 (R$ 64).

À tarde, a prefeita Hidalgo inaugurou Paris Plages ao lado do ex-jogador de futebol Raí, que mora em Paris, e do comissário do Ano do Brasil na França, Emilio Kalil. À noite, estava previsto um baile de Carnaval no Grand Palais. No domingo (6), a avenida dos Champs-Elysées, principal da capital francesa, abriga um desfile de Carnaval, um dos pontos altos da programação brasileira na França este ano.

 
Primeiros banhistas nada no rio Sena após processo de despoluição - Julien de Rosa/AFP 

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Goleador palestino entrega o bicho à Faixa de Gaza

Juca Kfouri UOL 02/07/2025

Abou Ali comemora gol marcado pelo Al Ahly contra o Porto no Mundial Imagem: Susana Vera/REUTERS

O jogador palestino Wissam Abu Ali, estrela do clube egípcio Al-Ahly, anunciou ontem, segunda-feira, que doará todo o dinheiro da sua premiação da Copa do Mundo de Clubes da FIFA para Gaza, na Palestina.

De acordo com a agência de notícias Sanad, o jogador e artilheiro da seleção palestina dedicou o dinheiro da sua premiação da Copa do Mundo, estimado em 25 milhões de libras egípcias, para apoiar os esforços humanitários e de assistência na Faixa de Gaza, vítima de genocídio e fome há mais de 21 meses.

Abu Ali se destacou durante sua participação com o Al-Ahly na Copa do Mundo de Clubes da FIFA de 2025, atualmente realizada nos Estados Unidos, marcando três gols contra o clube português Porto.
O Al-Ahly decidiu o futuro da sua estrela palestina na noite de segunda-feira, de acordo com o diretor esportivo do clube, Mohamed Youssef, que anunciou oficialmente que o jogador não seria liberado, apesar das inúmeras ofertas da Europa e do Golfo.

Abu Ali disputou 60 partidas pelo Al-Ahly, marcando 38 gols e deu dez passes para gol em diversas competições, contribuindo para os títulos da liga do clube nas últimas duas temporadas.

Ele também conquistou a Liga dos Campeões da CAF de 2024 e a Supercopa do Egito no mesmo ano, além de ter sido eleito o artilheiro da liga na temporada 2023-24.
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Emicida: a conversão da rebeldia em produto de mercado - vídeo



quarta-feira, 30 de julho de 2025

A peça de teatro "Copenhagen": Bohr, Heisenberg e Margrethe

Versão brasileira da peça de teatro Copenhagen (de Michael Frayn) para fins didáticos

Luis Felipe Massarico Cardoso

Revista Hipótese, Itapetininga, v. 1, nº 1, p. 109-174, 2015 

O homem é único agente que faz ciência algo imoral. Não esqueça Hiroshima.(do filme Solaris de Andrei Tarkoviski de 1972, baseado o livro Solaris de Stanislaw Lem)

Apresentação

Bohr e Heisenberg:, amigos de longa data se encontram depois de mortos.

Heisenberg: era considerado um membro da família Bohr desde sua chegada em 1921; “juntos” criaram a interpretação de Copenhagen, de onde surgiram contribuições esplêndidas para a mecânica quântica. A fundação dessa nova área dá reviravolta no mundo da física. Bohr e Margrethe, judeus. Heisenberg, alemão. 1939 explode a Segunda Grande Guerra. Alemães perseguem judeus, físicos judeus fogem para outros países. Físicos alemães, liderados por Heisenberg iniciam o projeto de um programa nuclear alemão. 

Ele em 1941 procura Bohr em Copenhagen. O que aconteceu de tão drástico que pôs fim a uma amizade de anos, que rompeu os laços familiares desses personagens? Qual o conteúdo que teve a conversa? Só a incerteza pode ser complementada. 

Michael Frayn, após pesquisar em inúmeras fontes, escreveu esta história na forma de teatro, onde tentou retratar o que teria se passado naquela conversa sombria na noite de 1941 em Copenhagen.

Apresentada na Broadway (Nova Iorque), teatro General San Martín (Buenos Ayres) e também pela equipe Arte e Ciência no Palco (São Paulo), a peça foi um sucesso em quase todas as pesquisas, referências e resenhas achadas na rede. Além do inglês, versões do livro também estão disponíveis na internet (entre venda e versões em arquivo .pdf) em francês, alemão, italiano, russo e espanhol. 

Um filme foi realizado com base no livro, o nome é “Copenhagen”, sob direção de Howards Davies, estrelado por Stephan Rea (Niels Bohr), Daniel Craig (Werner Heisenberg) e Francesca Annis (Margreth Bohr), a adaptação televisiva tem 90 minutos.

A tradução desta peça, do espanhol (apresentado no teatro San Martín, em 2002 e disponível na internet em .pdf) para o português, foi pensada e realizada com o intuito da disseminação da ciência através da cultura para o povo de língua portuguesa, visto que muitos alunos relatam durante as aulas e conversas informais, a dificuldade de se entender o conteúdo da física com palavras rebuscadas e com a formalidade mostrada em livros. 

O teatro, desde a Grécia Antiga é utilizado como uma ferramenta de comunicação sobre diversos temas, sendo utilizada primeiramente para transmitir a religião e a cultura e com essa peça, busca-se mostrar a ciência rebuscada para um público que está iniciando a busca do conhecimento, para aqueles que já tiveram contato com as teorias mais profundas do tema e para aqueles que simplesmente se simpatizam com a história da Segunda Guerra Mundial, suas relações políticas e sociais.

"COPENHAGEN"

Drama. Dois atos. 94 páginas.

PERSONAGENS

NIELS BOHR - 55 anos. Físico teórico judeu nascido na Dinamarca. Esposo de Margrethe. Um dos autores da Interpretação de Copenhagen que mudou o rumo da física teórica. Emocionalmente estável, forte sentimento
paterno.

MARGRETHE NØRLUND BOHR - Entre 50 e 51 anos. Dinamarquesa, de origem judaica. Esposa de Niels Bohr, responsável pela datilografia dos trabalhos que resultaram na Interpretação de Copenhagen. Com gênio forte mas com espírito materno.

WERNER KARL HEISENBERG - 39 anos. Alemão. Conquistou a cátedra de Liepzig após publicar o Princípio da Incerteza. Juntamente com Bohr criou a Interpretação de Copenhagen. Afinidade emocional com a incerteza, filho de consideração de Niels e Margrethe.

LOCAL: Sala de estar da casa de Niels Bohr e Margrethe.

DURAÇÃO: 150 minutos (dois atos).

<INÍCIO DO PRIMEIRO ATO>

Margrethe: Mas por que ele veio para Copenhague?

Bohr: Meu amor, isso importa? Quanto tempo faz que nós três já estamos mortos?

Margrethe: Algumas perguntas duram por muito tempo após a morte de seus donos. Como fantasmas a buscar as respostas que nunca encontrou em vida.

Bohr: Algumas perguntas não encontram suas respostas.

Margreth: Mas porque ele veio? O que está tentando dizer?

Bohr: No fundo creio que é muito simples: queira conversar.

Margreth: Conversar? Com o inimigo? No meio da guerra?

Bohr: Margreth, meu amor, não éramos inimigos.

Margreth: Estamos falando de 1941!

Bohr: Heisenberg: era nosso amigo!

Margreth: Heisenberg: era alemão! Nós éramos dinamarqueses! Os alemães tinham ocupado o nosso país. Eu nunca vi você tão irritado com alguém como naquela noite com Heisenberg:!

Bohr: Não quero contradizer, mas acho que eu fiquei incrivelmente tranquilo! Para ele era tão difícil quanto para nós.

Margreth: Por isso mesmo mesmo, por que fazer isso? Agora, não faz mal a ninguém, não trairemos a ninguém.

Heisenberg: Estamos todos mortos, é certo. E o mundo se lembra de mim só por duas coisas: o princípio da incerteza e por minha misteriosa visita a Niels Bohr em Copenhague em 1941. Todos entendem do se trata a incerteza! Ou assim eles pensam. Mas ninguém entende por que eu fui para Copenhagen! Eu expliquei uma e outra vez. A Bohr mesmo, e a Margreth. Aos interrogadores, oficiais de inteligência, jornalistas, historiadores! Quanto mais eu explicava mais incerto ficava. Bem, com muito gosto vou tentar de novo. Agora que estamos mortos e não
faremos mal a ninguém, e não trairemos ninguém.

Margreth: Agora eu posso dizer. Nunca gostei dele!
Bohr: Não é verdade. Eu gostava muito dele quando ele veio pela primeira vez na década de vinte! E quando ele veio para a praia com a gente e as crianças? Era mais um da família!

Margreth: Tinha algo "estranho", já desde essa época!

Bohr: Mas era um físico excepcional. E quanto mais eu penso, mais me convenço de que Heisenberg: foi o melhor.

Heisenberg: Quem foi Bohr? Ele foi o primeiro, o pai de todos nós! Tudo o que fizemos foi baseado em sua grande intuição!
Bohr: Pensar que veio trabalhar comigo em 1924...

Heisenberg: Acabava de terminar meu doutorado, e Bohr era o físico atômico mais famoso do mundo!

Bohr: ...e em menos de um ano a mecânica quântica te era devedora de umas quantas coisas.

Margreth: Surgiu do trabalho que fizeram juntos.

Bohr: E um ano depois obteve o Princípio da Incerteza!

Margreth: E foi tua a complementaridade!

Bohr: A discutimos juntos!

Heisenberg: Juntos fizemos nossos melhores trabalhos.

Bohr: Funcionávamos como uma empresa!

Heisenberg: Presidente e gerente geral.

Margreth: Pai e filho.

Heisenberg: Um negócio de família!

Margreth: Ainda que tivéssemos nossos próprios filhos!

Bohr: E seguimos trabalhando juntos muito tempo depois quando já havia deixado de ser meu assistente!

Heisenberg: Depois de ter voltado para a Alemanha em 1927, para assumir o cargo de minha cátedra em Leipzig, e muito depois de ter a minha própria família.

Margreth: Então, os nazistas chegaram ao poder!

Bohr: E a vida tornou-se cada vez mais difícil! Quando explodiu a guerra,
impossível. Até esse dia em 1941!
Margreth: Quando se terminou para sempre.
Bohr: Sim, por que fazer isso?

Heisenberg: Setembro de 1941. Durante anos eu tinha na memória como outubro.

Margreth: Setembro. Final de setembro.

Heisenberg: A memória é tão curiosa, na cabeça o passado se torna presente! Setembro de 1941, Copenhagen! E imediatamente aqui estou, descendo do trem noturno que vem de Berlim, com o meu colega Weizsäcker! Dois trajes civis entre todos os uniformes cinzas do exército alemão e os elegantes uniformes pretos da SS vieram com a gente. Na minha pasta estão os papéis da conferência que eu vou dar. Na minha cabeça há outra mensagem que eu devo comunicar. A conferência é de astrofísica. O assunto na minha cabeça é mais difícil. O meu colega Weizsäcker foi meu João Batista, escreveu para Bohr para avisar da minha chegada.

Margreth: Quer te ver?

Bohr: Creio que veio para isso.

Margreth: Deve ser muito importante o que quer te dizer!

Heisenberg: O encontro tem que parecer natural. Tem que ser privado.

Margreth: Espero que não esteja pensando em convidá-lo para nossa casa.

Bohr: Obviamente é o que está esperando!

Margreth: Niels! Eles ocuparam nosso país!

Bohr: Ele não é um deles.

Margreth: É um deles!

Heisenberg: A primeira coisa que fizemos foi visitar oficialmente o Instituto de Bohr de Física Teórica, e almoçamos na antiga e familiar sala de jantar do instituto. É claro que não tive a oportunidade de falar com Bohr! Onde estava? É como num
sonho. Não posso pôr em foco os detalhes precisos da cena que me rodeia! Na cabeceira da mesa é Bohr? É Rozental, é Moller, que decido que seja... O que me lembro foi uma ocasião muito desconfortável.

Bohr: Foi um desastre. Causou uma impressão muito ruim! Ele disse que era lamentável a ocupação da Dinamarca! Mas, no entanto, era perfeitamente aceitável a ocupação da Polônia. E agora tinha certeza de que a Alemanha iria ganhar a
guerra.

Heisenberg: Nossos tanques estão às portas de Moscou. O que nos pode deter? Há uma só coisa que talvez. Uma só!

Bohr: É certo que ele sabe que o estão vigiando. Tem que ter cuidado com o que diz. Mas bem se poderia se cuidar com o que diz.

Margreth: Tem que se cuidar ou não o vão deixar sair do país de novo.

Heisenberg: Me pergunto se imaginam o quão difícil foi conseguir permissão para vir. Os humilhantes pedidos ao partido, os poucos recursos para “a festa”, os esforços desgastantes para que nossos amigos na chancelaria usassem suas influencias.

Margreth: Como ele parece? Será que ele mudou muito?

Bohr: Um pouco mais velho.

Margreth: Eu ainda me lembro dele como um menino.

Bohr: Tem quase quarenta anos. Um professor maduro.

Margreth: Tem certeza de que quer convidá-lo para vir aqui?

Bohr: Vamos por os argumentos a favor e contra, de uma forma razoável e científica! Primeiro, Heisenberg: é um amigo.

Margreth: Primeiro, Heisenberg: é alemão!

Bohr: Um judeu branco. Assim o chamaram os nazistas! Ensinava relatividade, e diziam que era física judaica! Não podia falar de Einstein, a relatividade, mas continuou apesar de o atacarem terrivelmente.

Margreth: Todos os judeus de verdade perderam seus empregos. Ele ainda ensina!

Bohr: Ainda ensina relatividade.

Margreth: Ainda é professor em Leipzig. Não queria deixar a Alemanha.

Bohr: Ele queria estar lá para reconstruir a ciência alemã quando Hitler não estivesse mais.

Margreth: E se o estão vigiando, vão informar tudo! A quem viu. Que lhes disse. O que disseram a ele.

Heisenberg: Levo minha vigilância como uma doença infecciosa. Eu sei que também vigiam Bohr!

Margreth: E sabe que também te vigiam.

Bohr: Quem? A Gestapo?

Heisenberg: Se dará conta?

Bohr: Não tenho nada a esconder.

Margreth: Nossos compatriotas! Seria terrível para eles, se só pensassem que você está colaborando!

Bohr: Convidar um velho amigo para o jantar não é colaborar!

Margreth: Poderia parecer, não vão falar de política?

Bohr: Apenas de física. Suponho que queira falar de física.

Margreth: Creio que você também tem que supor que não somos os únicos que escutamos o que se diz nesta casa. Se querem privacidade é melhor que falem ao ar livre.

Heisenberg: Posso sugerir de irmos caminhar?

Bohr: Acho melhor nada de passeios. O que queira dizer que diga onde todos ouçam.

Margreth: Talvez queira compartilhar uma ideia nova.

Heisenberg: Então agora me vejo caminhando no crepúsculo outonal para casa dos Bohr! Seguido, suponho, pela minha sombra invisível. O que eu sinto? Medo, segurança. O medo de que um sempre produz um professor, um chefe, um pai!
Muito mais medo do que eu tenho a dizer. E mais medo ainda do que poderia acontecer se eu falhar!

Margreth: Terá algo a ver com a guerra?

Bohr: Heisenberg: é um físico teórico! Não creio que alguém tenha descoberto uma maneira usar a física teórica para matar pessoas.

Margreth: Terá algo a ver com a fissão?

Bohr: Por que falar sobre fissão comigo?

Margreth: Porque está trabalhando nisso. E você é a autoridade máxima sobre este tema!

Bohr: Não há nada publicado sobre fissão!

Margreth: Mas e se os alemães estiveram desenvolvendo algum tipo de arma que se baseia na fissão nuclear?

Bohr: Meu amor, ninguém vai desenvolver uma arma baseada na fissão nuclear.

Margreth: Mas se os alemães tentassem, Heisenberg estaria envolvido.

Bohr: Mas por quê? Na Alemanha sempre teve muitos físicos bons.

Margreth: Não mais. Quase todos eram judeus! E todos eles tiveram de fugir para os Estados Unidos e Inglaterra.

Heisenberg: Einstein, Pauli, Born... e tantos outros.

Margreth: E se Heisenberg fora o responsável pelo trabalho?

Bohr: Margreth, não existe este trabalho! John Wheeler e eu fizemos tudo em 1939! Uma das coisas que emerge do nosso trabalho é que não há maneira de usar a fissão para produzir armas, pelo menos num futuro próximo.

Margreth: Então, por que todos seguem trabalhando no tema?
Bohr: Porque tem algo de mágico! Se dispara um nêutron no núcleo de um átomo de urânio e se divide em dois elementos distintos! Foi o que tentaram fazer os alquimistas, que um elemento se converta em outro!

Margreth: Então a que veio?

Heisenberg: Esmago as pedrinhas do caminho familiar para a porta de entrada da casa dos Bohr, e toco a campainha! Sinto medo, sim. É uma mistura tola de vaidade e algo que me faz sentir totalmente indefeso, porque dos dois bilhões de habitantes desta terra me deram esta responsabilidade impossível... A pesada porta se abre.

Bohr: Meu querido Heisenberg:!

Heisenberg: Meu querido Bohr!

Bohr: Entre, entre...

Margreth: E, claro, apenas se veem, se avivam as velhas chamas.

Heisenberg: Me sinto tão emocionado que possa me receber.

Bohr: Devemos tentar seguir nos comportando como seres humanos!

Heisenberg: Eu me dou conta o quão difícil é!

Bohr: Só pudemos apertar as mãos outro dia na hora do almoço!

Heisenberg: E Margreth, não a vejo desde...

Bohr: Desde os últimos quatro anos.

Margreth: Niels tem razão. Você parece mais velho.

Heisenberg: Teríamos nos visto em Zurique...

Bohr: Em setembro de 1939!

Heisenberg: E, lamentavelmente...

Bohr: Lamentavelmente para nós também.

Margreth: E muito mais lamentável para tantas outras pessoas.
Heisenberg: Sim, com certeza.

Bohr: Assim estão as coisas!

Heisenberg: O que eu posso dizer a vocês?

Margreth: Se é que se pode dizer algo nestas circunstâncias?

Heisenberg: Não. E seus filhos?

Margreth: Estão bem, obrigado. E Isabel? Os meninos?

Heisenberg: Muito bem! Mandam abraços!

Margreth: Apesar de tudo, tínhamos muita vontade de nos ver! Mas agora que chegou o momento estão tão ocupados evitando se olhar nos olhos que apenas se veem de canto de olho.

Heisenberg: Não sei se vocês se dão conta o quanto isso significa para mim, estar aqui de volta nesta casa. Estive muito só nos últimos anos.

Bohr: Eu posso imaginar!

Margreth: A mim quase não me vê. O observo discretamente detrás da minha cortesia enquanto segue tentando.

Heisenberg: A situação aqui tem sido difícil?

Bohr: Difícil?

Margreth: É claro! Tem que perguntar. Tem que libertar-se disso.

Bohr: Difícil... que posso dizer? No momento não se impuseram leis raciais.

Margreth: Ainda...

Bohr: Há alguns meses começaram a deportar os comunistas e outros “elementos” antialemães.

Heisenberg: Mas a vocês...?

Bohr: Não, não nos incomodaram.

Heisenberg: Estive muito preocupado.

Bohr: Muito amigável. Por enquanto nada que deva nos tirar o sono.

Margreth: Silêncio. Cumpriu o seu dever. Agora você pode levar a conversa para temas mais agradáveis.

Heisenberg: Ainda navega?

Bohr: Navegar?

Margreth: Mal começou...

Bohr: Não, não navego...

Heisenberg: O mar está...?

Bohr: Minado!

Heisenberg: Claro!

Margreth: Suponho que ele não perguntará se você continua a esquiar.

Heisenberg: E esqui?

Bohr: Esquiar? Na Dinamarca?

Heisenberg: Na Noruega. Costumava ir para a Noruega.

Bohr: Costumava, sim.

Heisenberg: Digo, como a Noruega também está...

Bohr: Ocupada? Sim. Na verdade eu acho que poderíamos tirar férias em quase qualquer lugar na Europa.

Heisenberg: Desculpe não quis dizer dessa maneira.

Bohr: É que estou um pouco suscetível...

Heisenberg: Talvez você pudesse considerar a possibilidade de ir alguma vez a Alemanha ...

Margreth: Esse menino é um idiota.

Bohr: Meu querido Heisenberg, seria facilmente ser confundido e pensar que os cidadãos de uma pequena nação, uma pequena nação invadida, invadida caprichosa e cruelmente, por seu vizinho mais poderoso, que não tem os mesmos sentimentos de orgulho nacional, e o mesmo amor por seu país que seus conquistadores!

Margreth: Niels, o que dissemos?!

Bohr: Só falar de física, sim.

Margreth: Nada de política!

Bohr: Desculpe.

Heisenberg: Não, não, eu só queria dizer que eu ainda tenho a minha cabana de esqui. Então, se por acaso... alguma vez... por qualquer motivo...

Bohr: Talvez Margreth seja tão gentil para bordar uma estrela amarela na minha jaqueta de esqui!

Heisenberg: Sim, sim! Que estupidez!

Margreth: Silêncio novamente. Agora eu começo a sentir pena! Sentado aqui, completamente sozinho, de frente para nós dois, em um país onde o odeia. Agora o vejo mais jovem, como o cara que veio aqui pela primeira vez em 1924. Tímido e arrogante e com necessidade de que o queiram. E, sim, é triste, porque Niels o amava! Foi um pai para ele.

Heisenberg: Em que está trabalhando?

Bohr: Na fissão, quase que exclusivamente. E você?

Heisenberg: Várias coisas...

Margreth: Fissão?

Heisenberg: Às vezes, eu me sinto muito inveja de seu cíclotron.

Margreth: Por quê? Também está trabalhando sobre a fissão?

Heisenberg: Há mais de trinta nos Estados Unidos! Enquanto na Alemanha... bom... pelo menos você ainda pode ir para sua casa na praia?

Bohr: As vezes vamos sim.

Margreth: Perdão, estava para dizer que na Alemanha...

Bohr: ... não há um só cíclotron!

Heisenberg: É tão bonita a praia de nesta época do ano.

Bohr: Será que veio para levar o cíclotron? Não é por isso que você veio a Copenhague?

Heisenberg: Não vim a Copenhagen para isso.

Bohr: Desculpe! Eu não deveria tirar conclusões precipitadas.

Heisenberg: Não, nenhum de nós deve tirar conclusões precipitadas de nenhum tipo.

Bohr: Mas a falta de cíclotron na Alemanha não é seguramente um segredo militar.

Heisenberg: Não tenho ideia o que é secreto e o que não é!

Bohr: Também não é um segredo que eles não os têm. Você não pode dizer, mas eu sim. É porque os alemães se opuseram sistematicamente a física teórica. Por quê? Porque a maioria das pessoas que trabalharam nesta área eram judeus! E por que muitos eram judeus? Porque a física teórica, a física que interessava a Einstein, Schrödinger, Pauli e a nós dois, sempre foi considerado na Alemanha inferior à física experimental, e as cátedras teóricas eram as únicas que os judeus teriam acesso!

Margreth: Física! Sim?

Bohr: Isto é física!

Margreth: Também é política!

Heisenberg: Às vezes é muito difícil de separá-las! Você está em contato com os nossos amigos na Inglaterra? Com Born? Com Chadwick?

Bohr: Heisenberg, estamos sob ocupação alemã! Alemanha está em guerra com Inglaterra.

Heisenberg: Pensei que talvez mantivesse algum contato. E com as pessoas Estados Unidos? Com eles nós não estamos em guerra.

Bohr: Que quer saber?

Heisenberg: Curiosidade...

Margreth: A única visita de fora veio da Alemanha. Seu amigo Weizsäcker nos visitou em março. Não sei por que trouxe o diretor do Instituto Alemão...

Heisenberg: O fiz com a melhor das intenções! Talvez ele não explicou que o Instituto está sob o controle da Chancelaria. Nós temos bons amigos na embaixada aqui!

Bohr: É um departamento do governo nazista

Heisenberg: Seguramente estavam tentando que os cidadãos ilustres deste país pudessem trabalhar tranquilos.

Bohr: Você está me dizendo que seus amigos na embaixada estão me protegendo?

Heisenberg: Eu que o digo, por si Weizsäcker não me assegurou, é que se sentiriam muito honrados se você pudesse aceitar um convite de vez em quando.

Bohr: Ir para coquetéis na Embaixada alemã? Para tomar café com bolos com o embaixador nazista?

Heisenberg: Talvez a alguma conferência! Aos grupos de discussão! Qualquer tipo de contato social pode ser de grande ajuda!

Bohr: Com certeza sim!

Heisenberg: E em algumas circunstâncias pode ser essencial!

Bohr: Em que circunstâncias?

Heisenberg: Eu acho que nós dois sabemos disso!

Bohr: Porque eu sou meio judeu?

Heisenberg: Todos em algum momento pode precisar de ajuda dos nossos amigos.

Bohr: Por isso veio a Copenhague? Para me convidar para assistir a deportação de meus compatriotas das janelas da embaixada alemã?

Heisenberg: Bohr, por favor! Por favor! Que outra coisa eu posso fazer? Como posso ajudar? Eu sei que é uma situação extremamente difícil para você. Eu entendo! Mas também é uma situação extremamente difícil para mim.

Bohr: Sim. Desculpa. Estou seguro de que também tem as melhores intenções.

Heisenberg: De todo modo não vim para isso.

Margreth: Talvez você devesse dizer simplesmente o quer dizer.

Heisenberg: Não gostaria de sair para caminhar como nos velhos tempos?

Bohr: Faz frio esta noite, me parece, para caminhar.

Heisenberg: Isto é tão difícil. Te lembras onde nos conhecemos?

Bohr: Claro, em Göttingen em 1922!

Heisenberg: Em uma conferência em sua honra!

Bohr: Foi uma grande honra! Eu estava ciente disso.

Heisenberg: Você foi homenageado por dois motivos! Primeiro, por ser um grande físico...

Bohr: Sim, sim.

Heisenberg: ... e em segundo lugar, porque era uma das poucas pessoas na Europa que estava disposto a lidar com a Alemanha. A primeira guerra havia terminado há quatro anos e ainda éramos tratados como leprosos. Mas nos deu a mão. Sempre inspirastes amor, você sabe disso. Aonde seja que você tenha passado, que tenha trabalhado, Aqui na Dinamarca. Na Inglaterra, nos Estados
Unidos. Mas na Alemanha te adorávamos. Porque nos deu a mão.

Bohr: A Alemanha mudou!

Heisenberg: Sim! Entretanto estávamos derrotados e foi generoso.

Margreth: E agora vocês dominam!

Heisenberg: E é mais difícil de ser generoso! Mas nos destes a mão e apertamos!

Bohr: Sim... Não! Você na realidade a mordeu.

Heisenberg: Eu a mordi?

Bohr: Me mordeu a mão, sim! Eu dei-lhe a mão cerimoniosamente e amigavelmente e você a mordeu.

Heisenberg: Do que está falando?

Bohr: Se levantou e me atacou.

Heisenberg: Ah... Fiz alguns comentários.

Bohr: Era um belo dia de verão! Fileiras de físicos e matemáticos eminentes, todos dando aprovação para a minha sabedoria. De repente, salta um cachorro atrevido e me diz que meus cálculos matemáticos estavam equivocados.

Heisenberg: Estavam equivocados.

Bohr: Que idade tinhas?

Heisenberg: Vinte.

Bohr: Um ano depois da mudança do século.

Heisenberg: Não exatamente.

Bohr: Em 05 de dezembro, sim?

Heisenberg: 0,93 anos a mais do século.

Bohr: Para ser exato!

Heisenberg: Não, para ser exato, 0,928... 7... 6... 7... 1...

Margreth: E Niels decide, de repente amá-lo novamente, apesar de tudo. Por quê? O que aconteceu? Foi a lembrança daquele dia de verão em Göttingen? De qualquer forma, quando nos sentarmos para jantar, as cinzas foram acesas novamente.

Bohr: Sempre tão competitivo! Até quando jogávamos tênis de mesa. Parecia que queria me matar.

Heisenberg: Queria ganhar! Vos também queria ganhar.

Bohr: Eu queria uma partida amigável de ping-pong.

Heisenberg: Você diz isso porque você não podia ver a expressão do seu rosto.

Bohr: Podia ver a sua.

Heisenberg: E quando jogou poker na cabana de esqui? Uma vez que fez uma limpa! Você se lembra disso? Com um royal flush que não tinha! Todos matemáticos, todos contando as cartas, estávamos 90% seguros que não tinha nada! Mas continuou a nos fazer subir e subir a aposta! Essa confiança idiota. Até que
nossa fé na probabilidade matemática começou a enfraquecer e um por um fomos para o maço.

Bohr: Eu estava certo de que eu tinha um royal flush. Não vi bem as letras! Me enganei a mim mesmo.

Margreth: Pobres Niels!

Heisenberg: Pobre Niels? Ele ganhou! Nós que falimos. Era insanamente competitivo!

Bohr: Você era competitivo. Uma vez que descíamos da cabana para buscar abastecimento até nisso o convertia em uma carreira. Você se lembra? Estávamos com Weizsäcker mais alguém. Pegou um cronômetro.

Heisenberg: Pobre Weizsäcker, levou dezoito minutos!

Bohr: Você baixou em dez.

Heisenberg: Oito!

Bohr: Não me lembro o quanto fiz.

Heisenberg: Quarenta e cinco minutos.

Bohr: Obrigado!

Heisenberg: Você esquiava como fazia ciência! O que estava esperando? Provavelmente estavas realizando os cálculos das dezessete rotas possíveis diferentes!

Margreth: E eu estava lá para podê-las digitar.

Bohr: Pelo menos eu sabia onde eu estava. Na velocidade que iam estavam enfrentando a relação de incerteza! Se eles sabiam onde estavam, não sabiam o que a velocidade tinha baixado! Se sabiam a que velocidade havia baixado, não saberiam
onde estavam.

Heisenberg: Eu não preciso parar para pensar.

Bohr: Justamente isso é o que poderia ser criticado em parte de seu trabalho.

Heisenberg: De qualquer forma, geralmente chegava.

Bohr: Sim, mas não te importava que destruísse no caminho. Enquanto funcionava a matemática estavas satisfeito.

Heisenberg: Se algo funciona, funciona.

Bohr: Mas a pergunta sempre é: o que significa a matemática? Em uma linguagem simples. Quais são as implicações filosóficas?

Heisenberg: Quando se desce a 70 quilômetros por hora as decisões se tomam sozinhas. De repente, em frente a um abismo, viro à esquerda ou à direita? Se eu penso, me mato! Na cabeça se dobra para os dois lados.

Bohr: Porque você insiste que é sempre mais fácil agir do que reagir. Tomar uma decisão de fazer algo que responder a ação do outro!

Heisenberg: Sim, claro! Assim como a música, essa é outra coisa que nos faz decidir. Eu toco o piano e é como abrir o caminho diante de mim, só tenho que seguir. Assim tive o meu único sucesso com as mulheres! Uma noite musical com amigos em Leipzig, um trio de piano. 1937 Estamos tocando Beethoven em Sol maior. Terminamos o concerto, e olho para cima para ver se os outros dois estão prontos para começar o final rápido! E nesse instante eu vejo uma jovem sentada a um canto da sala. Só um instante, mas com certeza já a havia levada à Cabana, nos havíamos comprometidos, nos havíamos casados, etcetera – fantasias românticas tão inúteis – e começamos com um final rápido, que foi extremamente rápido e eu não tive tempo de assustar-me! E tudo foi fácil para mim. Terminou como se tivesse esquiado. Me submeti à jovem, a acompanhei a sua casa e, sim, uma semana mais tarde a levo para minha cabana, outra semana nos comprometemos, e três
meses mais tarde nos casamos. E tudo pela velocidade desse final rápido!

Bohr: Você disse que se sente sozinho! Mas você tem companhia.

Heisenberg: A música?

Bohr: Isabel!

Heisenberg: Ah, sim. Embora com os meninos e essas coisas... Eu sempre invejei como vocês dois falam sobre tudo. De seu trabalho. Seus problemas. De mim, com certeza.

Bohr: A natureza me formou como uma entidade matemática curiosa: não uma unidade e sim a metade dos dois.

Heisenberg: A matemática é muito estranha quando se aplica a pessoas. Um mais um pode ser tantas coisas...

Margreth: Silêncio. Em que pensará? Em sua vida? Na nossa?

Heisenberg: Silêncio. E é claro que eles estão pensando novamente em seus filhos.

Margreth: As mesmas memórias brilhantes. A mesma escuridão! Voltam e voltam.

Heisenberg: Seus quatro filhos vivos e dois mortos!

Margreth: Harald! Só nesse hospital.

Bohr: Está Pensando em Cristian e Harald!

Heisenberg: Os dois meninos perdidos! Harald...

Bohr: Todos esses anos sozinho, nesse hospital horrível.

Heisenberg: E Cristian! O primogênito. O filho mais velho.

Bohr: Novamente esses segundos que eu vejo todos os dias.

Heisenberg: Esses breves segundos no barco, quando o leme se trava no mar enfurecido e Cristian está caindo.

Bohr: Se eu não tivesse deixado travar o leme...

Heisenberg: Esses segundos tão longos no mar!

Bohr: Aqueles segundos intermináveis no mar.

Heisenberg: Quando você tenta alcançar a boia!

Bohr: Caso o alcançasse!

Margreth: Eu estou em nossa casa de praia! Eu olho por cima do meu trabalho! Niels está na porta me olhando em silêncio. De repente, desvia o olhar para longe e eu sei o que aconteceu.

Bohr: Tão perto, tão perto! Uma distância tão pequena!

Heisenberg: O leme se trava uma vez... e de novo ...

Margreth: Niels desvia o olhar!

Bohr: Cristian estende a mão para alcançar a boia...

Heisenberg: Mas há coisas que nem eles falam.

Bohr: Algumas coisas apenas pensamos.

Margreth: Porque não há nada a dizer.

Bohr: Bem... talvez não esteja tanto frio! Você sugeriu uma caminhada.

Heisenberg: Na realidade está muito calor.

Bohr: Não vamos demorar!

Heisenberg: No máximo uma semana.

Bohr: Quê? Como a nossa famosa primeira caminhada?

Heisenberg: Fomos para Elsinore! Me lembro muitas vezes o que você me disse estando lá.

Bohr: Você se importa meu amor? Meia hora?

Heisenberg: Talvez uma hora. Disse que não poderia ter uma impressão intocada de Elsinore, que foi afetada por saber que Hamlet tinha vivido lá. Cada canto escuro nos recordava a obscuridade dentro da alma humana...

Margreth: Assim que estão andando novamente. Bem sucedido! E se estão caminhando, estão falando! Falando de outra forma, sem dúvida. Tantas vezes eu digitei sobre o quão diferente é o comportamento das partículas quando não são observadas... Agora que começaram, uma hora que se tornará duas ou três... A primeira coisa que fizeram juntos foi irem caminhar. Depois dessa conferência em Göttingen. Niels imediatamente foi procurar o jovem atrevido que havia questionado sua matemática e levou-o para caminhar no campo. Andar, falar, conhecê-lo. E quando Heisenberg chegou aqui para trabalhar para ele, de novo saíram dar sua volta histórica pelo campo. Muito da física do século XX fez-se ao ar livre. Caminhando pelos bosques de nossa casa de campo. Descendo para a praia com os meninos. Cristian de mão a Heisenberg. E cada noite depois de jantar em Copenhague, caminhavam pelo parque atrás do Instituto, ou perto do porto. Caminhar e falar. Muito, muito antes das paredes terem ouvidos... Mas desta vez, em 1941, a caminhada tomou um rumo diferente. Dez minutos depois de sair... voltam. Eu mal levantei da mesa vi Niels na porta. Me dei conta imediatamente da raiva que está. Não pude olhar nos seus olhos!

Bohr: Heisenberg quer dizer adeus. Ele se vai.

Margreth: Ele tão pouco me olha.

Heisenberg: Obrigado. Foi uma noite linda. Quase como nos velhos tempos. Muito amável.

Margreth: Quer uma bebida? Café?

Heisenberg: Tenho que preparar minha conferência.

Margreth: Mas, vamos nos ver antes de você ir?

Bohr: Ele tem muito a fazer.

Heisenberg: Perdoe-me se eu disse ou fez algo que...

Bohr: Sim, sim!

Heisenberg: Significou muito para mim, estar com os dois novamente. Mais do que vocês imaginam.

Margreth: Foi um prazer para nós! Abraços para Isabel e as crianças!

Bohr: Claro!

Heisenberg: Talvez quando a guerra acabar... se estivermos vivos... adeus.

Margreth: Política?

Bohr: Física! Não tem razão! Como ele pode estar certo? Se John Wheeler e eu...

Margreth: Um pouco de ar fresco, enquanto falamos, não?

Bohr: Ar fresco?

Margreth: Uma volta pelo jardim. Mais saudável do que ficar dentro de casa, eu acho.

Bohr: Oh sim!

Margreth: Para todos.

Bohr: Sim. Obrigado... Como poderá ter razão? Wheeler e eu discutimos o assunto exaustivamente em 1939!

Margreth: O que ele disse?

Bohr: Nada! Eu não sei! Eu estava bravo demais para entender.

Margreth: Tinha a ver com a fissão?

Bohr: O que acontece durante a fissão? Se dispara um nêutron a um núcleo de um átomo de urânio, se divide e libera energia!

Margreth: Uma grande quantidade de energia, não é?

Bohr: Suficiente para mover um pouco de poeira. Mas também libera dois ou mais três nêutrons cada um dos quais pode chegar a dividir outro núcleo.

Margreth: E esses núcleos divididos liberam energia por sua vez?

Bohr: E mais dois ou três nêutrons.

Heisenberg: Enquanto um esquia se desloca um pouco de neve. Esse pouco de neve moverá mais neve e se forma uma bola de neve...

Bohr: Uma cadeia de núcleos divididos, que se multiplica, através do urânio, dobrando e quadruplicando em um milionésimo de segundo de uma geração para a outro! Duas divisões para começar, em seguida, dois ao quadrado, dois ao cubo,
para a quarta, a quinto, a sexta...

Heisenberg: O trovão da avalanche nas montanhas ao redor ecoa nas montanhas ao redor...

Bohr: Até mais tarde ou mais cedo, dizer após oito gerações, 280 montes de poeira haverão sido deslocadas! 280 é um número com 24 dígitos! Suficientes montes de poeira para criar uma cidade, e todos os que vivem nele.

Heisenberg: Mas há uma dificuldade.

Bohr: Felizmente há uma dificuldade! O urânio natural é composto por dois diferentes isótopos, Urânio-238 e Urânio-235. Menos de um por cento é Urânio- 235 e esta pequena fração é a única parte que é fissionada por nêutrons rápidos!

Heisenberg: Esta foi a grande intuição de Bohr... Foi o que aconteceu quando estava na Princeton em 1939, andando pelo campus com Wheeler.

Bohr: Aqui estão duas dificuldades! O 238 não só não pode ser dividido por qualquer maneira por nêutrons rápidos, mas absorve-os. Assim, que ao pouco tempo que começa a reação em cadeia, não há número suficiente de nêutrons rápidos para fissionar o 235!

Heisenberg: E a cadeia para.

Bohr: Também se pode fissionar o 235 com nêutrons lentos! Mas, então, a reação em cadeia ocorre muito mais lentamente do que o urânio precisa para explodir.

Heisenberg: E mais uma vez a cadeia para.

Bohr: O que tudo isto significa é que uma reação em cadeia explosiva não ocorrerá jamais em urânio natural. Para produzir uma explosão terá que se separar 235 puro. E para que a cadeia seja longa o suficiente para produzir uma explosão importante
precisaria de muitas toneladas. E é extremamente difícil poder separá-lo.

Heisenberg: Tentadoramente difícil.

Bohr: Felizmente difícil. Os cálculos mais otimistas quando estive nos Estados Unidos, em 1939, eram que para produzir um grama de Urânio-235 levaria 26.000 anos. E eu acho que até lá a guerra vai acabar. Assim, ele está errado, está errado! Ou eu estou errado? Eu terei calculado mal? Vamos ver... Qual é a taxa de absorção de nêutrons rápidos de 238? Qual é o caminho livre médio dos nêutrons lentos no 235...?

Margreth: Mas. O que Heisenberg tinha dito exatamente? Isso é o que todos querem saber, então e depois...

Bohr: É o que quiseram saber os ingleses o quanto Chadwick pode se comunicar comigo! Que disse exatamente Heisenberg?

Heisenberg: E o que, exatamente, Bohr respondeu? Essa foi a primeira coisa que perguntaram meus colegas quando voltei para a Alemanha.

Margreth: O que Neils disse a Heisenberg? O que Neils respondeu? A pessoa que mais queria saber era o próprio Heisenberg!

Bohr: Por isso voltou a Copenhague, dois anos depois de terminada a guerra em 1947.

Margreth: Desta vez escoltado por um acompanhante visível da inteligência Britânica e não por agentes invisíveis da Gestapo.

Bohr: Creio que queria várias coisas.

Margreth: Duas coisas. Pacotes de comida...

Bohr: Para sua família na Alemanha. Não tinham nada para comer.

Margreth: E para chegar a um acordo sobre o que haviam dito em 1941.

Bohr: A conversa acabou quase tão rápido quanto da vez anterior.

Margreth: Não puderam sequer chegar a um acordo sobre onde eles tinham caminhado naquela noite.

Heisenberg: Por onde caminhamos?

Bohr: Não caminhamos.

Heisenberg: Eu vejo as folhas de outono empilhadas sob as luzes da rua.

Bohr: Porque você acha que foi em outubro!

Margreth: E foi em setembro!

Bohr: Não havia folhas caídas.

Margreth: E era 1941. Não se podiam acender as lâmpadas na rua! Estávamos em guerra.

Bohr: Nós não saímos do meu escritório. Eu vejo os papeis embaixo da luminária.

Heisenberg: Estávamos lá fora! O que iria dizer era traição. Se me escutassem, seria executado.

Margreth: O que foi essa coisa misteriosa que você disse?

Heisenberg: Não tem mistério. Nunca houve mistério. Me lembro perfeitamente porque minha vida estava em jogo, e escolhi minhas palavras com muito cuidado. Simplesmente te perguntei se, como um físico, eu teria o direito moral de trabalhar na exploração da energia atômica. Sim?

Bohr: Não me lembro.

Heisenberg: Não se lembra, não, porque quase que imediatamente se irritou! Você parou secamente.

Bohr: Porque eu estava horrorizado.

Heisenberg: Horrorizado. Bem, você se lembra disso. Você ficou parado, me olhando, horrorizado.

Bohr: Porque a dedução era óbvia. Você estava trabalhando nisso.

Heisenberg: E você se apressou a concluir que eu estava tentando dar armas nucleares a Hitler!

Bohr: E era o que você estava fazendo!

Heisenberg: Não! Um reator! Era isso o que estávamos tentando construir! Uma máquina para produzir energia! Para gerar eletricidade, para impulsionar barcos!

Bohr: Não disse nada sobre um reator!

Heisenberg: Não disse nada sobre nada! Não claramente! Não podia. Não sabia quanto eles podiam nos ouvir. O que contariam aos outros.

Bohr: Mas te perguntei se realmente estava pensando que a fissão do urânio poderia ser usado para a construção de armas!

Heisenberg: Ah! Agora se lembra!

Bohr: Sim! E claramente o que me respondestes!

Heisenberg: Disse que você sabia que sim.

Bohr: E isso é o que realmente me assustou!

Heisenberg: Porque você confiava que para produzir armas precisaria do 235 e que nunca íamos poder produzir o suficiente.

Bohr: Um reator! Sim, por ali não iria acontecer uma explosão. Se pode manter em funcionamento uma reação em cadeia em cadeia com nêutrons lentos em urânio natural.

Heisenberg: O que nós havíamos dado conta, sem, no entanto, era que, era que se alguma vez poderíamos pôr em funcionamento o reator, o 238 absorveria os nêutrons rápidos. Como você intuiu brilhantemente em 1939. E, por sua vez seria
transformado por eles e se converteria em um elemento totalmente novo.

Bohr: Netúnio! Que por sua vez, se transformaria em outro elemento...

Heisenberg: Pelo menos tão possível de ser fissionado como o 235!

Margreth: Plutônio!

Heisenberg: Plutônio.

Bohr: Como não me dei conta!

Heisenberg: Se pudéssemos construir um reator seriamos capazes de construir bombas! Isso é o que me levou a Copenhague. Mas eu não poderia dizer. E, neste ponto você parou de me ouvir. A bomba já havia explodido dentro de sua cabeça. A conversa estava terminada. Nossa única chance de falar se havia ido para sempre.

Bohr: Porque já tinha entendido o ponto central. Que por um caminho ou outro viria a possibilidade de fornecer armas nucleares a Hitler.

Heisenberg: Compreendestes, pelo menos, quatro pontos centrais, todos equivocados. Você disse a Rozental. Que eu tinha tentado tirar de você o que sabia da fissão! Disse a Weisskopf que eu havia te perguntado o que você sabia do programa nuclear aliado. Chadwick entendeu que eu estava tentando te persuadir
de que não havia nenhum programa alemão. Mas também parece que contastes a algumas pessoas que eu queria te recrutar para trabalhar para nós!

Bohr: Muito bem. Vamos começar do princípio. Não há homens da Gestapo nas sombras. Não há oficial da inteligência britânica. Ninguém nos observa.

Margreth: Só eu!

Bohr: Só Margreth. Vamos deixar tudo claro para ela! Você sabe que eu acredito fervorosamente que não fazemos ciência para nós, que a fazemos isso para poder explicá-la aos outros...

Heisenberg: Em linguagem simples 

Bohr: Em linguagem simples. Não é a sua posição, eu sei; você poderia facilmente descrever o que você está investigando, equações diferenciais se é possível, mas para Margreth...

Heisenberg: Em linguagem simples!

Bohr: Uma linguagem simples, está bem, então aqui estamos nós, andando pela rua mais uma vez. E desta vez eu estou totalmente calmo. Te escuto com atenção. O que quer me dizer?

Heisenberg: Não é apenas o que eu quero dizer! É toda a equipe nuclear alemã em Berlim! Não Diebner, é claro, não os nazistas; Weizsäcker, Hahn, todos eles queriam que eu viesse aqui e discutisse com você. Todos nós o vemos como uma
espécie de pai espiritual.

Margreth: O Papa. Assim o chamavam pelas costas! E agora querem que lhes dê a absolvição.

Heisenberg: Absolvição? Não!

Margreth: É o que dizem os teus colegas alemães.

Heisenberg: A absolvição é a última coisa que eu quero.

Margreth: Você disse a um historiador que haviam se expressado perfeitamente.

Heisenberg: Sim? Absolvição... É por isso que eu vim? É como tentar acordar-me de todas as diferentes explicações que disse e de tudo o que eu fiz... Mas agora a palavra absolvição aparece entre elas...

Margreth: Eu pensava que a absolvição se é concedida pelos pecados já cometidos e por seu arrependimento, não pelos pecados que querem cometer e ainda não haviam se realizado.

Heisenberg: Exatamente! Por isso eu fiquei chocado!

Bohr: Você ficou chocado?

Heisenberg: Porque me disse a absolvição! Isso é exatamente o que fizeste! Então rapidamente voltamos para a casa. Disseste algo em voz baixa sobre que todos durante uma guerra estavam obrigados a fazer o melhor possível pelo seu país. Sim?

Bohr: Deus sabe que disse! Mas agora estou aqui, muito calmo e consciente, medindo minhas palavras. Você não quer a absolvição. Entendo. Você gostaria que eu a dissesse para não fazer? Está tudo bem! Eu coloco minha mão no seu ombro.
Te olho nos olhos de modo paternal e te digo: Retorna para a Alemanha, Heisenberg! Reúne seus colegas no laboratório. Suba em uma mesa e diga-lhes: "diz Niels Bohr que desde seu estudado ponto de vista, fornecer a um maníaco homicida um instrumento sofisticado de assassinato em massa é..." O que eu posso dizer? "... uma ideia interessante!" Não, nem mesmo uma ideia interessante. "... Na verdade, melhor: “uma ideia seriamente pouco interessante!" Que acontece? Todos abandonam instantaneamente seus contadores Geiger, fecham tudo com chave e vão para casa?

Heisenberg: Não, obviamente não.

Bohr: Porque seriam presos.

Heisenberg: Se eles nos prendem ou não, não muda nada. Em vez disso, pioraria as coisas! Eu dirijo o programa de pesquisa nuclear do Instituto de Ciência. Mas há outro programa do exército, liderado por Kurt Diebner e ele é do partido nazista. Se eu não estou, simplesmente Diebner fará cuidar de meu cargo também. Minha única esperança é continuar eu, a executar o programa.

Bohr: Então não quer que eu te diga que sim e não queres que te diga não.

Heisenberg: Eu quero que escute atentamente o que eu vou lhe dizer agora e não saia correndo como um louco nas ruas.

Bohr: Muito bem. Aqui eu estou andando muito devagar e papalmente. E eu escuto atentamente enquanto você me diz que...

Heisenberg: Que as armas nucleares exigem um enorme esforço técnico.

Bohr: Certo.

Heisenberg: Isso vai exigir enormes recursos!

Bohr: Enormes recursos! Certo.

Heisenberg: Que, antes ou depois, os governos terão de perguntar aos cientistas se vale a pena comprometer esses recursos; se existe esperança de produzir estas armas a tempo para que eles usem.

Bohr: Claro, mas...

Heisenberg: Espera! Eles virão para você e para mim! Nós somos os únicos que vão aconselhar se vale a pena ir em frente ou não. Afinal de contas a decisão estará em nossas mãos, a gente goste ou não.

Bohr: E é isso que você quer me dizer?

Heisenberg: É isso o que eu quero dizer.

Bohr: É por isso que você demorou tanto para chegar até aqui? É por isso que jogou fora quase vinte anos de amizade Simplesmente para dizer-me isso?

Heisenberg: Só para te dizer isso.

Bohr: Mas Heisenberg, isso é ainda mais misterioso! Para que me contas? O que você quer que eu faça? O governo de ocupação da Dinamarca vai vir me perguntar se deveríamos produzir armas nucleares!

Heisenberg: Não, mas mais cedo ou mais tarde, se eu puder permanecer no comando do programa, o governo alemão vai me perguntar para mim... perguntarão a mim se continuamos ou não. E eu terei que decidir o que dizer a eles!

Bohr: Então você tem uma saída mais fácil para o seu problema! Simplesmente diga a verdade que você acabou de me dizer! Que é muito difícil! E talvez desanimem! Talvez percam o interesse.

Heisenberg: Mas Bohr, aonde levará isso? Quais serão as consequências se fazer fracassar o programa alemão?

Bohr: O que posso te dizer que não possa dizer você mesmo?

Heisenberg: Eu li em um jornal de Estocolmo que os americanos estão trabalhando em uma bomba atômica.

Bohr: Ah, era isso! Era isso! Agora entendo tudo. Você acredita que eu estou em contato com os americanos?

Heisenberg: Pode ser. É possível! Se há alguém na Europa ocupada, que está em contato com eles, tem que ser você.

Bohr: Então, você só quer saber sobre o programa nuclear dos aliados...
 
Heisenberg: Simplesmente quero saber se existe um. Uma pista! Um indício! Acabo de trair o meu país e arriscar minha vida para alertar sobre a existência de um programa alemão.

Bohr: E agora eu que tenho que devolver o favor?

Heisenberg: Bohr, eu tenho que saber! Eu sou o único que tem que decidir! Se os aliados estão fabricando uma bomba, o que estou fazendo para o meu país? Seria fácil se equivocar e pensar que, porque o país de um é culpado, um o ama menos.
Nasci na Alemanha! É onde eu me tornei quem eu sou. A Alemanha é todos os rostos de minha infância, todas as mãos que me levantaram quando eu caí, todas as vozes que me deram incentivo e apontaram o caminho, todos os corações que falaram ao meu coração! A Alemanha é a minha mãe viúva, e meu irmão impossível. É a minha mulher! Alemanha é nossos filhos! Tenho que saber o que eu estou decidindo por eles! Mais uma derrota? Outro pesadelo como no pesadelo que fui criado? Bohr, minha infância em Munique terminou em meio à anarquia e a guerra civil. Vão passar fome mais crianças como nós passamos? Será que eles vão ter que passar as noites de inverno, como eu quando ia para a escola, rastejando atrás das linhas inimigas, no escuro, para buscar entre a neve comida para a minha família? Vão passar toda uma noite inteira, como eu fiz aos dezessete anos, com um rifle na mão, falando e falando com um prisioneiro aterrorizado que eles iam executar pela manhã?

Bohr: Mas, meu querido Heisenberg, eu não tenho nada para dizer. Eu não tenho ideia se há um programa nuclear aliado.

Heisenberg: Se está pondo em marcha contra nós, enquanto você e eu estávamos conversando nesta noite de 1941. E pode ser que estejam escolhendo algo pior do que a derrota. Porque a bomba que está sendo construída é para ser usada contra nós! A noite de Hiroshima de 06/08/1945, Oppenheimer disse que era seu único arrependimento. Que não haviam feito a bomba a tempo de ser utilizado na Alemanha!

Bohr: Se atormentou muito depois.

Heisenberg: Depois, sim. Pelo menos nós nos atormentamos antes. Talvez um deles parou para pensar por um momento que eles estavam fazendo? Fez isso Oppenheimer ou qualquer um dos seus colegas? O fez Einstein quando escreveu a Roosevelt em 1939, instigando-o a financiar pesquisas sobre a bomba? O fez você quando escapou de Copenhagen dois anos mais tarde e te unistes a equipe dos aliados?

Bohr: Meu querido Heisenberg, não estávamos fornecendo bomba a Hitler!

Heisenberg: Tão pouco estavam deixando de cair sobre a cabeça de Hitler. A estavam jogando sobre os velhos na rua, sobre suas mães e seus filhos. E se tivessem feito a tempo teria sido em meus compatriotas. Minha esposa! Meus filhos! Essa era a intenção, sim?

Bohr: Essa era a intenção.

Heisenberg: Não tinham a menor ideia do que é o que acontece quando uma bomba é lançada sobre uma cidade! Nem sequer uma bomba convencional. Nenhum de vocês tinha sofrido. Nem um só. Uma noite eu fui andando do centro de Berlim aos subúrbios depois de um grande bombardeio. A cidade inteira em chamas. Até os poços nas ruas estão queimando! São poças de fósforo fundido. Ela adere aos sapatos como uma merda de cachorro fumegante. Tenho que me desviar constantemente, como se as ruas tivessem sido contaminados por uma matilha do inferno. Você teria rido, meus sapatos estavam pegando fogo o tempo todo. Em torno de mim, eu suponho há milhares de pessoas morrendo queimadas. E tudo que eu consigo pensar é: "Como é que eu vou conseguir outro par de sapatos em
um momento como este?”

Bohr: Você sabe por que os cientistas aliados trabalharam na bomba.

Heisenberg: Claro! Por medo.

Bohr: O mesmo medo que consumiu você! Porque eles tinham medo de que você estava trabalhando nela.

Heisenberg: Mas, Bohr, você poderia ter dito a eles!

Bohr: Dizer-lhes o quê?

Heisenberg: O que eu te disse em 1941! Que essa escolha estava em nossas mãos! Nas minhas e na de Oppenheimer! Que se eu posso dizer às autoridades alemãs a verdade assustadora, quando me perguntarem, ele também pode!

Bohr: É isto que você quer de mim? Não que te conte o que os americanos estão fazendo, mas que os detenha?

Heisenberg: Que você diga para pararmos juntos.

Bohr: Eu não tinha comunicação com os americanos.

Heisenberg: Mas, com os britânicos sim.

Bohr: Só mais tarde!

Heisenberg: A Gestapo interceptou a mensagem que mandastes a eles sobre nosso encontro!

Margreth: E a colocaram em suas mãos?

Heisenberg: E por que não? Eles haviam começado a confiar em mim. É o que me deu a deu a capacidade de manter a situação sob controle.

Bohr: Não é por criticar, Heisenberg, mas se este é o plano porque veio a Copenhagen é... como direi? Muito... interessante.

Heisenberg: Não é um plano. É uma esperança! Nem sequer isso. Um fio microscópico de possibilidade. Totalmente improvável. Mas vale a pena tentar, Bohr! Vale a pena tentar! Mas você já está muito zangado para entender o que eu digo.

Margreth: Não. Está com raiva porque está começando a entender! Os alemães se desfizeram da maioria de seus melhores físicos porque eram judeus. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha deram-lhes asilo. E isso é para os aliados uma esperança de salvação. E vocês vem uivando a Niels, implorando para convencê-los a parar. Mas como se atreve! Como se atreve!

Bohr: Margreth, meu amor, tente se expressar um pouco mais civilizadamente.

Heisenberg: Civilizadamente! Isso que teríamos que ter feito, discutir civilizadamente! Quando eu ouvi sobre Hiroshima a primeira vez, me recusei a acreditar. Desde os últimos meses da guerra, estávamos vivendo em uma mansão no meio de um campo Inglês. Sequestraram-nos os britânicos, a toda a equipe
alemã que trabalhavam na pesquisa atômica. Na Alemanha, as nossas famílias estão morrendo de fome, sem saber nada sobre nós. E lá estamos nós, sentados à mesa cada noite para assistir a um excelente jantar formal, com o nosso encantador anfitrião, o oficial britânico encarregado de nós. Mas a guerra acabou e nós continuamos lá e tudo é deliciosamente civilizado. Eu toco sonatas de piano de Beethoven! O major Rittner nos lê sobre Dickens. Realmente me tem passado estas coisas... Esperamos que nos revele qual é o sentido de tudo isso. E uma noite se passa. O ouvimos pelo rádio: vocês acabam de cometer o final pelo qual temíamos! Pelo que nós estávamos lá. Nos trancaram para que não falássemos sobre o tema até que fosse tarde demais. Quando o Major Rittner nos disse, eu me recusei a
acreditar até que ouvi com meus próprios ouvidos sobre a notícia. Não tínhamos ideia de quão avançado que estavam. Ficamos acordados naquela noite, conversando, tentando entender. Estávamos todos, literalmente atordoados.

Margreth: Por que o fizeram eles? Ou por que não havia feito vocês?

Heisenberg: As duas coisas. As duas! Otto Hahn queria se matar, porque ele descobriu a fissão, e vê sangue em suas mãos! Gerlach, nosso antigo coordenador nazista também quer morrer, porque suas mãos estão tão vergonhosamente limpas!
Mas vocês a fizeram! Construíram a bomba.

Bohr: Sim.

Heisenberg: E a usaram em um alvo humano!

Bohr: Em um alvo humano.

Margreth: Não está sugerindo que Niels fez algo errado por ter trabalhado em Los Alamos?

Heisenberg: Claro que não. Bohr nunca fez nada de mal em sua vida.

Margreth: A decisão havia sido tomada muito antes de Niels chegar. A bomba iam construir, estando ele ou não.

Bohr: De qualquer forma a minha contribuição foi muito pequena.

Heisenberg: Oppenheimer disse que você era o padre confessor da equipe.

Bohr: Parece ser meu papel na vida.

Heisenberg: Disse que a sua foi uma contribuição importante!

Bohr: Espiritualmente talvez, não na prática.

Heisenberg: Fermi disse que foi você quem decidiu detonar a bomba de Nagasaki.

Bohr: Propus uma ideia.

Margreth: Não quer insinuar que há algo que Niels deva explicar ou defender?

Heisenberg: Nunca ninguém lhe pediu que explicasse ou defendesse algo. Ele é um homem profundamente bom!

Bohr: Não se trata de minha bondade! Me pouparam de ter que tomar a decisão!

Heisenberg: Sim, e a mim não. Com o qual eu passei os últimos 30 anos da minha vida dando explicações e me defendendo. Quando fui para os Estados Unidos em 1949, muitos físicos nem sequer queriam me dar a mão. As mesmas mãos que haviam construída a bomba não queriam tocar a minha.

Margreth: Se achas que está clareando a história agora, você está errado!

Bohr: Margreth, eu entendo seus sentimentos...

Margreth: Não! Agora quem está irritada sou eu! É muito fácil para ele te fazer sentir culpado! Que fez ele, depois de consultá-lo? Voltar a Berlim e dizer aos nazistas que ele pode produzir bombas atômicas!

Heisenberg: Sim! Mas enfatizo a dificuldade de separar 235!

Margreth: Lhes diz do plutônio.

Heisenberg: Se o conto é para alguns soldados de baixo escalão. Eu tenho que manter viva a esperança deles!

Margreth: Porque se não eles vão buscar o outro!

Heisenberg: A Diebner! Muito provavelmente!

Margreth: Sempre há um Diebner disposto a fazer cargo de nossos crimes!

Heisenberg: É possível que Diebner tenha conseguido mais progressos do que eu.

Bohr: Diebner?

Heisenberg: É possível. Só possível.

Bohr: Não tem sequer um quarto da sua capacidade!

Heisenberg: Nem um décimo! Mas tem dez vezes mais vontade. Daria uma versão muito diferente se fora ele e não eu que se reunisse com Albert Speer, ministro de armamentos de Hitler.

Margreth: A famosa reunião com Speer!

Heisenberg: Este é um momento importante. O decisivo junho de 1942. Nove meses depois da minha viagem a Copenhagen. Hitler cancelou todas as pesquisas que não produziam resultados imediatos, e Speer é o único árbitro que decide quais programas continuam. E justo agora acabamos de obter o primeiro sinal de que a nosso reator vai funcionar. Nosso primeiro incremento de nêutrons. Não muito, de 13%, mas é um começo.

Bohr: Junho de 1942? Estão um pouco mais avançado do que Fermi, em Chicago.

Heisenberg: Mas não sabíamos. Aliás, a força aérea inglesa começou seus bombardeios de alvos civis. Arrasaram metade de Lübeck e todo o centro de Rostock e Colônia. A Alemanha precisa desesperadamente de novas armas para contra-atacar! É hora de apresentar o nosso projeto!

Margreth: Não pediram fundos para continuar?

Heisenberg: Para continuar com o reator? Claro que sim! Mas eu pedi tão pouco que não levaram o programa a sério.

Margreth: Contou que o reator vai produzir plutônio?

Heisenberg: Claro que não! Não para Speer. Eu não lhe contei que o reator vai produzir plutônio.

Bohr: Uma impressionante omissão! É certo!

Heisenberg: E o que aconteceu? Nos deu apenas o suficiente para o programa sobreviver. E esse é o fim da bomba atômica alemã. É o fim!

Margreth: No entanto continuam com o reator.

Heisenberg: Continuamos com o reator! Porque agora não corremos o risco de produzir o plutônio a tempo suficiente para fabricar uma bomba. Trabalhamos como loucos. Temos de arrastar de uma ponta a outra na Alemanha, para mantê-lo longe do bombardeio e para evitar que ele caia em mãos russas. E o instalamos em uma vila no oeste.

Bohr: Em Haigerloch?

Heisenberg: Sim. Na pousada da vila tinha uma adega no sótão. Fizemos um buraco no chão para o reator e me asseguro que esse programa continua a operar sob a meu controle até o amargo fim.

Bohr: Mas Heisenberg, com respeito, com o todo respeito, você não poderia controlar do reator. O reator iria matá-lo!

Heisenberg: Nunca chegou a uma fase crítica.

Bohr: Graças a Deus. Quando os aliados tomaram ele, descobriram que ele não tinha hastes de controle cádmio. Não estava previsto qualquer mecanismo para absorver o excesso de nêutrons, em caso de que a reação se superaquecerá. Se
chegasse a fase crítica, teria derretido e desaparecido no centro da Terra!

Heisenberg: Não, para nenhum lugar. Tivemos uma casca de cádmio.

Bohr: Casca de cádmio? O que pensaram em fazer com uma casca de cádmio?

Heisenberg: Tirar a água pesada. O moderador no que estava imerso o urânio.

Bohr: Meu querido Heisenberg, não para criticar, mas haviam enlouquecido!

Heisenberg: Quase chegamos! Tínhamos um crescimento de nêutrons espetacular! Chegamos a um crescimento de 670%. Só mais uma semana... Quinze dias a mais. Isso é tudo que precisávamos!

Bohr: Só os salvou a chegada dos aliados!

Heisenberg: Quase chegou a etapa crítica! Um pouquinho mais e a reação em cadeia teria se sustentado indefinidamente. Só precisávamos de um pouco mais de urânio.

Bohr: E tinham tudo sob controle?

Heisenberg: Sob meu controle! Sim! Isso é o que importa! Sob meu controle!

Bohr: Você já não controlava o programa, Heisenberg, o programa controlava você!

Heisenberg: Duas semanas a mais, duas barras a mais de urânio e teriam sido os físicos alemães que conseguiriam a primeira reação em cadeia autossustentável!

Bohr: Exceto que Fermi, já tinha feito em Chicago dois anos antes.

Heisenberg: Não sabíamos.

Bohr: Não estavam cientes de nada naquela caverna. Especialistas aliados disseram que não tinham algo sequer para se proteger da radiação.

Heisenberg: Não tínhamos tempo para pensar nisso! Só podíamos pensar em fazer funcionar o reator!

Bohr: Eu deveria ter estado lá para cuidar de você. Sempre precisou de mim ao seu lado para te frear! Sua própria casca de cádmio.

Heisenberg: Se eu tivesse morrido pela radiação, o que eu teria perdido? Trinta anos de explicações. Trinta anos de culpa e hostilidade. Para mim você virou as costas. Às vezes eu penso que essas semanas em Haigerloch foram a última época feliz da minha vida. Estávamos livres das políticas de Berlim. Fora dos alcances das bombas. A guerra terminava. Não tínhamos nada no que pensar, exceto o reator.

Margreth: Olhe para ele! Ele está perdido como um menino! Estava jogando no bosque todo o dia, correndo de um lado para o outro. Teve coragem, teve medo. E agora chegou a noite e a única coisa que quer é ir para casa.

Heisenberg: Silêncio.

Bohr: Silêncio.

Margreth: Silêncio.

Heisenberg: E mais uma vez o leme travou e Cristian está caindo.

Bohr: Mais uma vez ele tenta alcançar a boia!

Margreth: Mais uma vez levanto meus olhos do meu trabalho e Niels está à porta, me olhando silenciosamente...

Bohr: Então Heisenberg. A que veio para Copenhague em 1941? Foi bom que nos contasse todos os medos que você tinha. Mas realmente não acreditava que eu ia contar se os norte-americanos estavam trabalhando em uma bomba.

Heisenberg: Não.

Bohr: Não esperava que eu os detivesse.

Heisenberg: Não.

Bohr: Ia voltar a trabalhar no reator mais além do que eu te dissesse.

Heisenberg: Sim.

Bohr: Então, por que você veio?

Heisenberg: O que vim?

Bohr: Conte-nos novamente. Outro rascunho. E esta vez nós ficaremos bem. Desta vez entenderemos.

Margreth: Até pode ser que você mesmo entenda.

Bohr: Depois de tudo, o funcionamento do átomo era difícil de explicar! Fizemos muitas tentativas! A cada tentativa ele se tornava mais obscuro. Mas ao final chegamos. Vamos, outro projeto, outro projeto!

Heisenberg: A que vim? E uma vez mais recorrerá essa noite de 1941. Esmago as pedrinhas do caminho familiar para a porta de entrada da casa dos Bohr, e toco a campainha! O que eu sinto? O medo, segurança, e a importância absurda e horrível de alguém que traz más notícias. Mas... sim... há algo mais. Aqui venho de novo. Quase posso ver seu rosto. Algo bom. Algo luminoso e esperançoso.

Bohr: Abro a porta...

Heisenberg: E lá está ele. Eu vejo seus olhos que se iluminam quando me veem!

Bohr: Sorrio com seu sorriso cauteloso de aluno.

Heisenberg: E sinto um momento de muito consolo.

Bohr: Um segundo de alegria tão doce.

Heisenberg: Como se voltasse para casa depois de uma longa viagem!

Bohr: Como se um filho perdido tivesse aparecido na porta.

Heisenberg: Repentinamente me livro de todos os medos, de toda obscuridade.

Bohr: Cristian está vivo! Harald ainda não nasceu.

Heisenberg: O mundo está em paz de novo.

Margreth: Olhem para eles! Todavia, pai e filho! Por um momento. Mesmo agora que estamos todos mortos.

Bohr: Por um segundo voltamos para os anos vinte!

Heisenberg: E nos falaremos e nos entenderemos como então!

Margreth: E dessas duas cabeças surgirá o futuro. Quais cidades serão destruídas e quais sobreviverão. Quem morrerá e quem viverá. Qual mundo desaparecerá e qual triunfará.

Bohr: Meu querido Heisenberg!

Heisenberg: Meu querido Bohr:!

Bohr: Acontece, acontece...

<FIM DO PRIMEIRO ATO>

<INÍCIO DO SEGUNDO ATO>

Heisenberg: A primeira vez que vim a Copenhague foi bem ao começo da primavera de 1924. Março!

Bohr: Você tinha vinte e dois. Então eu deveria ter...

Heisenberg: Trinta e oito.

Bohr: Quase a mesma idade que você tinha quando você veio em 1941.

Heisenberg: O que fizemos?

Bohr: Nós colocamos as botas e a mochila.

Heisenberg: Nós tomamos a trilha até o final da conversa...

Bohr: E caminhamos!

Heisenberg: Sentido norte, a Elsinore.

Bohr: Se um caminha, fala.

Heisenberg: Caminhamos e falamos por quase 200 quilômetros.

Bohr: E depois não paramos de falar durante três anos.

Heisenberg: Compartilhamos uma garrafa de vinho no seu departamento do Instituto.

Bohr: Mas nós temos que seguir os fios até o início do labirinto. A você não importava? Espero que não.

Margreth: Que?

Bohr: Que te deixássemos em casa.

Margreth: Enquanto vocês estavam caminhando? Claro que não. Por me importaria? Você tinha que sair de casa. Dois filhos novos ao mesmo tempo era muito para qualquer homem tolerar.

Bohr: Dois novos filhos?

Margreth: Heisenberg.

Bohr: Sim, sim.

Margreth: E o nosso próprio filho.

Bohr: Aage?

Margreth: Ernesto!

Bohr: 1924, é claro, Ernesto.

Margreth: O quinto. Sim?

Bohr: Sim. Era março, tem razão. Não tinha mais de...

Margreth: Uma semana.

Bohr: Uma semana? Uma semana, sim. E de verdade não se importava?

Margreth: Que nada. Me contentava que você tivesse uma desculpa para sair. Você sempre saia para um passeio com seus novos assistentes.

Heisenberg: Ah, aqueles anos! Esses anos assombrosos! Esses três curtos anos!

Bohr: De 1924 a 1927.

Heisenberg: Desde que cheguei a Copenhague para trabalhar com vocês...

Bohr: Até que partisse, para se encarregar da sua cátedra em Leipzig.

Heisenberg: Três anos de uma primavera áspera, revigorante típica do norte da Europa.

Bohr: Ao final da qual tínhamos a mecânica quântica, tínhamos o princípio da incerteza...

Heisenberg: Tínhamos a teoria da complementaridade.

Bohr: Tínhamos a totalidade das interpretações do grupo de Copenhague.

Heisenberg: Novamente Europa em toda a sua glória. Um novo renascimento, com a Alemanha outra vez em seu devido lugar, no centro de tudo. E quem abriu o caminho para todos os demais?

Margreth: Vocês dois.

Heisenberg: O fizemos sim.

Bohr: O fizemos.

Margreth: E para isso que tentou voltar em 1941?

Heisenberg: Para algo que fizemos naqueles três anos... Algo que dissemos, algo que pensamos... algo referido a forma em que trabalhamos.

Bohr: Juntos.

Heisenberg: Juntos. Sim, juntos.

Margreth: Não.

Bohr: Não? O que quer dizer, não?

Margreth: Juntos não. Não fizeram nenhuma dessas coisas juntos.

Bohr: Sim, as fizemos. Claro que fizemos.

Margreth: Cada um fez seu trabalho quando estiveram separados. Primeiro terminastes de resolver a mecânica quântica em Heligoland.

Heisenberg: Bom, havia chegado o verão e eu tive a minha alergia.

Margreth: Não. Você foi sozinho a esta ilha dizendo que lá não havia nada que te distraísse.

Heisenberg: Sim. Minha cabeça começou a clarear, e eu tive uma imagem muito clara de como deveria ser física atômica. De repente, me dei conta que tínhamos de limita-la as medições que poderíamos fazer, ao que poderíamos observar. Não podemos ver os elétrons dentro do átomo...

Margreth: Como tão pouco Niels pode ver os pensamentos na sua cabeça ou você os pensamentos na de Niels.

Heisenberg: Tudo o que podemos ver são os efeitos que produzem os elétrons na luz que eles refletem...

Bohr: Mas as dificuldades que você estava tentando resolver eram aquelas que havíamos explorado juntos, comendo no departamento do Instituto ou na casa de praia.

Heisenberg: Claro. Mas eu me lembro da noite quando as matemáticas começaram pela primeira vez a se harmonizar com o Princípio da Incerteza.

Margreth: Em Heligoland.

Heisenberg: Em Heligoland.

Margreth: Sozinho.

Heisenberg: Sim. Foi terrivelmente desgastante. Mas perto das três horas da manhã consegui resolvê-lo. Parece como se estivesse olhando através da superfície dos fenômenos atômicos e eu vejo um estranho e belo mundo interior. Um mundo de estruturas puramente matemáticas. E sim, estava feliz!

Margreth: Mais feliz do quando estava conosco no inverno seguinte.

Heisenberg: Claro! Com todos os absurdos de Schrödinger?

Bohr: Absurdos? Vamos... A formulação da mecânica ondulatória de Schrödinger?

Margreth: ... disse que era nojenta!

Heisenberg: Disse que as consequências para a física eram repulsivas. Schrödinger disse que a minha matemática era repulsiva.

Bohr: Para mim, parece-me que você usou outra palavra.

Heisenberg: Você convidou Schrödinger para vir aqui...

Bohr: Para manter um debate pacífico sobre nossas diferenças.

Heisenberg: E você caiu sobre ele como um louco. O vai buscar na estação e arremete contra ele antes que pudesse baixar suas bagagens do trem. E logo seguiu contra ele desde as primeiras horas da manhã até meia noite!

Bohr: Eu a segui? Ele a seguia 

Heisenberg: Por que não querias fazer a menor concessão!

Bohr: E ele muito menos!

Heisenberg: O fez ficar doente! Teve que se meter na cama para ficar longe de você!

Bohr: Teve um resfriado leve, com um pouco de febre.

Heisenberg: Margreth o teve que cuidar!

Margreth: Dei bastante de chá e bolo para não enfraquecer.

Heisenberg: Sim, enquanto que você não o deixava em paz nem mesmo na cama! Você sentou lá e o martelava com palavras!

Bohr: Muito educadamente.

Heisenberg: Você era o Papa, o Santo Ofício e a Inquisição em uma só pessoa! E então, depois de que Schrödinger se foi, fugindo de sua casa – e isso não me vou esquecer, Bohr, eu não vou deixar você esquecer – me pus do seu lado. E você me
atacou!

Bohr: Porque a essa altura você tinha enlouquecido. Você tinha-se tornado um fanático. De nenhuma maneira queria permitir a ele um lugar na mecânica quântica e na teoria ondulatória.

Heisenberg: Me traístes!

Bohr: Disse que a mecânica ondulatória de Schrödinger e sua mecânica das matrizes eram simplesmente ferramentas alternativas.

Heisenberg: Você estava aceitando algo do que sempre me acusou: “Se funcionar, funciona". Não importa o significado.

Bohr: É claro que me importa o significado. Teremos que explicá-lo a Margreth.

Margreth: A mim? Se não se podiam explicar entre vocês! Seguiam discutindo pela madrugada todas as noites! Os dois se irritavam tanto!

Bohr: Ficávamos exaustos.

Margreth: O experimento da câmara de nuvem terminou com essas discussões.

Bohr: Sim, porque um elétron se desprende do seu átomo e passa então, através de uma câmara de nuvem, sendo assim possível observar o trajeto deixado.

Heisenberg: E é um escândalo. Porque não deveria haver um rastro!

Margreth: De acordo com sua maneira de olhar a mecânica quântica.

Heisenberg: Não há um rastro! Não há órbitas! Nem rastros nem trajetórias! Só efeitos externos!

Margreth: Mas lá está o rastro. Eu mesmo o vi tão claro como o rastro que deixa um barco ao passar.

Bohr: Era um paradoxo fascinante.

Heisenberg: E a você te encantavam os paradoxos, esse é o seu problema. Você jubilava nas contradições.

Bohr: Sim, e você nunca pôde entender o encanto que há no paradoxo e a contradição. Esse é seu problema. Você vive e respira paradoxos e contradições, mas não é capaz de ver a beleza delas, como o peixe não podem ver a beleza da
água.

Heisenberg: Às vezes me sentia preso em uma espécie de inferno sem janelas. Você não se dá conta o quão agressivo você é. Dando voltas ao redor da sala, como se estivesse para devorar alguém – e eu posso adivinhar quem vai ser.

Bohr: Mas assim fazíamos a física.

Margreth: Não! Ao final você fez em por sua conta, sozinho! Você foi esquiar na Noruega.

Bohr: Tinha que me afastar de tudo isso!

Margreth: E resolvestes a complementaridade na Noruega, por sua conta! Vocês dois funcionavam bem melhor separados!

Heisenberg: Mandá-lo para longe, foi um grande alívio, como poder escapar da minha alergia em Heligoland.

Margreth: Se eu fosse a professora não deixaria vocês sentarem juntos.

Heisenberg: E foi lá quando desenvolvi o Princípio da Incerteza. Andando sozinho no escuro. Eu começo a pensar que veria você, se pudesse focar um telescópio sobre mim, lá nas montanhas da Noruega. Iria me ver junto com as luzes dos postes da rua, e logo nada, enquanto eu desaparecia na escuridão, logo me veria enquanto passo pela luz de outro poste. E é isso o que vemos na câmara de nuvem. Não um rastro contínuo e sim uma série de visões breves – uma série de colisões entre o elétron que passa e várias de moléculas de vapor de água. Ou penso em sua viagem a Leiden em 1925. Que veria Margreth dessa viagem, estando em sua casa, aqui em Copenhagen? A carta de Hamburgo, talvez. Então, uma de Leiden. Uma de Göttingen. Uma de Berlim. Porque o que vemos na câmara de nuvem nem sequer são as colisões em si mesmas, senão as gotas de água que se condensam ao redor delas. Não há rastros, não há direções precisas; só uma linha embaçada das cidades que você visitou. Não sei por que não nos ocorreu antes, estávamos muito ocupados discutindo para sequer pensar.

Bohr: Em troca parecia que você havia abandonado todo tipo de discussão. Quando voltei da Noruega me encontrei com o que você tinha feito, um rascunho do seu trabalho sobre o princípio da incerteza e que já havia mandado publicar!

Margreth: E então começa o combate.

Bohr: Meu querido Heisenberg, não é um comportamento muito franco se pôr a imprimir um primeiro rascunho antes de havê-lo discutido juntos! Essa não é a nossa maneira de trabalhar!

Heisenberg: Não! A forma que trabalhamos é que me persegue desde a primeira hora da manhã até a última hora da noite! A maneira que trabalhamos é que me deixa louco!

Bohr: Sim, porque seu relatório tem um erro fundamental.

Margreth: Aí estão em pleno combate.

Heisenberg: Eu lhe mostro a verdade estranha sobre o universo, com a que jamais havíamos deparado desde a teoria da relatividade: que nunca se pode saber tudo sobre o paradeiro de uma partícula, ou qualquer outra coisa – nem sequer de Bohr agora, enquanto dá voltas de um lado para outro da sala desse seu modo seu, tão irritante. – Eu faço em pedaços o universo objetivo que o rodeia, e tudo o que me pode dizer é que eu tenho um erro na formulação!

Bohr: E tem!

Margreth: Querem chá? Torta?

Heisenberg: Escuta-me, em meu trabalho o que estamos tentando localizar não é um elétron livre, de viagem através de uma câmara de nuvem, e sim a um elétron quando está no seu lugar, dando voltas dentro de um átomo...

Bohr: E a incerteza não surge, como você sustenta – através de seu impreciso retrocesso quando é golpeado por um fóton que avança...

Heisenberg: Linguagem simples, a linguagem simples!

Bohr: Estou falando em linguagem simples.

Heisenberg: Escuta-me...

Bohr: A linguagem da mecânica clássica.

Heisenberg: Escuta-me! Copenhague é um átomo. Margreth é o seu núcleo. Está bem a escala? Dez mil a um?

Bohr: Sim, sim.

Heisenberg: E Bohr é um elétron. Ele está vagando em algum lugar da cidade na escuridão, ninguém sabe onde. Está aqui, está lá, está em toda parte e em lugar nenhum. Eu sou um fóton. Um quantum de luz. Sou enviado dentro da escuridão para encontrar Bohr. E tenho sucesso, porque vou me chocar com ele... Mas o que aconteceu? Olha, você está desacelerando! Você desviou! Já não está fazendo exatamente o mesmo que tão irritantemente estava fazendo quando me choquei!

Bohr: Mas Heisenberg, Heisenberg:! Também você se desviou! Se puder ver o que aconteceu com você e com sua partícula de luz, então pode calcular o que aconteceu comigo! O problema é saber o que aconteceu com você! Porque para entender como você se vê, nós temos que tratá-lo não apenas como uma partícula, e sim como uma onda. Tenho que usar não só a tua mecânica sobre as partículas, também tenho que usar a mecânica ondulatória de Schrödinger.

Heisenberg: Já sei, o adicionei em um anexo no meu artigo.

Bohr: Todos se lembram do seu relatório, mas ninguém se lembra de seu anexo. Mas o assunto é fundamental. Partículas são coisas, completas em si mesmas. As ondas são alterações que se produzem em outras coisas.

Heisenberg: Já sei. Complementaridade. Está nos anexos.

Bohr: Você nunca aceitou absoluta e totalmente a teoria da complementaridade, verdade?

Heisenberg: Sim! Absoluta e totalmente! A defendi na Conferência de Como de 1927! Sou um defensor fiel desde então. Você me convenceu. Eu aceitei a sua crítica humildemente.

Bohr: Não antes de dizer algumas coisas profundamente ofensivas.

Heisenberg: Em um momento literalmente me fizeste chorar!

Bohr: Eu as diagnostiquei como lágrimas de frustração e raiva.
Heisenberg: Uma birra infantil?

Bohr: Eu criei meus filhos.

Heisenberg: E o que aconteceu com Margreth? Ela também teve um acesso de raiva? Descobri que a fiz chorar depois que sai, fazendo-a digitar suas intermináveis correções de sua tese sobre a complementaridade.

Bohr: Disso não me lembro.

Margreth: Eu sim.

Heisenberg: Tivemos que arrancá-lo de sua cama para Pauli em Hamburgo para que viesse de uma vez para Copenhague para negociar a paz.

Bohr: O consegui. Nós terminamos com um tratado. A incerteza e a complementaridade se ergueram como os dois pilares centrais das interpretações da Mecânica Quântica de Copenhague.

Heisenberg: Um compromisso político, naturalmente, como a maioria dos tratados.

Bohr: Vês? Em algum lugar dentro de você ainda existem reparações secretas.

Heisenberg: Que nada, funciona. Isso é o que importa. Funciona, funciona!

Bohr: Sim, funciona. Mas mais importante que isso. Porque, se dá conta do que fizemos nesses três anos, Heisenberg? Eu não quero exagerar, mas nós demos uma reviravolta no mundo! Sim, escutem, prestem atenção, todos: voltamos a colocar o homem no centro do universo. Através da história fomos continuamente deslocados. Primeiro nos convertemos em meros acessórios dos insondáveis propósitos de Deus, pequenas figuras ajoelhadas na grande catedral da criação. E assim que nos recuperamos no Renascimento, apenas o homem se tem restabelecido como a medida de todas as coisas – como dizia Protágoras – então somos deslocados outra vez pelos produtos do nosso próprio raciocínio! Somos diminuídos novamente enquanto os físicos constroem as novas catedrais grandiosas da mecânica clássica para que nós a admiraremos. Até que chegamos ao início do século XX, e de repente nos vemos forçados a nos levantar novamente de nossa prostração.

Heisenberg: Começa com Einstein.

Bohr: Começa com Einstein. Ele mostra que a medida – ou seja, a medida da qual dependem toda a possibilidade da existência da ciência – a medida, não é um evento impessoal que ocorre com a imparcialidade do universo. É um ato humano, levado a cabo desde um ponto específico no tempo e no espaço, desde o ponto de vista particular de um possível observador. E aqui, em Copenhague, naqueles três anos em meados dos anos vinte, descobrimos que não há universo objetivo determinável com precisão. Que o universo existe só como uma série de aproximações. Só dentro dos limites determinados pela nossa relação com ele. Somente através do entendimento hospedado na cabeça humana.

Margreth: Então, este homem que você colocou no centro do universo é Bohr ou Heisenberg?

Bohr: Bem, meu amor, vamos lá.

Margreth: É que não é o mesmo.

Bohr: Qualquer um dos dois. Qualquer um de nós.

Margreth: Se Heisenberg é o que está no centro do universo, então essa partícula do universo que ele não pode ver é ele mesmo. Então não tem sentido perguntar por que veio a Copenhague em 1941, ele não sabe! Não consiste nisso a teoria complementaridade. Eu digitei muito sobre isso. Se alguém está fazendo algo no qual tem que se concentrar não pode ao mesmo tempo estar pensando em fazê-lo, e se pensa em fazê-lo então na realidade não pode estar fazendo. Agora me perdoe, mas vocês nem sequer sabem por que desenvolveram o princípio da incerteza.

Bohr: Enquanto que se sois a que está no centro do universo...

Margreth: Então posso te dizer que foi porque ele queria destruir Schrödinger.

Heisenberg: Eu queria demonstrar que ele estava equivocado, claro.

Margreth: Ele estava ganhando. Quando a cátedra de Leipzig ficou vaga, ele era um dos candidatos e não você. Então, aí você publicou o seu maravilhoso princípio.

Bohr: Não é por criticar Margreth, mas tens uma tendência a reduzir tudo ao plano pessoal.

Margreth: Porque tudo é pessoal! Você acabou de nos dar uma palestra sobre isso! Quando contas a história tudo está em ordem, tudo tem um começo, um meio e fim. Mas eu estava lá! E quando lembro como era tudo e eu olho a meu redor, o que eu vejo não é um conto! É confusão e raiva, ciúmes e lágrimas e ninguém sabe o que significam as coisas e nem que caminho elas vão continuar.

Heisenberg: De todo modo, funciona, funciona.

Margreth: Sim, funciona maravilhosamente bem. Depois três meses de ter publicado seu trabalho sobre o princípio da incerteza te ofereceram a cadeira de Leipzig.

Heisenberg: Não me referia a isso.

Margreth: Sem mencionar as outras que te ofereceram.

Heisenberg: Sim, muitas.

Bohr: E várias universidades americanas.

Heisenberg: Mas não me referia a isso.

Margreth: E que idade tinha quando você assumiu a cátedra em Leipzig?

Heisenberg: Vinte e seis.

Bohr: O professor titular mais jovem da Alemanha.

Heisenberg: Quando eu digo que funciona, me refiro a Interpretação de Copenhagen. A interpretação de Copenhague funciona. E continua funcionando.

Margreth: Sim. E porque ao final os dois aceitaram a interpretação? Crê que de verdade que foi porque queriam reestabelecer o humanismo?

Bohr: É claro que não. Foi porque era a única maneira de explicar os experimentos.

Margreth: Ou foi porque agora que você tinha se tornado um professor necessitavas criar uma doutrina solidamente estabelecida para ensinar? Ou porque você querias que tuas novas ideias fossem publicamente respaldadas pelo Papa de Copenhagen? E talvez Niels decidiu apoiá-las em troca de que você aceitasse as doutrinas que ele tinha criado e o reconhecesse como a cabeça da igreja. E quer saber a que veio para Copenhague em 1941, também vou te dizer. Tem razão, não é tão misterioso: você veio para ostentar.

Bohr: Margreth!

Margreth: Não! Quando chegou aqui em 1924, era um humilde assistente de uma nação humilhada, agradecido por ter trabalho. E agora retorna triunfante, o cientista mais importante da nação que tem conquistado grande parte da Europa. Ele veio para mostrar que estava se dando bem na vida.

Bohr: Você não pode continuar a dizer isso!

Margreth: Desculpe, mas não é por isso que você está aqui? Porque queima de desejo de que saibamos que ele é responsável por uma parte vital de qualquer investigação secreta. E que, no entanto, ele manteve uma elevada independência moral. A preserva tão claramente que até deve ser vigiado pela Gestapo. A preserva com tanto sucesso que agora também sofre um importante e maravilhoso dilema moral que deve enfrentar.

Bohr: Sim, bem, agora você está apenas dando corda para continuar atacando.

Margreth: Uma reação em cadeia. Um conta uma verdade dolorosa e isso leva a dois mais. E como francamente o admites, vai voltar para continuar fazendo exatamente o que eu fazia antes, diga o que disser Niels.

Heisenberg: É assim.

Margreth: Mas nem sonhando renunciarias a uma oportunidade tão magnífica para investigar.

Heisenberg: Não, se o posso evitar não.

Margreth: Também queres demonstrar aos nazistas o quão útil é a física teórica. Queres salvar a honra da ciência alemã. Queres estar lá para restabelecê-la com toda a sua glória quando terminar a guerra.

Heisenberg: De qualquer maneira não a conto a Speer que o reator vai produzir plutônio.

Margreth: Não, porque temes o que aconteceria se os nazistas investissem grandes recursos e fracassasse em sua tentativa de dar-lhes a bomba. Por favor, não tente nos dizer que você é um herói da resistência.

Heisenberg: Nunca pretendi ser um herói.

Margreth: Seu talento reside em esquiar tão rápido que ninguém pode ver onde você está. Sempre em mais de uma posição de cada vez, como uma das suas partículas.

Heisenberg: Só posso dizer que funcionou. A diferença do que aconteceu com a maioria dos heróis da resistência. Funcionou! Eu sei o que pensam. Pensam que eu deveria ter me unido à conspiração contra Hitler, para me enforcarem como o resto.

Bohr: É claro que não!

Heisenberg: Não o dizem, porque tem algumas coisas que é melhor não falar. Mas o pensam.

Bohr: Não.

Heisenberg: O que teria alcançado? O que haveria conseguido se tivesse se jogado para salvar Cristian e tivesse se afogado também? Mas também não posso dizer.

Bohr: Só pensar.

Heisenberg: Sim. Desculpe.

Bohr: E voltar a pensar e pensar. Todos os dias.

Heisenberg: E tive que te segurar para que não te puxasse, eu sei.

Margreth: Enquanto que você se segurava a ti mesmo.

Heisenberg: Enfim, é melhor ficar no barco. É melhor manter-se vivo e jogar a boia. Sem nenhuma dúvida!

Bohr: Talvez sim. Talvez não.

Heisenberg: É melhor. É melhor.

Margreth: Realmente é incrível. Os dois racionaram o caminho para o pequeno mundo do átomo com uma precisão e delicadeza espantosa. Agora resulta que tudo depende destes objetos imensos que carregamos sobre os ombros. E o que está
acontecendo ai é...

Heisenberg: Elsinore. A escuridão dentro da alma humana.

Margreth: Elsinore, sim.

Heisenberg: Sim, talvez tenha razão Margreth. Tinha medo das consequências. Eu estava consciente que estava do lado dos vencedores ... Tantas explicações para tudo o que eu fiz! Não contei a Speer simplesmente porque não me ocorreu. E vim para Copenhagen porque sim, apenas por que me ocorreu. Um milhão de coisas que poderíamos fazer ou não todos os dias. Um milhão de decisões que são tomadas sozinhas. Por que não me matou?

Bohr: Por que não te o que...?

Heisenberg: Me matar. Assassinar-me. Aquela noite de 1941. Lá estamos, caminhando, voltando para casa, e você acaba de chegar à conclusão de que eu vou fornecer armas nucleares a Hitler. Certamente você irá tomar os cuidados necessários para que isso não aconteça.

Bohr: Assassinando-te?

Heisenberg: Estamos no meio de uma guerra. Sou um inimigo. Não há nada de estranho ou imoral matar um inimigo. Podes fazê-lo sem barulho, sem sangue, sem sofrimento. Tão limpamente quanto a um piloto que aperta um botão a três mil pés, deixando cair uma bomba sobre a terra. Simplesmente esperas que eu tenha ido embora. Sentas calmamente em sua cadeira favorita e repete em voz alta para Margreth, frente ao nosso público invisível, o que acabo de contar-te, e eu vou estar morto em muito pouco tempo.

Bohr: Meu querido Heisenberg, a ideia é certamente...

Heisenberg: Muito interessante. Tão interessante que nem sequer te ocorreu. Uma vez mais, a complementaridade. Eu sou teu inimigo; também sou seu amigo. Sou um perigo para a humanidade; também sou seu convidado. Sou uma partícula; Também sou uma onda. Temos um conjunto de obrigações para com o mundo em geral, e outro conjunto de obrigações irreconciliáveis para os nossos compatriotas, com nossos vizinhos, nossos amigos, família, filhos. Tudo o que podemos fazer é agir e logo olhar para trás e ver o que aconteceu.

Margreth: Vou te contar outro motivo pelo que fizestes o princípio da incerteza; tens uma afinidade natural com ela.

Heisenberg: Então, deve ter sido gratificante para vocês me ver voltar derrotado em 1947. Rastejando pelo chão novamente. Com minha nação em ruínas outra vez.

Margreth: Na verdade não. Você está mostrando que no pessoal, tem saído vitorioso mais uma vez.

Heisenberg: Mendigando pacotes de comida?

Margreth: Não. Quando ficou em Göttingen sob proteção britânica, a cargo da ciência alemã do pós-guerra.

Heisenberg: No primeiro ano em Göttingen, eu dormia sobre a palha.

Margreth: Isabel me contou que depois tiveram uma casa encantadora.

Heisenberg: Os britânicos me deram.

Margreth: Seus novos pais adotivos. Que haviam confiscado de outros.

Bohr: Chega meu amor, basta.

Margreth: Não, eu engoli o meu pensamento todos esses anos. Mas é enlouquecedor que este nosso filho, tão inteligente, está constantemente implorando que lhe digamos quais são os limites de sua liberdade, para depois ir e transgredi-los! Rastejando pelo chão? O que está rastejando é meu querido e bom marido! Literalmente. Rastejando pela praia na escuridão, em 1943, fugindo de sua pátria como um ladrão na noite, para que não o assassinem. A proteção da embaixada alemã que você tanto se gaba não ia durar muito. Nos incorporaram aos inimigos do Reich.

Heisenberg: Eu os adverti em 1941. Não me escutaram. Pelo menos Bohr fugiu para a Suécia.

Margreth: Sim? E onde você está nesse meio tempo? Enfiado em uma cova como um selvagem, tratando de conjurar um espírito maligno. Ao final, tudo isso se reduziu a primavera luminosa dos anos 20, foi isso que produziu: uma máquina mais eficiente para matar pessoas.

Bohr: Quebra meu coração cada vez que eu penso sobre isso.

Heisenberg: Quebra o coração de todos.

Margreth: E esta máquina maravilhosa ainda pode chegar a matar a cada homem, cada mulher e cada criança no planeta. E se nós somos realmente centro do universo, se nós somos realmente os únicos que mantém a sua existência, que vai acontecer?

Bohr: A escuridão. Uma escuridão total e final.

Margreth: Até as perguntas que nos assombram ao final serão extintas. Até os fantasmas morrerão.

Heisenberg: Tudo o que posso dizer é que eu não fiz. Eu não fabriquei a bomba.

Margreth: Não, e por quê? Então, eu também vou dizer. É a razão mais simples de todas. Por que não podia. Não entendias nada de física.

Heisenberg: Isso disse Goudsmit

Margreth: E Goudsmit sabia o que dizia. Ele era um membro do teu círculo mágico.

Heisenberg: Sim, mas ele não tinha ideia do que eu compreendia ou não a respeito da bomba.

Margreth: Te procurou por toda a Europa para a inteligência dos aliados. Ele te interrogou quando foi capturado.

Heisenberg: Me culpava, é claro. Seus pais morreram em Auschwitz. Pensava que eu deveria ter feito algo para salvá-los. Não sei o que.

Margreth: Ele disse que não entendia a diferença crucial entre um reator e uma bomba.

Heisenberg: Eu a entendia muito bem. Simplesmente não contei aos outros.

Margreth: Ah.

Heisenberg: Mas compreendia.

Margreth: Secretamente.

Heisenberg: Pode verificá-lo se você não acredita em mim.

Margreth: Há evidência?

Heisenberg: Tudo foi gravado com muito cuidado.

Margreth: Há testemunhas?

Heisenberg: Testemunhas impecáveis.

Margreth: O que escreveram?

Heisenberg: Que o gravaram e transcreveram.

Margreth: Apesar de não ter contado a ninguém?

Heisenberg: Eu disse apenas para uma pessoa. Disse a Otto Hahn. Essa noite terrível em Farm Hall, quando nos deixaram sozinhos depois que ouvimos as notícias. Dei uma explicação razoável de como havia funcionado a bomba.

Margreth: Após o fato?

Heisenberg: Após o fato. Sim. Quando não importa. Falei de todas as coisas que Goudsmit disse que eu não entendia.

Bohr: A massa crítica. Isso foi o mais importante. A quantidade de material que se necessitava para estabelecer uma reação em cadeia. Disse a ele qual era a massa crítica?

Heisenberg: Dei-lhe um número, sim. Averigua-lo se não acredita em mim! Tinham microfones por todas as partes... estavam gravando tudo o que dizíamos. Tudo o que eu contei a Hahn nessa madrugada.

Bohr: Mas a massa crítica. Você deu um valor. Quanto era?

Heisenberg: Me esqueci.

Bohr: Heisenberg...

Heisenberg: Está nas gravações. Pode escutá-la.

Bohr: O valor para a bomba de Hiroshima...

Heisenberg: Era de cinquenta quilos.

Bohr: Esse foi o valor que você deu Hahn? Cinquenta quilos?

Heisenberg: Lhe disse cerca de uma tonelada.

Bohr: Uma tonelada? Mil quilos? Heisenberg, acho que finalmente estou começando a entender algo.

Heisenberg: A única coisa que estava errada.

Bohr: Estavas excedendo vinte vezes.

Heisenberg: A única coisa.

Bohr: Mas Heisenberg, suas matemáticas, suas matemáticas! Como ela poderia estar tão longe?

Heisenberg: Não estavam. Enquanto calculei a difusão obtive o resultado correto.

Bohr: Apenas a calculaste?

Heisenberg: Uma semana depois, dei-lhes uma palestra sobre isso. Está gravado! Só buscar!

Bohr: Queres dizer... que você não tinha calculado antes? Não resolvestes a equação da difusão?

Heisenberg: Não havia necessidade.

Bohr: Não havia necessidade?

Heisenberg: O cálculo já estava feito.

Bohr: Feito por quem?

Heisenberg: Por Perrin e Flugge em 1939.

Bohr: Por Perrin e Flugge? Mas, meu caro Heisenberg, isso foi para o urânio natural. Wheeler e eu demonstramos que o único que se fissionava era 235.

Heisenberg: Sua grande tese. A base de tudo o que fizemos.

Bohr: Então você teria que calcular o valor para o 235 puro.

Heisenberg: Obviamente

Bohr: E não o fez?

Heisenberg: Não o fiz.

Bohr: E por isso você estava tão confiante em que não iam poder fazer a bomba até que obtivesse o plutônio. Porque você passou toda a guerra acreditando que se precisava de uma tonelada de 235 e não uns poucos quilos. E para obter uma tonelada de 235 em um tempo possível...

Heisenberg: Teria precisado de algo como duzentos milhões de separadores. Era claramente inimaginável.

Bohr: Se te tivesse dado conta de que teria que produzir alguns quilos...

Heisenberg: Até para fazer um quilo teria exigido cerca de duzentos mil separadores.

Bohr: Mas duzentos milhões é uma coisa; duzentos mil é outra, e sua construção é possível imaginar.

Heisenberg: É possível.

Bohr: Os americanos sim a imaginaram.

Heisenberg: Por que Otto Frisch e Rudolf Peierls resolveram a equação de difusão. Eles deveriam ter vindo fazer seus cálculos para nós, em Berlim. Mas em vez disso, fizeram na Inglaterra.

Margreth: Porque eram judeus!

Bohr: E descobriram o rápido que ia ser a reação em cadeia.

Heisenberg: E assim o pouco material que seria que se ia necessitar. Mas também se equivocaram. Um pouco mais de meio quilo.

Bohr: Eles estavam errados, é claro. O faziam parecer cem vezes mais imaginável do que na realidade era.

Heisenberg: Em vez disso, eu fiz que parecesse vinte vezes menos imaginável.

Bohr: Então você poderia ter feito a bomba sem construir um reator. Você poderia ter feito com o 235 desde o princípio.

Heisenberg: Quase certamente que não.

Bohr: Mas, era possível.

Heisenberg: Poderia ser possível.

Bohr: E esse problema o tinha resolvido muito antes de chegar a Copenhague. Simplesmente por não tentar provar a equação de difusão.

Heisenberg: Que falha mais insignificante.

Bohr: Mas as consequências foram enormes.

Heisenberg: Tão grandes como para salvar a cidade. Qual cidade? Qualquer uma das cidades que nunca jogamos nossa bomba.


Bohr: Londres, suponho, se a tivessem tido a tempo. Mas, se os norte-americanos já tinham entrado na guerra, e os aliados tinham começado a libertar a Europa, então...
Heisenberg: Quem sabe? Paris também. Amsterdam. Talvez, Copenhagen.

Bohr: Então Heisenberg, conte-nos algo muito simples: por que não fez os cálculos?

Heisenberg: Não sei! Não sei por que eu não fiz isso! Porque não me ocorreu! Porque não o pensei! Porque supus que não valia a pena fazer!

Bohr: Supôs? Você nunca supunha as coisas! Assim foi como você chegou ao princípio da incerteza, porque rejeitava nossas suposições! Você calculava Heisenberg! Calculava tudo! A primeira coisa que você fazia com um problema era usar as matemáticas!

Heisenberg: Deveria ter estado lá para me parar.

Bohr: Sim, eu não teria deixado passar despercebido se eu estivesse lá te orientando.

Heisenberg: Apesar de que você fez exatamente a mesma suposição! Você pensou que não havia perigo exatamente pelas mesmas razões que eu! Por que não fizeste o cálculo?

Bohr: Por que não fiz o cálculo?

Heisenberg: Diga-nos porque não o calculastes e saberemos o porquê eu não o fiz!

Bohr: É óbvio por que eu não fiz!

Heisenberg: Vejamos... Continue.

Margreth: Porque ele não estava tentando fabricar uma bomba!

Heisenberg: Muito obrigado. Porque ele não tentava fabricar uma bomba. Imagino que acontecia o mesmo comigo. Porque eu não estava tentando construir uma bomba. Muito obrigado.

Bohr: Então você enganou a si mesmo, como aconteceu comigo no poker com o royal flush que eu nunca tive. Mas, nesse caso...

Heisenberg: Por que vim a Copenhague? Sim, por que vim...?

Bohr: Analisemos um rascunho a mais, certo? Um rascunho final!

Heisenberg: E mais uma vez esmago as pedrinhas do caminho familiar para a porta de entrada da casa dos Bohr e toco a tão familiar campainha. Por que vim? Eu sei perfeitamente bem. Eu sei tão bem que eu não tenho a necessidade me perguntar sobre isso. Até que mais uma vez a pesada porta se abre.

Bohr: Ele está parado no limiar da porta piscando na súbita inundação de luz que vem do interior da casa.

Heisenberg: E, de repente, as razões que estavam claras dentro da minha cabeça perdem definição. A luz cai sobre eles e se dispersam.

Bohr: Meu querido Heisenberg!

Heisenberg: Meu querido Bohr!

Bohr: Acontece, acontece...

Heisenberg: Que difícil é ver ainda aquilo que está frente aos nossos olhos. Tudo o que temos é o presente, e o presente se dissolve constantemente no passado. Bohr desaparece quando eu viro para olhar Margreth.

Margreth: Niels tem razão. Você parece mais velho.

Bohr: Entendo que você teve um problema pessoal.

Heisenberg: Margreth passou a história enquanto me viro para Bohr. E, no entanto, quanto mais difícil é enxergar o que está por trás dos nossos olhos. Aqui estou, no centro do universo, e, no entanto, a única coisa que posso ver são os dois sorrisos que não me pertencem.

Margreth: Como está Isabel? Como estão as crianças?

Heisenberg: Muito bem. Mandam lembranças... Posso sentir um terceiro sorriso na sala, muito perto de mim. Poderia ser que, de repente, vejo por um momento aquele espelho?

Margreth: Observo ambos os sorrisos na sala, um desconfortável e que tenta se animar, o outro que está se transformando de cálido para meramente educado. Eu sei também que há um terceiro sorriso no quarto, inalterado, amável – espero – e
cauteloso.

Heisenberg: Você conseguiu praticar um pouco de esqui?

Bohr: Eu olho de canto de olho para a Margreth, e por um momento vejo o que ela pode ver e eu não – a mim mesmo, e o sorriso que vai desaparecendo de meu rosto enquanto o pobre Heisenberg segue cometendo erros.

Heisenberg: Eu olho para os dois que olham para mim, e por um segundo eu vejo a terceira pessoa na sala tão claramente como eu os vejo. Seu hóspede indesejável, tropeçando de uma grosseria a outra.

Bohr: Eu o vejo olhando para mim, ansioso, implorando, tentando voltar aos velhos tempos, e eu vejo que ele vê que falta alguém na sala. Me vê. Vê Margreth. Não se vê a si mesmo.

Heisenberg: Duas bilhões de pessoas no mundo, e o que tem que decidir seu destino é o único que sempre se esconde de mim.

Bohr: Você sugere uma caminhada.

Heisenberg: Te lembra de Elsinore? A escuridão no interior da alma humana...?

Bohr: E saímos. Lá fora sob as árvores outonais. Pelas ruas obscurecidas pelos possíveis bombardeios.

Heisenberg: Agora não há ninguém mais no mundo, exceto Bohr e esse outro ser invisível. Quem é esta presença que me rodeia na escuridão?

Margreth: A partícula que voa vagando pela escuridão, e ninguém sabe aonde vai. Está aqui, está lá, está em todo lugar e em nenhuma parte.

Bohr: Com aparente indiferença ele começa a fazer a pergunta que esteve preparando.

Heisenberg: Tenho o direito, como um físico moralmente correto, para trabalhar na exploração prática da energia atômica?

Margreth: O grande impacto.

Bohr: Eu me detenho. Ele se detém...

Margreth: Assim é como trabalham.

Heisenberg: Ele me olha, horrorizado.

Margreth: Agora, finalmente, sabe onde está e o que está fazendo.

Heisenberg: Ele se vira.

Margreth: E apenas começa o momento do impacto, já acabou.

Bohr: Já estamos voltando para casa, com pressa.

Margreth: Já estão os dois se escapando um do outro na escuridão.

Heisenberg: Nossa conversa terminou.

Bohr: Nossa grande sociedade também.

Heisenberg: Toda nossa amizade.

Margreth: E todo com respeito a ele se volta tão incerto quanto antes.

Bohr: A menos que... Sim... Um experimento hipotético... Suponhamos por um momento que não vou voando durante a noite. Vejamos o que acontece se em troca lembro a figura paternal que se supõe que interpreto. Se eu parar, controlar
minha raiva e me virar para ele. E eu lhe perguntar o por quê.

Heisenberg: Por quê?

Bohr: Por que você está tão certo de que vai ser tão tranquilizadoramente difícil construir uma bomba com o 235? É porque você fez o cálculo?

Heisenberg: O cálculo?

Bohr: Da difusão no 235. Não. É porque não calculou. Você não tinha dado conta conscientemente de que tinha que fazer um cálculo.

Heisenberg: E, com certeza, agora sim me dou conta. Na verdade, não seria tão difícil. Vejamos... A seção eficaz de dispersão é de cerca de 6 x 10-24 cm2 e o
caminho livre médio seria ... Espere...

Bohr: E de repente um mundo novo, muito diferente e muito terrível começa a tomar forma...

Margreth: Esse foi o maior e último pedido que Heisenberg te fez. O que o compreenderas quando ele não podia compreender a si mesmo. E esse foi o maior e último ato de amizade que tiveste com ele: deixá-lo no erro.

Heisenberg: Sim. Talvez eu devesse agradecê-lo.

Bohr: Talvez devesse.

Margreth: Como seja, foi o fim da história.

Bohr: Embora talvez eu também devesse agradecer alguma coisa. Naquela noite de verão em 1943, quando eu escapei no barco pesqueiro e navios de carga chegaram da Alemanha...

Margreth: E o que isso tem a ver com Heisenberg?

Bohr: Quando os navios chegaram naquela quarta-feira havia oito mil judeus na Dinamarca que seriam presos e jogados em seus porões. No dia seguinte, na véspera do Ano Novo judaico, quando a SS começou a caçá-los, apenas assim se encontrava um judeu.

Margreth: Eles haviam sido escondidos em igrejas e hospitais, e nas casas dos vizinhos e em casas de campo.

Bohr: E como isso foi possível? Porque alguém na embaixada alemã nos tinha dado uma data.

Heisenberg: Georg Duckwitz, seu especialista de navegação.

Bohr: Um de seus homens?

Heisenberg: Um dos meus amigos.

Bohr: Foi um informante incrível. Avisou-nos no dia anterior da chegada dos cargueiros – o mesmo dia que Hitler deu a ordem – ele nos deu a hora exata em que a SS ia atuar.

Margreth: Foi a resistência que os tirou de seus esconderijos e os passou de contrabando para a Suécia.

Bohr: Que um punhado de nós conseguisse escapar dos barcos de patrulha alemães num barco de pesca já seria bastante incrível. Mas uma armada completa conseguir passar com mais de oito mil pessoas a bordo, foi como se o mar vermelho se abrisse.

Margreth: Eu pensei que aquela noite não tivesse barcos de patrulha alemães...

Bohr: Não. De repente, toda a esquadra tinha sido declarada não apta para sair ao mar por razões de segurança.

Heisenberg: Como conseguiram, não posso imaginar.

Bohr: Então, talvez eu devesse te agradecer.

Heisenberg: Por quê?

Bohr: Por minha vida. Para todas as nossas vidas.

Heisenberg: A essa altura, não tinha nada a ver comigo. Desculpe dizer.

Bohr: Mas logo depois que eu saí, voltou para Copenhagen.

Heisenberg: Para me certificar que nossa gente não se apoderasse do Instituto na tua ausência.

Bohr: Também nunca lhe agradeci por isso.

Heisenberg: Sabia que me ofereceram seu cíclotron?

Bohr: O poderia ter usado para separar um pouco do 235.

Heisenberg: Enquanto isso, você ia da Suécia para Los Alamos.

Bohr: Para jogar minha pequena parte na morte de centenas de milhares de pessoas.

Margreth: Niels, não fez nada mal!

Bohr: Não?

Heisenberg: Claro que não. Foi um homem bom, do começo ao fim, e ninguém poderá dizer o contrário. Enquanto que eu...

Bohr: Enquanto que você, meu querido Heisenberg, nunca fez isso para contribuir para a morte de uma só pessoa em sua vida.

Margreth: Bem, sim.

Heisenberg: Sim?

Margreth: Uma. Essa história que nos contou. Aquele pobre homem que vigiaste toda a noite, quando você era um menino em Munique, enquanto ele esperava ser fuzilado pela manhã.

Heisenberg: Não, quando chegaram pela manhã eu os convenci para que o deixassem ir.

Bohr: Heisenberg tenho que dizer que se a gente vai medir estritamente na finalidade de quantidades observáveis...

Heisenberg: Então nós necessitaríamos de uma nova e estranha ética quântica. Haveria um lugar para mim no céu. E outro para esse homem da SS eu encontrei a caminho de casa a partir de Haigerloch. Esse foi o fim da minha guerra. As tropas aliadas nos estavam cercando; não havia mais nada que pudéssemos fazer. Isabel e os meninos se refugiaram em uma pequena cidade na Baviera, então fui para vê-los antes que me capturassem. Tive que ir de bicicleta – a essa altura não havia trens ou outros transportes – e teria que viajar de noite e dormir sob arbustos de dia, porque de dia o céu estava cheio de aviões aliados, varrendo as ruas à procura de qualquer coisa que se movesse. Foi isso o que eu tinha escolhido para o meu país?
Escombros intermináveis? Será essa fumaça perpétua no céu? Esses rostos famintos? Foi minha responsabilidade? E todas essas pessoas desesperadas pelas calçadas. Os mais desesperados de todos eram os da SS. Bando de fanáticos com nada a perder, vagueando por ai, atirando em desertores, pendurando-os nas árvores nas laterais da rua. Na segunda noite, de repente, lá estava ele, esse casaco preto horrível e familiar que surgiu da escuridão na minha frente! Em seus lábios enquanto eu parava, essa palavra terrível e familiar: "Desertor", disse ele. Ele parece tão exausto quanto eu. Eu entrego a ordem de viagem que eu mesmo escrevi. Mas há pouca luz para ler e está cansado demais para ler. Em vez disso, ele começa a abrir seu coldre. Vai atirar, porque dá menos trabalho. E de repente eu estou pensando com grande rapidez e claridade, que é como esquiar ou naquela noite em Heligoland ou a outra do parque atrás do Instituto. Vem à mente cigarros americanos que eu tenho no meu bolso. E já está na minha mão, eu o ofereço. A solução mais desesperada que eu já tentei. Eu espero. No pacote existem apenas duas palavras muito simples, mas com grandes letras: Lucky Strike, golpe de sorte.
Fechou o coldre e pegou os cigarros... Funcionou, funcionou! Como todas as outras soluções e todos os outros problemas. Ele me deixa viver em troca de vinte cigarros. E segui viagem. Três dias e três noites. Através das crianças que choravam, perdidas e famintas, recrutadas para lutar, e, em seguida, abandonadas por seus comandantes. Através da fome dos trabalhadores escravos que iam a pé para casa na França, Polônia, na Estônia. Através da minha amada terra. Minha arruinada, desonrada e amada terra.

Bohr: Meu caro Heisenberg, meu querido amigo!

Margreth: Silêncio. O silêncio a que sempre voltamos.

Heisenberg: E, é claro, eu sei em que estão pensando.

Margreth: Todas aquelas crianças perdidas nas estradas.

Bohr: Heisenberg vagando pelo mundo, ele mesmo como um menino perdido.

Margreth: Nossos próprios filhos perdidos.

Heisenberg: E no barco, o leme se trava uma vez mais.

Bohr: Tão perto, tão perto! Por tão pouco! ...

Margreth: Niels para na porta, olhando para mim, então desvia seu olhar...

Heisenberg: E mais uma vez mergulha nas profundezas do mar.

Bohr: Antes que possamos agarrar a algo, nossa vida se acabou.

Heisenberg: Antes que possamos discernir quem ou o que somos, nos fomos para sempre e nos tornamos poeira.

Bohr: Instalados em toda essa poeira que nós levantamos.

Margreth: E, cedo ou tarde chegará o tempo que todos nossos filhos serão pó, e, em seguida, os filhos de nossos filhos.

Bohr: Quando as decisões, grandes ou pequenas, não se voltam a tomar nunca mais. Quando não há mais incerteza, porque não haverá mais conhecimento.

Margreth: E quando todos nossos olhos se tiverem fechados, quando até os nossos fantasmas se tenham ido... o que restará do nosso adorado mundo? De nosso arruinado, desonrado e adorado mundo?

Heisenberg: Mas enquanto isso, neste meio tempo precioso aí está. As árvores do parque. Os lugares amados. Os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos. Preservados possivelmente, por aquele momento tão breve em Copenhague. Por algum acontecimento será encontrada ou definida em todo. Por esse último núcleo de incerteza que se encontra no coração de tudo o que existe.

<FIM DO SEGUNDO ATO>
Revista Hipótese, Itapetininga, v. 1, n.1, p. 109-174, 2015.

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Heisenberg e Bohr, Copenhague, 1941. 

filme "Copenhague" começa com este breve prefácio.

COPENHAGUE: Prólogo com Michael Frayn

Muitos pensam que a peça aborda as questões morais,se cientistas devem desenvolver armas. É claro que as questões morais são importantes. Antes de fazer quaisquer julgamentos, deveremos saber por que eles estão fazendo o que fazem. Não se pode tecer um juízo moral de alguém, a menos que esteja informado de suas intensões.

Minha peça, "Copenhague," baseia-se num evento real e num grande mistério. Trata do encontro entre dois renomados cientistas,durante a 2ª Guerra Mundial, na Dinamarca ocupada pelos nazistas: Werner Heisenberg, o físico alemão, e Niels Bohr, o físico dinamarquês.

Os dois eram grande amigos, e colegas há mais de 20 anos. Eles foram pioneiros da física atômica, e, posteriormente, o trabalho dos 2 culminaria na primeira bomba atômica. Mas o problema era que na época do encontro em Copenhague, ambos estavam em lados opostos da guerra. A reunião começou carregada de problemas. E desde então, as pessoas têm discutido sobre o teor daquela conversa, e o que Heisenberg tinha para dizer.

Ambos estão entre os maiores físicos do século 20, porque começaram a desvendar o que acontece dentro do pequeno mundo do átomo. Quando se conheceram no iní­cio dos anos 20, Bohr já era muito famoso, ele havia ganhado o prêmio Nobel de fí­sica em 1922. E Heisenberg era um jovem começando a carreira, um estudante atrevido e brilhante. Seus melhores trabalhos foram realizados conjuntamente.

Eles estavam na dianteira da mecânica quântica, criando, talvez, a mais importante e bem-sucedida teoria já introduzida na física. Formavam um casal perfeito. Com Bohr desbravando a imagem física com sua mente, e Heisenberg, o matemático, traduzindo essa visão para a linguagem matemática, a dança dos átomos.

A dança das partículas que Bohr só conseguia teorizar. Aquela combinação era perfeita. O famoso Princí­pio da Incerteza de Heisenberg, que ele introduziu na mecânica quântica em 1927, postula que não é possível prever com rigor o comportamento de um corpo. Mas só importa quando falamos de corpos pequenos e rápidos.

Mas na teoria, aplica-se a tudo (grandes estrelas; luz). E se não soubermos tudo sobre um objeto físico, não conseguiremos calcular o que irá acontecer. O "Princípio da Incerteza" desafia nossa visã lógica do mundo. Nós, fí­sicos, enlouquecemos,quando pensamos acerca do princí­pio da incerteza.
Algumas pessoas acham que a física é uma questão acabada. É fácil calcularmos quando temos as informações; você conhece a posição inicial do corpo, você sabe como ele se comporta, e pode-se prever o resultado. Portanto, é realmente perturbador, para algumas pessoas de nível mais fundamental, que os físicos "desconhecem" onde as coisas estão, em um dado momento. Em última análise, há essa incerteza... que toca no âmago da concepção habitual da vida.

Heisenberg tinha apenas 33 anos quando ganhou o Prêmio Nobel pelo princípio da incerteza. Na mesma época em que Hitler chegou ao poder. Heisenberg poderia ter deixado a Alemanha, recebeu proposta de várias universidades americanas. Heisenberg foi muito criticado pela recusa. Nada leva a crer que Heisenberg era nazista ou mesmo simpatizante. A crítica que se faz, é que ele "se conciliou", que estava disposto a ceder ao regime nazista.

A ascensão de Hitler começou a desgastar a amizade entre eles. Não houve uma descoberta no campo da física atômica que mudou tudo. Nos anos 1930, foi demonstrado que, se cindisse o núcleo, a quebra do núcleo de um átomo, liberava energia. De repente, parecia teoricamente exequí­vel usar a fí­sica atômica para produzir energia, com o objetivo benéfico ou maléfico. Esse é o momento em que a física atômica deixa de ser puramente abstrata, e causa grande impacto no futuro da raça humana.

Bohr, e sua forma de pensar em termos de imagem física, imaginou que o núcleo do átomo era igual a uma gota de água,onde a tensão superficial mantém a gota de água intacta e esférica. Porém, se golpeá-la externamente, a gota iria se dividir em 2 gotas menores. Então ele percebeu, que isso talvez pudesse liberar uma incrível quantidade de energia, a energia armazenada no núcleo do átomo, dividindo-o com essa gota de líquido. E então, ele calculou rapidamente, que precisaria de uma forma rara de urânio: o urânio enriquecido (U235).

Daí começou uma caçada internacional para ver quem obteria o U235, essa forma rara de urânio. Era o futuro da humanidade que estava em jogo. Bohr e Heisenberg lideravam um ramo da física  que agora poderia ser usada para produzir, teoricamente, uma arma terrível. Mas ambos estavam separados. Quando a guerra começou em 1939, Heisenberg sabia que seria difícil contatar Bohr em Copenhague. E escreveu uma carta muito tocante a Bohr, em que aludia à relação de pai-filho que eles tinham.

"Caro Bohr,
já que não sei como e quando o destino nos reunirão outra vez, reitero meus agradecimentos por toda a sua amizade, por tudo que aprendi com você, e por tudo que fez por mim. Em nome da velha amizade, cordialmente, Werner Heisenberg."

Frayn: Em 1941, os dois já não se contatavam há 2 anos. E Bohr levava uma vida restritiva, pois era um meio-judeu vivendo sob ocupação nazista. Só não sabia que seu velho amigo Heisenberg era o chefe do Projeto de Energia Nuclear Alemão.

Apesar das dificuldades, Heisenberg conseguiu viajar para Copenhague, e estava decidido a se reunir pessoalmente com Bohr. Segundo Heisenberg, eles entabularam uma conversa, e Niels Bohr ficou chateado e depois zangado. A conversa terminou ali, segundo Heisenberg, antes que ele pudesse explicar o que tinha para dizer. E desde então as pessoas têm discutido acerca de duas coisas: o que foi que realmente conversaram, e o que Heisenberg tinha para dizer.


Acho que a visita fornece um bom paralelo entre o "Princípio da Incerteza" de Heisenberg e a incerteza psicológica que eu acho que existe,a barreira teórica em saber por que as pessoas fazem o que fazem, e a particular dificuldade de entender por que Heisenberg foi a Copenhague, parecem destacar a dificuldade de um episódio em particular. A peça trata basicamente disso: se podemos ter pleno conhecimento das intenções de alguém.